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RESENHAS
Inventário de estranhezas
Jeová Santana*
Matéria de autoria de Paulo Lima, do Balaio de Notícias, onde originalmente foi publicado.
“É quase um sacrilégio pensar em produção cultural nessa realidade infestada de gente cuja única preocupação é comer, beber e dormir. Nessas brenhas, empacou qualquer possibilidade de civilização”. A frase pertence ao livro de contos “Inventário de ranhuras”, a nova lavra do escritor sergipano Jeová Santana. Embora tenha como alvo Aracaju, a crítica (está no conto "Aracaju by night") se encaixa como uma luva nas microrealidades culturais do País. Se o fazedor de cultura tem o azar de nascer numa dessas brenhas e é bafejado pelo talento, terá de lutar contra inúmeros moinhos de vento para fazer prevalecer o seu ideal. Haja Quixotes para combater tantas dificuldades!
Jeová Santana arregaçou as mangas. Para publicar esse que é o seu terceiro livro de contos - pela LGE Editora, de Brasília -, teve de buscar o apoio oficial do Banco do Nordeste. Para completar o magro orçamento, amigos o ajudaram. Do bolso Jeová já havia pago a edição de “A ossatura”, sua obra anterior. Muito antes, estreara com “Dentro da casca”, publicado em iguais condições heróicas. São informações necessárias porque refletem um histórico comum a muitos escritores de talento, porém ainda desconhecidos do grande público no Brasil.
Escritor com passagem pela academia - sacou um mestrado em Teoria Literária na Unicamp-, Jeová explora o universo dos humilhados e ofendidos. Ele lança um olhar dostoievskiano sobre os personagens que estão e sempre estiveram bem aí, do nosso lado, no corpo a corpo com a sobrevivência, soterrados pela dureza da realidade severina do Nordeste. Na prosa de Jeová, eles ganham voz e relevância.
Divido em quatro partes – “Porões”, “Lâminas”, “Guardados” e “Alcovas” -, o livro reúne trinta e cinco contos marcados por uma narrativa ágil, de ritmo exemplar. Cada conto traz um desfecho surpreendente. São realidades que acabam por revelar profundidades insuspeitas, extraídas da aparente simplicidade dos personagens. Nas palavras da escritora Gizelda Morais, que assinou a orelha da obra, os títulos dos livros de Jeová
“nos remetem à sua temática principal - não o simples relato de um fato, mas a busca daquilo que está dentro dele, debaixo, no núcleo, no centro, nos ossos; a procura daquilo que explica as ranhuras, as fissuras, as estranhezas, as deformidades visíveis nos homens, nas mulheres, nas crianças”.
E essas deformidades se manifestam sob o amplo repertório dos preconceitos, da pobreza, da violência, do desencanto provocado pelos rumos inesperados da vida. Contos como “Noites de sol” e “A filha” mostram filhos desencaminhados, para desgosto dos pais. Em “Menina no telhado”, o machismo da sociedade patriarcal do Nordeste é observado pelos olhos de uma criança.
Mas Jeová não canta apenas a sua aldeia, com suas peculiaridades e seus dramas universais. No fundo, o que o interessa é aquilo que Clarice Lispector denominou de GH (gênero humano). Por isso, o escritor não se furta em explorar o tema da violência nas grandes cidades, seja no parque do Ibirapuera, seja num bairro do Rio de Janeiro. Neste sentido, a seqüência de narrativas curtas do conto “Relatos frios” é exemplar.
Em “Pertinho do céu”, também outra narrativa breve, a ação de um estuprador e sua sede de vingança social é mostrada na forma de diálogos secos e cortantes.
Em “Dois brasileiros”, um acidente fatal é contado à maneira pontual de um boletim de ocorrências.
Até mesmo a moderníssima forma de e-mail é utilizada em “O homem ideal”, conto no qual uma mulher expõe as suas razões a um ex-admirador.
No conto "Macacos", uma delirante fábula, os símios passam a ser treinados para ocupar postos de trabalho no mundo dos homens.
A realidade dos desocupados estão no conto "De homens e meninos". Não há como não reconhecê-los. "Os motivos são os mais díspares: perderam o emprego, foram corneados, ficaram doentes. Sempre há uma esquina em cada bairro onde um grupinho se estabelece. Todo mundo faz de conta que não os vê". Ejetados pela globalização, esses seres são as "vidas desperdiçadas", de que falou o sociólogo Zygmunt Bauman.
Todas essas histórias, e outras do livro, mostram um autor ligado às questões do seu tempo, com um olhar despido de preconceitos, sem qualquer intenção de se filiar a grupos literários, ou de exercer a literatura pela literatura. Segundo o raciocínio de um personagem do conto “Duas ocorrências”, que traz a elucidação de um crime, “nem tudo que está no mundo está nos autos”. Devidamente adaptado, poderia ser entendido assim: nem toda a estranheza do mundo pode ser explicada pelas lentes da literatura. Mas prosas como as do escritor Jeová Santana nos dão a sensação de desfazer, ao menos por um fugaz instante, parte do mistério.
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Matéria de autoria de Paulo Lima, do Balaio de Notícias, onde originalmente foi publicado.
Sobre o Autor
Jeová Santana: O poeta Jeová Santana nasceu em Maruim (SE), em 17 de outubro de 1961. Dizer que ele é graduado em Letras (UFS) e Mestre em Teoria da Literatura (Unicamp) é muito pouco para quem já publicou livros do quilate de A ossatura, Dentro da casca (contos, 1993); e tem uma série de poemas publicados em tantos outros lugares. Recentemente teve a alegria de ver alguns deles publicados na revistas Cult (SP) e Poesia Sempre (RJ), só para citar... Trabalha na rede estadual de ensino como professor de língua portuguesa, literatura e redação.
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