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RESENHAS
Alguém para Correr Comigo
David Grossman*
Assaf é um garoto de dezesseis anos que gosta de futebol, de fotografia e de passar as horas livres no computador. Durante as férias, arrumou um emprego temporário na prefeitura de Jerusalém. Ele não sabe, mas sua vida logo vai ser atingida por um turbilhão. A garota Tamar tem a mesma idade de Assaf e um plano audacioso e urgente - ela precisa libertar seu irmão Shai de uma organização clandestina que escraviza jovens artistas e os prende num albergue sinistro, onde músicos, malabaristas, cuspidores de fogo, contorcionistas e cantores são abastecidos com heroína e outras drogas. Tudo começa quando Assaf sai numa corrida desenfreada pelas ruas de Jerusalém atrás de um cachorro. Sua tarefa - encontrar o dono do animal. Tamar, por sua vez, passa a viver nas ruas, como cantora. Ela também está empenhada numa missão, e o acaso reservou um encontro secreto entre ambos. Para escrever o livro, David Grossman empreendeu uma pesquisa minuciosa e entrevistou inúmeros jovens que vivem nas ruas de Jerusalém. Alguém para correr comigo é um romance que combina elementos do realismo a um tratamento fabular inventivo. A narrativa cativa o leitor desde a primeira linha e segue num jogo de revelação e suspense até as últimas páginas. O resultado é um romance sofisticado e envolvente, para leitores jovens e adultos.
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Um cão galopa pelas ruas, e atrás dele corre um rapaz. Uma longa corda une os dois e se embaraça nas pernas das pessoas, que ficam passando de um lado a outro, e se irritam e xingam; o rapaz murmura sem parar: "Desculpe, desculpe", e, em meio às desculpas, grita para o cachorro: "Pare! Stop!", e uma vez, cúmulo da vergonha, escapa-lhe também um "Porra!". E o cachorro continua correndo.
Ele voa, cruza ruas cheias de tráfego e ultrapassa sinais fechados. Seu pêlo amarelo some da vista do jovem e reaparece entre as pernas dos transeuntes, como sinais de um código. "Mais devagar", grita o rapaz, e pensa que poderia chamá-lo pelo nome se soubesse qual é, e talvez então o cão parasse de correr, ou ao menos diminuísse a velocidade; mas, no fundo do coração, ele sente que ainda assim o cachorro continuaria correndo e, mesmo que a corda aperte seu pescoço até sufocar, ele vai correr desenfreadamente até o local aonde quer chegar, e tomara que cheguemos mesmo, e que ele finalmente me solte.
Tudo isso acontece numa época não muito boa. O jovem, Assaf, corre para a frente, mas seus pensamentos ficam para trás, encalhados; ele não quer pensar, precisa se concentrar totalmente na correria do cachorro, sente que os pensamentos vão se arrastando atrás dele como uma corrente de latas enferrujadas. A lata da viagem de seus pais, por exemplo. Neste exato momento estão sobrevoando o oceano, pela primeira vez na vida viajam de avião, afinal por que tiveram de viajar tão de repente? E a lata da sua irmã mais velha, em quem ele simplesmente tem medo de pensar, pois dali só saem problemas; e há outras latas, pequenas e grandes, que ficam batendo umas nas outras dentro de sua cabeça, e, lá no final da corrente, vai se revirando a lata que se arrasta atrás dele já há duas semanas; o som que ela faz o deixa maluco, é um ruído infernal, insistindo que ele tem de se apaixonar loucamente por Dafi, pois, afinal, por quanto tempo é possível adiar? E Assaf sabe que precisa parar um momento, ajeitar um pouco a irritante corrente de latas, mas o cachorro tem outros planos.
"Que inferno!", geme Assaf, pois um momento antes de a porta se abrir e o chamarem para ver o cachorro, ele estava perto, muito perto, do lugar preciso e exato da paixão por ela, Dafi. Chegara a sentir como finalmente atingia seu ponto de recusa no fundo do estômago, a voz calma e suave que lhe sussurrava: ela não é para você, essa Dafi, ela só pensa em ferrar os outros, passar por cima de todo mundo, especialmente de você; por que você precisa continuar com essa encenação boba, noite após noite? E então, quando estava quase conseguindo silenciar a voz provocadora, abriu-se a porta da sala onde, na última semana, ficava todo dia das oito às quatro; no vão da porta estava Abram Danoch, magro, moreno e amargurado, vice-diretor do Departamento de Saúde Pública da prefeitura, mais ou menos amigo do seu pai; fora ele quem lhe arranjara trabalho para todo o mês de agosto. Disse-lhe para deixar de ser preguiçoso, e vir imediatamente junto com ele até o canil, pois até que enfim havia trabalho para Assaf.
Danoch caminhava depressa, explicando algo sobre um cachorro, e Assaf não prestou atenção; geralmente precisava de alguns segundos para passar de uma situação a outra. Foi se arrastando atrás de Danoch ao longo dos corredores da prefeitura, por entre pessoas que vieram pagar taxas e impostos, ou se queixar de vizinhos que haviam feito construções sem alvará, e desceu atrás dele a escada de emergência em direção ao pátio dos fundos. Tentou sentir dentro de si se já havia conseguido eliminar o último ponto de oposição a Dafi, e o que diria à noite a Roy, que exigia que ele deixasse as indecisões de lado e começasse a se comportar como homem. E, mesmo de longe, já conseguia ouvir os latidos agressivos e insolentes, e se assustou, pois geralmente todos os cães latiam juntos, às vezes o coro deles chegava a perturbar seus sonhos no terceiro andar. Agora havia apenas um cachorro latindo. Danoch abriu uma portinhola na cerca, deu meia-volta e disse a Assaf alguma coisa difícil de entender por causa dos latidos, abriu uma segunda portinhola e, com um gesto, indicou-lhe que entrasse e percorresse a estreita trilha entre os cercados dos cachorros.
Era impossível enganar-se. Era impossível pensar que Danoch trouxera Assaf por causa de algum outro cão. Havia ali oito ou nove cães, cada um deles trancado no seu próprio cercado, mas na verdade havia um único cachorro, era como se ele sugasse para dentro de si todos os outros, deixando-os silenciosos e ligeiramente assustados. O cão não era muito grande, mas era vigoroso e feroz, e estava visivelmente desesperado. Assaf jamais tinha visto tal desespero num cão. Jogava-se seguidamente contra a cerca de arame, e toda a fileira de cercados tremia e balançava, e então ele emitia um som alto e assustador, uma estranha mistura de uivo e lamento. Os outros cães, em pé ou deitados, o fitavam em silêncio, com perplexidade e até mesmo reverência. Assaf teve uma sensação estranha, de que se visse um comportamento desse em algum ser humano se sentiria obrigado a ir ajudá-lo, ou teria de sair dali para que a pessoa pudesse ficar sozinha com suas preocupações.
Nos curtos intervalos entre os latidos e as furiosas investidas contra o cercado, Danoch fala depressa, em voz baixa. Um dos fiscais trouxe o cachorro anteontem de uma batida no centro da cidade, ao lado da praça Zion. No começo, o veterinário achou que se tratava de um estágio inicial de raiva, mas não havia nenhum sintoma e, com exceção da sujeira e de algumas feridas localizadas, o estado geral era saudável. Assaf repara que Danoch fala pelo canto da boca, como se quisesse ocultar alguma coisa do cachorro a quem se refere: "Ele está desse jeito já faz quarenta e oito horas", murmura Danoch, falando para o lado, "e a bateria ainda não descarregou. Que belo animal, hein?", acrescenta, e se empertiga um pouco quando o cão lança um olhar, "não é um simples cachorro de rua".
"Mas quem é o dono?", pergunta Assaf, e logo se arrepende, pois o cão se atirou de novo contra a grade e acirrou o alarido no canil. "É exatamente isso", choraminga Danoch, debatendo-se na sua aflição, "é exatamente isso que você vai ter de descobrir." "Mas como?", assustou-se Assaf. "Onde é que vou achar o dono?" E Danoch responde que no instante em que esse cão—e usa a palavra em árabe, como um xingamento—sossegar um pouco, a gente pergunta a ele. Assaf olha sem entender, e Danoch diz que simplesmente fariam o que sempre se faz em situações como essa, amarramos o cão numa corda deixando que ele se vá, e vamos atrás durante algum tempo, uma, duas horas, e ele próprio nos conduz diretamente até os seus donos.
Assaf julgou que era pilhéria, quem já ouviu uma coisa dessa? Mas Danoch tirou do bolso da camisa um papel dobrado, e disse que, antes de entregar o cachorro, era muito importante fazer que os donos assinassem aquele formulário, o modelo 76. Ponha no bolso, Assaf, e cuide para não perder, a verdade é que você me parece um pouco desnorteado, pois é fundamental você explicar a ele, o prezado dono do cão, que a multa anexa—uma multa de cento e cinqüenta paus, e é multa ou processo—ele é obrigado a pagar, primeiro porque a responsabilidade de cuidar do cachorro é dele, e talvez com isso aprenda a lição, e segundo, como uma indenização mí-ni-ma (Danoch mastigou com prazer cada sílaba) por toda a confusão e perturbação que causou à prefeitura, e pelo tempo perdido por uma força de trabalho es-pe-cia-li-za-da! E agarrou Assaf com força pelo cotovelo dizendo que, após encontrar os donos do cachorro, ele poderia voltar à sua sala no Departamento de Águas, e continuar ali se coçando até o fim das férias de verão, por conta dos contribuintes.
"Mas como é que eu posso…", objetou Assaf, "olhe só para ele… ele parece meio louco…"
E então aconteceu: o cão ouviu a voz de Assaf. Parou de repente. Cessou de investir contra o cercado. Aproximou-se devagar e fitou Assaf. Suas costelas ainda arfavam intensamente, mas os movimentos se tornaram mais vagarosos, seus olhos pareciam muito profundos e concentrados. Virou a cabeça para o lado, como se estivesse considerando o comentário de Assaf, e Assaf pensou que o cão ia abrir a boca para dizer numa voz perfeitamente humana: Louco é você!
O cão se ajoelhou e em seguida se deitou sobre a barriga, inclinou a cabeça, e suas patas dianteiras se enfiaram debaixo do cercado, num movimento de cavar, como se estivesse suplicando, e da sua garganta escapou um som novo, fino e agudo, como um choro de filhote, ou de criança.
Assaf se agachou diante dele, do outro lado do cercado. Ele o fez sem perceber. Até mesmo Danoch, sujeito duro, que havia arranjado o trabalho para Assaf sem muito prazer, sorriu levemente ao ver como Assaf se ajoelhou num piscar de olhos. Assaf olhou para o cão e falou calmamente com ele: "A quem você pertence? O que aconteceu com você? Por que está tão agitado?". Falou devagarinho, deixando espaço para as respostas, sem perturbar o cão com olhares prolongados demais. Ele sabia—o namorado de sua irmã Réli lhe havia ensinado—a diferença entre falar para o cão e falar com o cão. O cão resfolegava, permanecia deitado, e então, pela primeira vez, pareceu frágil, cansado, menor do que parecera até então. Finalmente fez-se silêncio no canil, e os outros cães começaram a circular em seus cercados e voltar à vida. Assaf enfiou um dedo por uma das brechas do cercado e tocou sua cabeça. O cão não se mexeu. Assaf acariciou com o dedo o pêlo, que estava sujo e pegajoso. O cão começou a choramingar intensamente, incessantemente, como se estivesse ansioso. Como se precisasse contar alguma coisa para alguém, algo que não conseguia mais guardar só para si. Sua língua vermelha tremia, seus grandes olhos cheios de ansiedade.
E, por causa desse momento, Assaf não discutiu mais com Danoch, que rapidamente aproveitou a calma do cachorro, entrou no cercado e amarrou uma corda comprida à coleira laranja, oculta no emaranhado de pêlos.
"Vamos, pegue-o", ordenou Danoch, "agora ele irá com você como um bonequinho", e recuou um pouco ao ver de repente o cão do lado de fora do cercado, como se, de um momento para o outro, ele tivesse se livrado de todo o cansaço e submissão, olhando para os lados com irritação renovada e farejando o ar como se tentasse escutar alguma voz longínqua. "Veja só, vocês dois já estão se entendendo", Danoch tentava convencer a Assaf e a si mesmo. "Você só precisa tomar cuidado quando estiver andando com ele pela cidade, eu prometi ao seu pai." As últimas palavras sumiram na sua garganta.
Nesse ínterim, o cão tinha ficado concentrado e alerta. Sua expressão se tornara aguçada, e por um momento ele pareceu um lobo. "Escute", murmurou Danoch com um leve remorso, "tudo bem se eu mandar você com ele desse jeito?" Assaf não respondeu. Apenas observou surpreso a mudança que ocorrera no cachorro ao se ver livre. Danoch o agarrou de novo pelo cotovelo: "Você é um rapaz forte, e sabe disso, é mais alto que eu e que seu pai; vai conseguir controlá-lo, não vai?".
Assaf quis perguntar o que deveria fazer se o cão não o conduzisse ao dono, e até quando teria de ficar correndo atrás dele, (no refeitório, sobre a mesa, estavam à sua espera os três sanduíches do almoço); e se o cachorro tivesse brigado com os donos, e não tivesse a menor intenção de voltar para casa…
Essas perguntas não foram feitas naquele momento, nem nunca mais. Assaf não voltou a se encontrar com Danoch naquele dia, e tampouco nos dias seguintes. Às vezes é tão fácil determinar o instante exato em que algo—a vida de Assaf, por exemplo—começa a se modificar, inconscientemente, irreversivelmente, para sempre.
Pois assim que a mão de Assaf se fechou em torno da corda, o cão se arrancou de seu lugar com um impulso súbito, arrastando Assaf consigo. Danoch esticou o braço, assustado, conseguindo ainda dar um ou dois passos atrás do impotente Assaf, chegando mesmo a correr atrás dele—mas tudo isso não adiantou nada. Assaf já percorria velozmente o estreito corredor da prefeitura, tropeçando pelos degraus, saindo desenfreado para a rua. Depois colidiu contra um carro estacionado, contra uma lata de lixo, contra os transeuntes. Ele corria…
Sobre o Autor
David Grossman: O israelense David Grossman nasceu em 1954, em Jerusalém, onde estudou filosofia e teatro antes de começar uma longa carreira como repórter da Rádio Israel. Jornalista respeitado em seu país e no exterior por sua cobertura do conflito entre judeus e palestinos (O vento amarelo e Dormindo na corda-bamba), Grossman é ainda o autor premiado e mundialmente traduzido de vários livros infanto-juvenis e de sete romances que vão da crônica da Jerusalém contemporânea em Alguém para correr comigo às sutilezas amorosas e formais de Ver: Amor.
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