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RESENHAS

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O interior de todos nós

Vivaldo Lima Trindade*

Não há uma forte tradição na literatura brasileira em produzir autores de livros de suspense. Alguns bons escritores, como Machado de Assis e Ricardo Ramos, praticaram o gênero ocasionalmente em narrativas curtas. Edgar Allan Poe, nos E.U.A. foi um dos grandes mestres dessa arte. Manter uma narrativa que se baseie na suspensão de um segredo primordial para a história é uma formula comum à prosa policial, de terror e, nos tempos da Guerra Fria, de espionagem. Culminou ainda numa expressão de cunho mais popular recheada de muito sexo e morte, o pulp, de que no Brasil são exemplo aqueles livrinhos vendidos em banca, com capas berrantemente coloridas e papel jornal, espécie de entretenimento descartável. O difícil mesmo é encontrar esse suspense puro, desligado do policial e do terror, e que, ainda assim, exiba rigor formal, apuro de linguagem e alguma criatividade. Pois é esse o caso de Nó de Sombras (Instituto Moreira Sales, São Paulo, 2000), de Chico Lopes.

Já no prefácio, Ignácio de Loyola Brandão afirma sua originalidade, incômodo e emoção que a leitura dos dez contos do livro lhe proporcionou. E remete ao cinema como fonte de comparação, talvez pelo fato do autor ser um estudioso da matéria. Fala também de seu caráter de independência por não correr atrás da mídia, mesmo residindo fora dos grandes centros - ele mora em Poços de Caldas - e sabendo da importância desta para se construir uma carreira bem-sucedida, sua oposição à auto-ajuda e à influência opressiva de Rubem Fonseca. Na verdade, o significativo é a literatura de Chico Lopes e está na destreza com que ele utiliza as palavras, na exatidão com que constrói o seu mundo a partir de um cenário de cidade do interior e na investigação que faz da alma humana.

O livro é de uma coesão e unidade impressionantes. Não fosse por uma clara divisão entre os três contos finais, enfeixados de evocações de memórias e passagens da infância para a vida adulta, e os demais, ter-se-ia uma estrutura aproximada de romance.

Todas as histórias se passam no interior. Contudo, esse interior é uma espécie de pano de fundo que projeta uma aguda sensação de desconforto e inadequação para as raias do psicológico, para o nosso interior. Chico Lopes abandona tanto o modelo idílico e naturalista quanto o trágico na relação com a natureza, hipocrisia religiosa, brigas de família, descoberta sexual e coronelismo político, que marcaram nossa literatura regional durante um bom tempo, para se concentrar na análise interior de um mal que padecemos e é universal: nossa incapacidade de amar, nossa solidão, nosso egoísmo e a morbidez na posse do outro. Nada aqui é simples ou simplório, uma forte tensão rege os relacionamentos. Em via de regra, as personagens principais são masculinas - excetuando-se em "Parque dos Cães" e "Na Gaveta", onde o masculino passa a ser o objeto de desejo de duas mulheres - e transitam em pequenas pensões, parques, farmácias, botecos e ruas não muito habitadas. As cidades que retrata, partindo desse ponto de vista, que é o do indivíduo, possuem a mesma complexidade das cidades grandes, metrópoles e megalópoles.

O suspense de suas narrativas é sentido numa linguagem nervosa, num clima de estranheza e violência cercando o cotidiano, em sombras que podem parecer pessoas ou idéias fixas, paixões ou ódios não declarados, porém manifestados em gestos e ações que vão se intensificando até ocasionarem uma ruptura com o mundano e com o falso equilíbrio a ordenar a vida.

O primeiro conto, "Parque dos cães", funciona como uma apresentação ou saudação de "boas-vindas". Um narrador onisciente vai nos anunciando os que seriam as personagens tradicionais a compor o cenário de uma cidadezinha do interior: o louco, o religioso, o comerciante, etc. Enquanto enumera os tipos, lentamente se desdobra de suas palavras um odor de sensualidade e violência contidas, que irromperão contra a mulher que é perseguida por cães vadios na rua. Ela se mudou para lá para ficar perto do ex-amante, agora casado. Enquanto sonha com sua volta, escuta velhas canções de filmes românticos de Hollywood. Esse alheamento da verdadeira natureza da cidade lhe será friamente cobrado. Bem como a Beatriz, em "A gaveta", que sente forte atração pelos homens que conhece, o açougueiro, o frentista do posto, o gerente do cinema, um menino insinuante, o bancário, etc., mas nenhum deles lhe agrada completamente, têm sempre algo de vulgar, de doentio, de sujo. Então, conhece um homem "diferente", um que lhe transmite confiança e faz com que se apaixone. Sua vontade de amar será a causa do seu infortúnio.

Se o nó tem a representação da convergência, ponto de encontro e elo, quando nó de sombras, sendo as sombras o reflexo e projeção de um mal, passará a ser a convergência dos males e problemas a atravessar todo o livro. E o ponto fulcral me parece ser a questão da construção do modelo de masculinidade. O homem, para ser homem, seguindo esse modelo, tem de necessariamente ser forte, bruto, insondável e jamais identificar-se com o que é tido como do universo feminino. Atributos como a delicadeza, sensibilidade e afeto são vistos como fraquezas. O homem foi feito para a ação. E em sua ótica, o sexo se resume ao prazer do corpo, nada mais. As crianças são ensinadas cedo:

"Na banca do Viana, as belezas da Ebal: capas impecavelmente desenhadas, Zorro e Tonto entre rochas, Tarzan atracado com um leão. Era o que havia de melhor: um mundo de heróis másculos, nutridos, movendo-se muito além do seu." (p.132)

É esse modelo instituído que pousa mudo nos contos de Chico Lopes e serve de condutor para os dramas e conflitos. As personagens masculinas fora desse padrão estão sempre se confrontando com outras que, além de serem encarnações vivas dessa masculinidade, demonstram ter uma consciência interior da condição do seu oposto:

"Parecia ciente de alguma coisa sua, profundamente interior, alguma vergonha irremissível de que ele mesmo tinha no máximo uma vaga cogitação." (p. 61)

Em defesa de seu mundo interior e dos velhos códigos de valores ele tentará destruir e dominar aquele que é inadequado. É o que acontece em "Um corpo no rio" e no conto de título malicioso "Nos fundos". Em ambos ocorre, logo no início da narrativa, uma situação em que a nudez das personagens as obrigam a uma comparação de seus genitais, sendo o tamanho o que definirá o aspecto da virilidade do macho. Percebe-se curiosidade e desconforto na constatação da superioridade do outro:

"Primeira vez que pensei em matá-lo? Não me lembro. Talvez naquela tarde, na beira do rio, quando o grupo, liderado por ele, teve que se render à evidência: nus, dele era o maior." (p. 35); e

"Despiu-se ali mesmo. Não tinha roupa de baixo, e sua nudez revelava uma superioridade viril que primeiro deixou-o admirado, depois obrigou-o a uma humilhada avaliação de esguelha." (p. 62).

A partir daí, instaura-se o jogo de dominação com variantes de resultado. Em "Um corpo no rio" o narrador tenta resistir a Nuno, um amigo. Já em "Nos fundos" um homem solitário que havia perdido o pai recentemente tem um estranho como hóspede, um mudo, que aos poucos vai lhe tomando o único bem: sua casa. Se, no primeiro conto, o narrador cometerá assassinato para se livrar da perseguição silenciosa que sofre de Nuno, no segundo haverá uma morte simbólica, o mudo emasculará seu bem-feitor a pedido do próprio. Será a entrega total, a negação da sua força e a legitimação do poder do mudo. João Silvério Trevisan, em seu "Seis balas num buraco só: a crise do masculino" (Editora Record, São Paulo, 1998), discute a questão da castração simbólica e a relação de poder que há no masculino:

"Para o macho, qualquer perda "implica a perda do falo" - seja com dinheiro, em propriedades, no amor, com a mulher, com os filhos, na sua posição profissional, em influência social. Tudo isso repercute no homem como perda de autoridade e, mais grave, uma provável perda da identidade masculina" (p. 51);

Tanto o narrador de "Um corpo no rio" quanto o solitário de "Nos fundos" são personagens ambíguas, deixando entrever sua atração, desejo ou amor por seus algozes, notando-lhes a beleza ou a falta que fazem.

Se o modelo de masculinidade baseado na força impossibilita uma relação emocional satisfatória entre um homem e uma mulher, entre homens ela parece um combate de forças iguais e contraditórias - o mais fraco contra o mais forte, o "feminino" contra o "masculino" -, uma luta incessante de personalidades, eus, sombras. É o que se depreende de "Do outro lado", onde paira o tema do duplo, um homem obcecado pela visão de uma sombra numa casa abandonada do outro lado da rua. O lado, aqui, ganha conotação não só de lugar palpável, contudo o de um diferente aspecto da personalidade, assim como em "O Médico e o Monstro". Ele é o único que vê a sombra, e sente atração e repulsa. O que vale lembrar nesse conto é que não é a idéia de uma homossexualidade mal resolvida o que o estiola, porém que essa personagem tem o mesmo perfil encontrado nas dos demais contos, possui uma sensibilidade incomum, o mesmo desconforto e inadequação, sendo ela, o feminino e a sombra, o modelo da virilidade.

Onde a homossexualidade surge como tema principal é no belíssimo "O clarão", história de um amor incestuoso entre dois irmãos narrada pelo jovem filho de um deles. Todavia Chico Lopes jamais é óbvio e não alimenta a intenção de explicar nada. Com sutileza ele conta apenas o que o menino vê. Mesmo reproduzindo os binômios forte-fraco/masculino-feminino, os irmãos dormem juntos, saem para caçar e pescar e demonstram felicidade e harmonia na companhia um do outro, chegando a provocar a ira da mãe do menino por ciúmes. O irmão mais jovem tem saúde fraca, aprecia desenhar e se torna dependente financeiramente dos irmãos. O mais velho ostenta um corpo rijo e másculo bigode. A censura social a esta paixão será exercida pela esposa, que tenta manter seu casamento mesmo sendo este infeliz, e faz de tudo para se livrar do rival, o cunhado.

Outra característica interessante de "O clarão" e que está presente também nos dois últimos contos, "A fresta" e "O recado", que tratam de iniciação sexual e voltam a apresentar personagens femininas destruídas por tal modelo de masculinidade, reside na formação de famílias com pais excessivamente rigorosos e geralmente ausentes e mães protetoras e sempre presentes.


"Nó de sombras" nos leva a refletir com muita propriedade sobre um tema difícil e que corre o risco de em mãos menos hábeis descambar em pieguismos, a questão do modelo de masculinidade e a livre expressão do amor e do afeto entre homens e mulheres. Isso tudo mediado pelo prazer e dor que um belo livro de suspense pode proporcionar.

Sobre o Autor

Vivaldo Lima Trindade: Vivaldo Lima Trindade é escritor, assinando apenas Lima Trindade. Tem publicados os livros "Supermercado da solidão" (novela) e "Todo o Sol mais o Espírito Santo" (contos). É também editor do site cultural Verbo 21 em Salvador, Bahia.

 

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