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A CONCHA VAZIA DO AMOR: OS 180 GRAUS DE MÁRCIA DO VALLE

Vivaldo Lima Trindade*

Este o nosso destino: amor sem conta,
distribuído pelas coisas pérfidas ou nulas,
doação ilimitada a uma completa ingratidão,
e na concha vazia do amor a procura medrosa,
paciente, de mais e mais amor.
Carlos Drummond de Andrade


Rio de Janeiro, chuva abundante. Uma mulher tem medo de entrar no banheiro. Está sozinha. Os barulhos da casa a assustam. Esta é a primeira cena de 180 graus, primeiro livro de Márcia do Valle, (Editora Marco Zero, 160 p.) que em estilo fluido, simples e intimista, apresenta com riqueza de detalhes cotidianos, e em forma de moderno diário feminino, a história de Clara. Nem sempre tão assustada, a jovem executiva bem sucedida reflete sobre seus relacionamentos, valores, e sua condição de imobilidade emocional, a partir do questionamento do eterno sonho romântico do casamento com o homem perfeito.

O leitor curioso certamente encontrará o mesmo tom intimista e detalhado nos relatos supostamente verdadeiros e nos pequenos contos e poemas encontrados em seu Blog, cujo endereço está indicado na contra capa do livro. Lá estão os rascunhos de muitas páginas de 180 graus, e o leitor curioso, sem pistas reais, acaba condenado a permanecer entre a ficção e o registro biográfico.

Em direção diametralmente oposta da personagem que narra a si própria, ou a 180 graus de Clara, estão os registros de outro diário, que intercalam-se desde as primeiras páginas, este, o diário de uma mulher francesa, sem nome, que no final, cruza o caminho da carioca de forma anônima e abrupta.

A estrutura do livro, assim dividida, marca as experiências de duas mulheres diferentes que desejam a mesma coisa: encontrar a si mesmas e ao amor. Os homens falam muito pouco. São falados pelas mulheres que se expressam sem restrições, num efeito de fuga pelo papel, que recebe as possibilidades, as indagações, os medos, e especialmente os inúmeros “e se...” a que Clara se dedica, em seu complexo mundo interior.

Seguindo o estilo livre de Márcia do Valle, nos deparamos com a “radiografia” da vida de uma mulher casada com “o homem certo”, sujeita aos padrões sociais de sucesso e beleza, mas que é capaz de filosofar sobre o que “faz sentido” no mundo do trabalho, da família e do amor. Todas as suas máximas se valem do mais simples cotidiano, produzindo expressões como: “O que é bom tem de vir em pequenas quantidades, nem que seja para a pessoa repetir várias vezes e se achar gulosa. Por isso a caixa de Bis vem com vários chocolatinhos pequenininhos embalados um a um”. Ou quando, ao contrário do tom geral de reflexão e melancolia, quase faz humor ao refletir sobre o tempo na academia de ginástica, obrigação a que se submete: “Talvez aquela academia fosse uma máquina do tempo, um lugar onde o tempo passasse em outra velocidade...Melhor ainda, se ficasse dez minutos na esteira, quando chegasse em casa, descobriria que duas horas haviam se passado e o marido já estava dormindo.”

Enquanto Clara se debruça em seus pensamentos, presa em eterna indecisão e envolvida com o pensamento da culpa, seu duplo se libera cada vez mais, a ponto de conseguir deixar corajosamente seu casamento estável e avançar em direção a um outro amor, elaborando uma nova etapa de vida.

A diametralidade entre as duas personagens realmente se completa quando Clara, que desejava secretamente que o marido a traísse, para lhe fornecer uma razão mais visível e menos culpada para sair do relacionamento, se depara com uma mulher francesa em sua cama.

Realizado o desejo secreto, que lhe daria as condições ideais para a saída, em vez de dar seguimento aos seus planos, e iniciar nova vida, vê-se de volta ao cenário do primeiro capítulo, e em vez da planejada guinada de 180 graus que a traria para a posição de liberdade que a outra ocupa, acaba por dar uma volta completa, de 360 graus, ao ligar o gás no mesmo banheiro solitário do cenário inicial e desistir da vida.

Apesar de tão moderna, Clara desejava mesmo que o tradicional sonho romântico pudesse ser verdade. Assim, Márcia do Valle faz ecoar outra Clara, a de Drummond, em “Lembrança de um mundo antigo”. Uma moça que convivia com jardins e manhãs e cujos desejos eram tão simples quanto aquele tempo. A diferença está em que esta Clara, tão romântica quanto a outra, procura algo que no caótico mundo moderno parece tão difícil de encontrar: o amor.

por Flávia Aninger de Barros Rocha, no VERBO 21

Sobre o Autor

Vivaldo Lima Trindade: Vivaldo Lima Trindade é escritor, assinando apenas Lima Trindade. Tem publicados os livros "Supermercado da solidão" (novela) e "Todo o Sol mais o Espírito Santo" (contos). É também editor do site cultural Verbo 21 em Salvador, Bahia.

 

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