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RESENHAS

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O Pobre de Deus

Nikos Kazantzákis*

Páginas 83 a 86

Tínhamos encontrado no caminho um grande chocalho de carneiro. Francisco agitava-o nas ruelas da aldeia e gritava. Os aldeões, homens e mulheres, ouvindo, corriam para ver o que trazíamos e distribuíamos de graça. Francisco subia então sobre uma pedra e começava a falar sobre o amor. "Amemos Deus e os homens, amigos e inimigos; amemos os animais e os pássaros e também a terra que pisamos". Falava sobre o amor, arrebatado, e, quando já não podia encontrar as palavras, era tomado pelo pranto. Muitos, ouvindo-o, riam; outros aborreciam-se; as crianças atiravam-lhe pedras, e algumas pessoas se aproximavam às ocultas e beijavam-lhe a mão. Íamos depois a cada uma das portas e estendíamos a mão para pedir esmola. Davam-me um pedaço de pão seco, bebíamos água de poço da aldeia e partíamos, dirigindo-nos a uma outra aldeia. Não lembro quantos dias e semanas passaram; o tempo avançava rapidamente, rolando como uma bola.

Numa cidade pequena, de cujo nome não me lembro, um velho amigo de Francisco, que outrora o tinha acompanhado num divertimento, viu que ele se achava no meio da praça, que dançava, cantava e anunciava suas novas mercadorias.

Surpreso, ele acorreu:

– Francisco, meu velho amigo – bradou-lhe , como degeneraste
desta maneira? Quem te pôs neste estado?

– Deus – respondeu Francisco, sorrindo.

– Onde estão tuas roupas de seda, a pluma vermelha de teu chapéu e
teus anéis de ouro?

– Satanás tinha-me feito tais empréstimos e já lhos devolvi.

O amigo olhava-o de cima; a capa em frangalhos, os pés nus, a cabeça
descoberta; interrogava-se e não podia compreender.

– De onde vens, Francisco? – perguntou enfim, compadecido.

– Do outro mundo – respondeu Francisco.

– E aonde vais?

– Para o outro mundo.

– E por que cantas?

– Para não perder o caminho.

O amigo sacudiu a cabeça, desesperado. Devia ter bom coração esse jovem porque pegou Francisco pela mão e me fez sinal para segui-los.

– Francisco, meu velho amigo, se compreendi bem, queres salvar o mundo. Mas ouve-me a mim também: entrou o inverno. Vem à minha casa para que, dando-te eu uma roupa quente, não morras de frio; em caso contrário, como salvarás o mundo?

– Trago Deus comigo – disse Francisco –, não tenho frio.

O amigo riu:

– Trazes Deus contigo – disse –, mas não basta. Tens necessidade de uma roupa quente. Tu que te compadeces de pisar até num verme, compadece-te também do teu corpo. Ele também é um verme. Envolve-o numa veste... E não esqueças que o corpo necessita de ti para salvares o mundo.

Sem ele...

– Tens razão – respondeu Francisco. – Isso deve dizer um homem instruído, pois tens muito bom senso. Sim, ainda é necessário o corpo. Vamos!

Chegamos à casa dele. O amigo era rico. Entrou num quarto e saiu segurando uma vestimenta longa de Iã grossa, um par de sandálias como as usadas pelos pastores e um cajado de pastor.

– São as vestimentas de meu pastor – disse ele –, veste-as,

Francisco olhou a roupa de lã e mediu-a em seu corpo; ela chegava até os pés. Ele punha o capuz, tirava-o e ria como criança.

– Gosto da roupa – disse enfim –, porque sua cor é idêntica à cor da terra, no outono, quando a cavam e, assim, faz lembrar a terra. Rufino, dá, pelo amor de Cristo, uma vestimenta semelhante também ao meu irmão Leão.
O amigo ficou contente.

– Seria divertido – disse ele – que eu permanecesse na memória dos homens por ter-te dado esta vestimenta, da qual fizeste um hábito de frade! Tens intenção, também tu, de fundar, como são Benedito, alguma ordem de monges?

– Eu? Ou Deus? É a Ele que deves perguntar. A Ele eu também pergunto.

Francisco afastou-se, vestiu o novo hábito, pegou um pedaço de corda no pátio e passou-o em torno da cintura. Entretanto, o amigo trazia-me também a minha vestimenta. Vesti-me, passei a corda em torno da cintura, e minhas costas aqueceram-se. Rufino pegou meu alforje, entrou na despensa e encheu-o de provisões.

Francisco estendeu a mão ao amigo e disse-lhe:

– Pega esta mão feita de terra! – O amigo riu e apertou-lhe a mão.

– Meu caro amigo, irmão Rufino, que Deus te conceda entrar um dia com este hábito de frade no Reino dos Céus. Até a vista.

– Onde? – respondeu Rufino, rindo. – No Reino dos Céus?

– Não, no reino da terra. Que Deus te conceda entrar um dia, tu também, no caminho da alegria perfeita.

Entramos de novo na estrada. O céu estava nebuloso e fazia frio.

– Viste? – disse Francisco, rindo. – Quando não pensas no que vais comer e vais
vestir, Deus pensa por ti e envia-te um Rufino com um alforje de alimentos e com duas mudas de roupa de lã.

Avançamos para leste. Estávamos, os dois, orgulhosos como crianças com nossas roupas novas. Dir-se-ia que tínhamos vestido nossa armadura e corríamos para a guerra.

– Não há alegria maior no mundo, irmão Leão, do que fazer a vontade de Deus.

Sabes por quê?

– Como posse saber, irmão Francisco? Esclarece-me!

– Porque aquilo que Deus quer é exatamente isso que também nós queremos, mas não o sabemos. E Deus então vem, desperta nossa alma e mostra-lhe o que ela quer, sem sabê-lo. Esse é o segredo, irmão Leão. Faço a vontade de Deus significa: faço a minha vontade, aquela que mais profundamence está oculta em mim. No íntimo, mesmo no homem mais indigno, há um servidor de Deus adormecido.

– Por esse motivo reconstruíste a capela de são Damião? Era uma vontade tua e não a conhecias e, assim, Deus veio em teu sonho e fez-te a revelação! Por isso abandonaste teu pai e tua mãe?

– Sim, por esse motivo. É por isso mesmo que abandonaste tudo e me segues.

– Mas às vezes – retruquei eu –, às vezes, irmão Francisco, temos muitas
vontades. Como saber qual delas é a vontade de Deus?

– É o mais difícil – respondeu Francisco, suspirando.

Fizeram-se ouvir trovões distantes. O ar exalava odor de chuva.

– E agora, Irmão Francisco, que vontade profunda tens em teu íntimo? Podes descobri-la antes que Deus te faça tal revelação?
Francisco abaixou a cabeça, como se estivesse de ouvido à escuta, e suspirou novamente.

– Não posso – disse por fim. – Sei perfeitamente o que não quero, mas não sei o que quero.

– O que não queres, irmão Francisco? O que odeias e temes acima de tudo? Perdoa-me por perguntar-te.

Francisco hesitou um instante. Abriu a boca e fechou-a de novo. Por fim, decidiu-se e disse:

– Ouve! Não gosto dos leprosos. Não posso vê-los. Basta ouvir de longe os guizos que trazem para que os transeuntes ouçam e se afastem; eu desmaio. Perdoa-me, meu Deus. Nada me repugna mais no mundo que os leprosos. Ele cuspiu. Repentinamente sentiu náuseas e tontura. Apoiou-se numa árvore para reanimar-se.

– E má, fraca e infeliz a alma do homem – murmurou. – Má, fraca e infeliz... Quando, Senhor, tu terás piedade dela, e quando a salvarás?
Começou a chover. Pusemos as capuchas, andávamos depressa para chegarmos à aldeia. Passou uma jovem.

– Abençoai-me, santos de Deus – disse ela, saudando-nos.
Francisco pôs a mão sobre seu coração, retribuiu a saudação sem erguer os olhos para vê-la. Ela era bela, bem-feita e graciosa.

– Por que não ergueste os olhos para vê-la, meu irmão? – perguntei-lhe.

– Como posse erguer os olhos e encarar a noiva de Cristo? – respondeu ele.
Caminhávamos continuamente na região deserta. Não havia, em parte alguma, sinal de ser humano. Fomos alcançados pela noite, e a chuva tornava-se cada vez mais forte.

– Procuremos uma gruta para abrigar-nos – disse eu. Deus não quer que prossigamos.

– Deus não quer que prossigamos, irmão Leão; tens razão. Então, nós também não o queremos!

Procuramos por todo o lado, na escuridão, na ladeira da montanha. Quando encontramos uma gruta, entramos. Francisco então deitou-se satisfeito.

Sobre o Autor

Nikos Kazantzákis: (1883/1957) nasceu em Heráklion (Creta). Freqüentou, por dois anos, na ilha de Naxos, uma escola de monges franciscanos. Em 1906, concluiu o curso de Direito, em Atenas. De 1907 a 1909 dedicou-se à filosofia, em Paris, recebendo grande influência de Bergson. Traduziu obras desse filósofo e também de Nietzsche. Além dessas, vale destacar traduções de outras grandes obras como A divina comédia, de Dante, o Fausto, de Goethe, a Ilíada e a Odisséia de Homero.
Kazantzákis escreveu uma tragédia de título Cristo (publicada em 1928); retomou o tema de Cristo na Odisséia (1938), e bem mais tarde, em 1945, publicou seus dois romances: O Cristo recrucificado e A última tentação de Cristo (adaptado para o cinema). Em 1956, recebeu o International Peace Award.

 

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