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RESENHAS
Lima Trindade : mitos, desencantos e os mortos muito vivos
Chico Lopes*
Conheço Lima Trindade (Vivaldo, ou, para mim, apenas Valdo) desde alguns anos, quando comecei a publicar alguns ensaios sobre filmes e livros no seu site, Verbo 21, por onde muita gente nova, que está escrevendo, já passou. Lá, publiquei um conto, "Debaixo de praga", que depois iria se juntar a outros tantos na antologia "Cenas da favela", organizada por Nelson de Oliveira e recentemente lançada pela Geração Eitorial/Ediouro. Ele escreveu com perspicácia e brilho sobre meu livro "Nó de sombras" e me entrevistou quando do lançamento de "Dobras da noite". Também esteve aqui em Poços de Caldas e se revelou de uma grande simpatia, de um calor humano especial, um calor que poderia ser classificado de baiano se ele não fosse brasiliense residente em Salvador e se, felizmente, essa questão de calor e simpatia não transcendesse geografias e tribos.
Vivaldo faz resenhas literárias muito bem, é bom leitor, atento às nuances das obras, meticuloso na análise e nas leituras (sei que nunca emite opiniões sem ter um quadro bem definido de influências, referências e informações em sua cabeça; faz parte de sua honestidade intelectual patente). Demorou um tanto para estrear em livros publicados, o que lhe dava certa angústia. De modo que li "Todo Sol mais o Espírito Santo", livro da Ateliê Editorial (coleção LêProsa, de Marcelino Freire) antes que tivesse a forma atual. E percebi um talento que tateava, que procurava a melhor direção para desabrochar. O livro, quando me chegou, foi lido meio às pressas e acabou por sair de minhas mãos, em circunstâncias que acho, em retrospecto, até bem poéticas. Mas, insisti junto a Valdo que me mandasse outro exemplar, o que ele fez recentemente. E aí, a releitura me deu uma dimensão mais precisa desses contos e de sua organização.
Impressionou-me, de cara, como a questão do Pai se desenha na primeira parte do livro. "Onde Monteiro Lobato errou?" é um conto admirável, em que a simples saída a passeio de dois jovens (que têm em comum pais que desapareceram misteriosamente) encobre um mundo de significados e um pano de fundo trágico - os desaparecidos da ditadura militar, famílias postas de cabeça para baixo - em que a ausência desse Pai assume agouros míticos. A história do Sumidouro já entreabre essa picada mítica, onde o próprio Moisés, admirado pelo narrador, mas também temido pelo perigo e a audácia que o possuem, irá se perder. Como se, debatendo-se num presente que desconhecem, os dois jovens precisassem desses mitos - a narrativa do Saci de Lobato, o relato do Sumidouro - para fazerem a passagem para a idade adulta. Passagem que deve passar pelo desencanto, necessariamente (pois o Saci claro que não aparece), e pelo terror, porque o Sumidouro é, de fato, capaz de tragar identidades e corpos em sua fúria real, ainda que metafórica. Os dois jovens precisam dessas grandes figuras ausentes de sua vida, sombras temidas, desejadas, e, por fim, introjetadas de maneira sombria em seus próprios passos.
Mas a figura retornará ainda com mais força na história comovente de "A meia-sola do sapato", num menino pequeno que precisa da confiança, da crença no pai, que o leva a sério, até descobrir que, por conveniência, por hipocrisia, para não perder a sua imagem de mando e autoridade, o seu pai mente, e o pune por não ajudá-lo a mentir. Este é o primeiro luto de uma alma que se forma: alguém em quem acreditamos piamente pode ser um impostor grosseiro. E isso terá ecos na história, e, mais ainda, num final aberto em que a perícia de narrador de Trindade me parece maior, visto que, discretamente, está tudo dito: esse menino ficou marcado pela traição, a traição crucial que definirá a sua vida: um Pai que não valia confiança. Também em "O autógrafo", dentro de um reino eminentemente masculino - o das torcidas juvenis de futebol - outra traição, outra impostura grosseira de uma figura masculina idolatrada, se consumará. Pergunto-me até onde poderá ir esse malogro profundo de Trindade com as imagos paternas.
E ele se consuma num dos mais belos contos da literatura brasileira, homossexual ou qualquer outra, escritos nos últimos anos, mas já em nítido caminho de compensação mitológica. É a história de um jovem, às voltas com um pai real insatisfatório, que topa com o pai ideal numa praia do Espírito Santo. As descrições aí são importantes, pois, em meio a elementos nitidamente míticos e essenciais como o Sol e o Mar, surge o pai como um deus pagão desejável, figura que se desdobra numa possibilidade de incesto homossexual que já estava em botão no pai comum (naturalmente, desapontador). Vê-se o herói do narrador de maneira um tanto idealizada (ele só existe como encarnação de certas idéias e sonhos para o narrador), um pouco como o Tadzio para o Von Aschenbach no mar de "Morte em Veneza", de Mann, e com a mesma tendência a se volatilizar como puro mito. Mas o conto é de uma ressonância profunda - faz pensar em todos os mitos que atravessam os sonhos e projeções homossexuais, nesse herói-deus compensador que, pagão, aí se funde a uma ambientação cristã e, por fim, para completar a fusão, tem-se a presença do sincretismo brasileiro, no rito de Yemanjá. É quase uma síntese das aspirações homossexuais em forma de mito e filosofia, mas síntese sustentada por uma narrativa hábil e precisa. Trindade construiu um conto ambicioso, e se deu muito bem.
Confesso que gosto menos de "Luz mortiça", pelo tema da tortura no período militar - que me parece excessivamente desgastado - e que contos como "Conto gótico" e "O anjo loiro no bar..." e "O pecado de Santa Helena" me parecem resvalar por vezes para o anedótico (o primeiro) enquanto os outros mostram o mundo das artes, das recordações dos anos 80 e 70, sob uma luz muito irônica, grotesca-desencantada. Provam que Trindade tem humor e que pode pintar bem tanto com as cores sombrias quanto com uma paleta mais amena, mas, nesse aspecto, é melhor realizado o conto "Calças de pintor", em que o pintor Toulouse - Lautrec se junta com lógica a uma brincadeira com o sátiro e o anão obsceno a partir de um incidente entre um casal de lésbicas.
Quanto a "Fim de linha", dos que mais gostei, é um conto de uma enxutez antológica. Conta tudo que é preciso não contando nada - é uma parábola, uma história de horror, e todos aqueles mortos no fim da linha do ônibus parecem estranhamente verossímeis, reais, brasileiros comuns no duro, dos duvidosamente vivos que encontramos pelas ruas. É um momento de grande força no livro todo, esse "Fim de linha" que me fez pensar em Juan Carlos Onetti, contista uruguaio maravilhoso. Há nele aquela melancolia de Onetti, que chega a dar desespero, de tão aguda.
Trindade tem talento, e é esperar pelos desdobramentos que esse talento ainda poderá oferecer. Ele pensa, no momento, em estruturas mais amplas, talvez num romance. No entanto, se dá muito bem com o gênero conto, não se sujeitando a escrevê-los curtos, para seguir modas, nem se rendendo aos excessos de não-pontuação e "transgressões" baratas. É um escritor novo que me parece orientado para finalidades maiores. Tomara as atinja.
Sobre o Autor
Chico Lopes:
Chico Lopes é autor de dois livros de contos, "Nó de sombras" (2000) e "Dobras da noite" (2004) publicados pelo IMS/SP. Participou de antologias como "Cenas da favela" (Geração Editorial/Ediouro, 2007) e teve contos publicados em revistas como a "Cult" e "Pesquisa". Também é tradutor de sucessos como "Maligna" (Gregory Maguire) e "Morto até o anoitecer" (Charlaine Harris) e possui vários livros inéditos de contos, novelas, poesia e ensaios.
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Francisco Carlos Lopes
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