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RESENHAS

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Entre a ousadia formal e o humor filosófico

Ronaldo Cagiano*

O romance Araã!, de Evandro Affonso Ferreira, mineiro (Araxá, 1945) radicado em São Paulo há mais de três décadas, vem alcançando uma receptividade crítica inversamente proporcional à modesta tiragem (400 exemplares) da edição. Aliás, esse fato tem muito a ver com a vertente minimalista da prosa de Evandro, que é um expert na obtenção do máximo resultado estético com o mínimo de recursos formais.

Autor de Grogotó! (lançado em 2000 pela Topbooks), obra que teve a bênção de José Paulo Paes, ao chancelar seus contos-miniatura como um achado arqueológico, Evandro é mestre na arte da concisão, conhecedor, como um homeopata, do efeito das poções, cujo segredo reside na síntese e na busca do essencial. Seu texto enxuto, desgarrado das adjetivações e gorduras de estilo surge após ter lançado, com paciência de garimpeiro, sua bateia nas águas profundas da língua, aproveitando as possibilidades que nos oferece no que ela tem de culta, popular, erudita e coloquial. Com isso, consegue, como poucos, reinventar a sintaxe pela restauração de elementos colhidos no imaginário dos povos, em sua várias representações de tempo e espaço. Graças, ainda, à sua intimidade com o léxico, fruto de suas muitas incursões por dicionários e sistemática leitura - dos clássicos aos modernos - conquistou, pela economia de meios, o que muitos tentam pela simplificação pura e simples da linguagem e não conseguem: a clareza, a objetividade e a plena comunicação de sua escritura.

Sem comparações com Dalton Trevisan, Luiz Vilela e outros ícones da faxina literária e da prosa econômica, Evandro Affonso Ferreira constrói um outro caminho, lançando um farol no passado e outras luzes na contemporaneidade e no experimentalismo, particularizando uma dicção que tem muito de ousadia e transgressão. Não obstante sua obsessão por reduzir a forma , não há prejuízo do conteúdo, preservando-se a densidade, o ritmo e a tensão, dentro de uma perspectiva em que há lugar também para o humor dosado, com um certo ingrediente de filosofia.

Em Araã!, sua estréia em romance, Evandro mantém o mesmo senso estético dos livros anteriores (como em Bombons recheados de cicuta, Ed. Paulicéia, 1995), com foco numa estrutura narrativa capaz de levar o leitor tanto ao espanto quanto ao fascínio, por ser versátil e original. Nesse livro, a figura central é Seleno Selser, vendedor de enciclopédias (que, segundo ele, ao vender o seu peixe, é “jóia de finíssima lavra, abluída de máculas e imperfeições” e que deixa no chão as concorrentes). Trata-se de um ser quase lendário num homem de setenta anos, viúvo, que mora de favor da casa da filha Himália, casada com Androgeu.

Seleno emerge das sombras da cultura ancestral desfiando seu novelo de observações e reflexões pelas ruas de São Paulo e desafiando os leitores com sua acuidade intelectual. No seu dia-a-dia convive com outros personagens: Tito (farmacêutico), a mulher Sêmela e a filha Venília, além de Mégara, Hepodâmia e Cálibe – são nomes que nos dão a chave da compreensão desse romance que mergulha no passado e na própria solidão através da busca incessante de Seleno pelo conhecimento absoluto, que ele vai deduzindo ao retirar das páginas de um sem-número de livros que compulsa em suas estantes, sintoma de seu permanente desejo de beber nas grandes fontes do pensamento universal. Nesse particular, Evandro entra em cena, dando lugar à ousadia, ao emprestar textos seus às obras antigas ou contemporâneas revisitadas por Seleno, o que, na verdade, funciona como um contraponto de humor e sátira, mais que confusão ou labirinto para o leitor incauto.

Com os recursos utilizados na confecção desse “livro estupendo, uma quase-obra-prima”, como sentenciou o escritor e crítico Nelson de Oliveira, Evandro Ferreira firma-se como um dos mais criativos escritores contemporâneos. Sua narrativa impõe-se não pela invencionice gratuita, mas por uma arquitetura inteligente, que faz tanto refletir, quanto rir, provocando-nos uma leitura instigante e a sensação de inigualável prazer estético.

Sobre o Autor

Ronaldo Cagiano: De Cataguases, cidade mineira berço de tradições culturais e importantes movimentos estéticos, surgiu Ronaldo Cagiano. É funcionário da CAIXA. Colabora em diversos jornais do Brasil e exterior, publicando artigos, ensaios, crítica literária, poesia e contos, tendo sido premiado em alguns certames literários. Participa de diversas antologias nacionais e estrangeiras. Publica resenhas no Jornal da Tarde (SP), Hoje em Dia (BH), Jornal de Brasília e Correio Braziliense, dentre outros. Tem poemas publicados na revista CULT e em outros suplementos. Obteve 1º lugar no concurso "Bolsa Brasília de Produção Literária 2001" com o livro de contos "Dezembro indigesto”.

Organizou também várias antologias, entre elas: Poetas Mineiros em Brasília e Antologia do Conto Brasiliense.

 

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