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Nos subterrâneos da estéril e seca Brasília, há rica e fértil vida literária

Luiz Ruffato*

Há vida inteligente em Brasília? Essa pergunta pode parecer, à primeira vista, meramente provocativa. Mas, considerando tratar-se de uma cidade planejada há pouco mais de 40 anos, ainda sem uma tradição cultural consolidada, a indagação deixa de ser retórica. Desde sua fundação, em 1960, o Distrito Federal recebeu levas e levas de intelectuais de todas as partes do Brasil para compor os quadros de uma burocracia essencial que moveria as rodas do processo decisório nacional. Vista desde sempre como desumana e estéril (ou esterilizante), Brasília passou a sinônimo de terra inculta à semente do embate de idéias.

Com o passar do tempo, essa imagem vai dando lugar a outras maneiras de se aproximar da "realidade" da capital brasileira. Hoje, sem dúvida, Brasília não pode ser encarada mais como uma cidade desinteressantemente homogênea, apática, triste, solitária, preguiçosa, rasa. Os problemas inerentes a qualquer grande centro urbano passaram a perturbar os brasilienses: violência, favelas, drogas, ocupações irregulares... Desde a década de 80, por exemplo, o Distrito Federal conheceu a explosão das mais criativas bandas brasileiras, tendo à frente um dos últimos exemplares de letrista criativo da música popular, Renato Russo, e sua Legião Urbana, cuja originalidade consistia exatamente em mostrar essa outra cidade.

No âmbito estrito da literatura, Brasília teve dois grandes momentos. O primeiro, quando o poeta Nicolas Behr, ainda na década de 70, com seus livros alternativos (quem não se lembra de títulos como "Chá com porrada" e "Iogurte com farinha", ou de versos como "ninguém me ama/ ninguém me quer/ ninguém me chama/ de Nicolar Behr"?) chegou a ser preso e processado, demonstrando, na prática, o poder subversivo da poesia, a força inaudita da palavra.

O outro momento, agora em pleno século XXI, tem o nome de Regina Dalcastagnè, professora da UnB que coordena o mais importante núcleo de estudos de literatura brasileira contemporânea do Brasil. As duas pontas: a criação, a reflexão... Há que se destacar ainda dois nomes: Ronaldo Cagiano e Joanyr de Oliveira, ambos mineiros. Este, poeta e crítico literário, sempre preocupado em enfeixar em livro a produção da poesia brasiliense, desde o primeiro, "Poetas de Brasília", de 1962, até "Poesia de Brasília", de 1998. Aquele, contista e poeta, também atento às coisas de sua cidade de adoção. Pois bem, coincidentemente, ambos lançaram recentes antologias preciosas para quem quiser deixar os estereótipos de lado e espiar o que está acontecendo em Brasília, para além do que sai no noticiário dos jornais.

"Poemas para Brasília" (Brasília, Projecto Editorial/Livraria Suspensa, 2004), organizados por Joanyr de Oliveira, é uma antologia de poetas que escreveram sobre o Distrito Federal. E aqui, temos desde um Bernardo Guimarães, romancista e poeta romântico mineiro (1825-1884), autor de um poema intitulado "O Ermo", premonitório do nascimento da capital brasileira, até Paulo Porto, único nascido na Capital Federal. Talvez até mesmo para mostrar a variedade de poetas que se serviram de Brasília como ponto de partida para suas obras, temos, na antologia, um autor búlgaro (Rumen Stoyanov) e outros 68 de diversos estados do Brasil: Distrito Federal, Alagoas, Amazonas, Pará, Paraíba, Pernambuco, Piauí, Rio Grande do Sul e Santa Catarina, Rio Grande do Norte, Maranhão, Bahia, Goiás, Ceará, São Paulo, Rio e Minas Gerais.

Aqui, deparamos com interessantes obras dedicadas a Brasília, saídas das penas de Affonso Romano de Sant´Anna, Alphonsus de Guimaraens Filho, Bernardo Guimarães, Carlos Drummond de Andrade, Cassiano Ricardo, Cyro dos Anjos, Guilherme de Almeida, Henriqueta Lisboa e João Cabral de Melo Neto. Podemos citar outros, como Afonso Felix de Souza, Anderson Braga Horta, Astrid Cabral, Cassiano Nunes, Domingos Carvalho da Silva, Emanuel Medeiros Vieira, Ésio Macedo Ribeiro, Fernando Marques, Fernando Mendes Vianna, Gilberto Mendonça Telles, Homero Homem, Jamil Almansur Haddad, José Alcides Pinto, Moacyr Félix, Ronaldo Cagiano, Stella Leonardos e o próprio antologista, Joanyr de Oliveira. Curiosamente, sentimos falta de quem, talvez, soube melhor mostrar as contradições da Capital Federal, o sempre "marginal" Nicolas Behr.

Ronaldo Cagiano selecionou e organizou a "Antologia do Conto Brasiliense", reunindo 83 autores que, de uma maneira ou de outra, tiveram ou têm alguma ligação com Brasília. Diferentemente da antologia de poemas de Joanyr de Oliveira, que tem a cidade como tema, o livro de Cagiano privilegiou o fato de o autor ter morado em Brasília em algum momento de sua vida, o que acabou, talvez sem que o antologista precisasse, extrapolando sua idéia inicial. Isso porque, no livro, tomamos (ou retomamos) contato com bons autores há muito longe dos holofotes. Assim, reconhecemos, ao lado dos consagrados Bernardo Élis, Cyro dos Anjos, Dinah Silveira de Queiroz, Luiz Vilela e Samuel Rawet, a necessidade de rever a obra de autores como Alaor Barbosa, Alciene Ribeiro Leite, Almeida Fischer, Drummond Amorim, Emanuel Medeiros Vieira, Jair Vitória, José Edson Gomes, Lourenço Cazarré e Nilto Maciel, e de atentar para outros que estão começando: Fernando Marques, Rosângela Vieira Rocha, Stella Maris Rezende e Whisner Fraga.

(O Globo - 08.03.2004)

Sobre o Autor

Luiz Ruffato: O jornalista e escritor Luiz Ruffato, autor de dois livros de contos, Histórias de remorsos e rancores (Boitempo, 1998) e (Os sobreviventes) (Boitempo, 2000), ambos elogiados pela crítica e pelo público, é hoje um dos grandes autores que apareceram no fim dos anos 90. Nasceu em Cataguases (MG), em 1961, cidade que abrigou o Grupo Verde, criador da efêmera (1927 a 1929) e importante revista modernista Verde. Ruffato também publicou três livros de poesias, cujos títulos ele sequer ousa se lembrar. Continua a escrever versos, tendo, inclusive, um livro de poesias pronto para publicação, As máscaras singulares, e ocupa a Secretaria de Redação do Jornal da Tarde.

 

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