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RESENHAS
Os que estão aí
Leonardo Vieira de Almeida*
A leitura de novos textos entrelaça-se com a leitura de textos já lidos, sempre confirmando vereditos, influindo na gestação de sombras e de novas formas. A perspectiva do prazer é gerada por uma descarga de endorfina que suaviza a própria existência, por mais cruel que ela seja.
Os contos reunidos em primeira publicação do carioca Leonardo Vieira de Almeida (1971), sob o título Os que estão aí (Ibis Libris, 2002), podem possibilitar a recordação dos Contos cruéis (Iluminuras, 1987), de Philippe Auguste Mathias, o conde de Villiers de l’Isle-Adam, uma das figuras mais emblemáticas na Paris do século XIX. Não pela correlação de idéias, mas, talvez, pela maneira de se porem afastados da extrema racionalidade, pela apresentação de atmosferas oníricas e alucinatórias, como também pelo jogo simbólico com que foram tecidos.
De Villiers, um fragmento do conto "O intersigno", um trecho de diálogo entre o senhor Xavier e o abade Maucombe: "- Vá em paz, disse o abade Maucombe. / - Eh! É que se trata de quase toda a minha fortuna! murmurei. / - A fortuna é Deus! disse Maucombe simplesmente. / - E amanhã, como viverei se... / - Amanhã, não se vive mais, respondeu ele." A partir desse extrato, a própria sentença condenatória da vida. Sentença essa que o contista já faz emergir, ritualisticamente, quando afirma que "A infelicidade tem início quande arde o crepúsculo." (In: "Canaã")
Com certeza, o autor é leitor de Clarice Lispector e tem no conto "Amor", uma confirmação. Vejam as re-escrituras: a partir da citação anterior, no texto da autora lê-se, "Certa hora da tarde era mais perigosa"; ou, a partir de "O bonde se sacudia nos trilhos e o cego mascando goma ficara atrás para sempre. Mas o mal estava feito.", em que o motivo se repete no trecho do conto "Canção de ninar": "A capa de umidade que os cobria esvanecera-se junto com o vulto na janela, mas o mal estava feito e pairava no ar a vibração de um acorde sombrio."
Não pela modelagem de um jogo verbal repleto de intertextualidade ou mesmo pelo pastiche, mas muito mais pela forma de seduzir o leitor com os artifícios da prosa poética; ou pela construção de torneios metonímicos, em que pequenos indícios revelam atitudes plenas, ou vice-versa; ou, ainda, pela maneira opressora de realçar comparações e validar metáforas, Leonardo Vieira de Almeida surpreende. Sua escrita é forte, massacrante, cruel, e ao mesmo tempo fluida e sensível.
O conto "As mãos do açougueiro" é de uma crueldade dilacerante. Fugindo dos modelos em prosa poética dos três primeiros textos, fazem o leitor hesitar, mas por pouco tempo. Na falta daquela tessitura metafórica, o conto se delineia mais objetivamente, até provocar a vertigem, na cena em que o açougueiro se masturba ao contato físico da carne congelada do frigorífico.
Entre víboras, serpentes, escorpiões, medusas e crucifixos – símbolos reincidentes nos contos – o leitor pode ainda se deparar com insólitas comparações. Em "A gárgula", espécie de apólogo, a personagem principal parece se confundir com as instituições, em cuja edificação serve de ornamento e escoamento de águas. Diz ter já sido homem de negócios e se traduz "O homem de negócios ainda continua no seu recanto de janela. Acho que congelei sua imagem, para examinar, profundamente, sua aparência de estátua esfíngica. Eu, que há alguns anos, tinha por objetivo o mesmo sangue que percorre seus caminhos."
"Ratos" paira entre a alucinação e a loucura. É um conto que pode se alinhar entre a hesitação do fantástico e alguns indícios do surrealismo. Mas, ainda, como reflexão e consciência. Uma mixórdia de sentidos. Eis um trecho: "Acreditem. Ela existe. Os ratos existem. No dia em que vi a enorme ratazana, consegui vencer o medo; e abandonei a casa cinco." Casa, diga-se de passagem que (in)existia do lado par, entre os números quatro e seis, e onde vivia Lígia, "uma mulher muito caseira".
Alguns clichês não desautorizam a leitura de Os que estão aí, pois as metáforas surpreendentes atenuam o provável deslize. Quando se lê "Gaspar", a verossimilhança se dá de forma sutil: um homem mata mulheres e as preserva flutuantes em aquários. A única fratura deste conto ocorre no momento em que o narrador se desvenda como serial killer, o que, no entanto, não compromete os meios da efabulação.
Enfim, Leonardo Vieira de Almeida, também arquiteto e urbanista, vem unir-se aos arautos da narrativa curta que fazem sobreviver o gênero, desta feita, concentrando gotas de crueldade, fiel, talvez, aos espetáculos da própria vida. (Texto de Jorge Pieiro, anteriormente publicado na Revista Agulha)
Os que estão aí. Leonardo Vieira de Almeida. Ibis Libris. Rio de Janeiro. 2002. 88 pgs. R$ 15,00 + frete. Pedidos diretamente ao autor. Clique na capa.
Sobre o Autor
Leonardo Vieira de Almeida: É escritor e arquiteto. Participou como co-autor do livro O disco de Newton, Imago, 1994, com poemas e contos e da Antologia n. 2 Poesia Viva, Editora Uapê, 1996. Possui trabalhos publicados em algumas revistas literárias como Nave da Palavra, Falaê, nos jornais Panorama e Balaio de Textos. "Os que estão aí" é seu primeiro livro de contos.
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