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RESENHAS
O Silêncio e o Vazio da Vida Ordinária
José Aloise Bahia*
Ronaldo Cagiano é o poeta do término do dia e o início da noite. Seus versos refletem possíveis sombras "de luz e calor dos homens que não souberam espalhar o fermento hierático de doida esperança" (1). Crepusculares são também os seus contos. Trevas de um cotidiano sem saídas. Labirinto puro demarcado por prédios, avenidas e a secura do ar de Brasília. Ficções extremas e profanas - brutais - dentro de uma arapuca candanga, onde os personagens castigados pelas patologias da urbanidade transitam, lado a lado com a história, corroídos pelo silêncio e o vazio de suas vidas ordinárias. Consumidos e cuspidos para o subúrbio pela voraz e enfurecida revolta de uma metrópole que desconhece a sua gente. Desesperança pura.
O reino inadaptável duma simbiose da topografia de um espaço qualquer, numa cidade qualquer, abafado pela incômoda psicologia do tempo. Duas variáveis fundamentais que entremeadas às histórias dão vida a underground materialidade dissonante e criativa de um concerto regado a óbitos, tédios, condenações kafkianas, descrenças, contradições, êxodos, subempregos, decadências, gardenal e hemorragias dolorosas. Derramadas numa lógica veloz, tumultuada e vulcânica. Diante do mal-estar, e sem a mínima consciência dos movimentos e da realidade dos sentimentos, inexiste qualquer eco mágico que possa criar uma mensagem sagrada e redentora para aplacar a solidão, a privação e a exclusão profunda dos personagens de Concerto para Arranha-Céus (LGE, Brasília, 2004). Uma coleção de 30 contos do mineiro Ronaldo Cagiano. Hoje, morador do Distrito Federal.
Reiniciando na ficção é imprevisível na criatividade. Talentoso nos manejos da linguagem, com o uso de parágrafos disformes - parecendo contar uma história dentro da outra -, inundados por epígrafes, referências, interlocuções polifônicas estruturadas e pontuadas por uma imaginação fértil. No geral, as histórias são uma série de narrativas movediças e pungentes, fincadas numa realidade espinhosa e intercambiadas pelo uso alternado da primeira e terceira pessoas. Uma denúncia social e (con)fusão de gentes num mar de cólera e espanto em suas Vias-Crúcis. "A geografia dessas águas fabrica desafios, enquanto no rosto mareja o sacrifício da espera" (2). Não pensem que é um livro qualquer. Demanda tempo e olhos atentos na leitura para não perder o fio da meada e a seqüência da vida ordinária de políticos corruptos, funcionários públicos, engravatados, bêbados, devedores, mendigos, diabéticos, cancerosos, marginalizados, ratos e homens, vinhas da ira, miseráveis de todos os graus - uma possível escória da contemporaneidade.
Óbito 75.888 - Há três contos exemplares. Interessante é que são os três primeiros do livro. Num deles, à moda de Mauro Pinheiro, dedicado a Moacyr Scliar e uma homenagem a Samuel Rawet, "Óbito 75.888", relata a história de um determinado funcionário público que, certo dia, desaparece do trabalho. Teria se mandado do emprego? Abandonado a cidade? Uma depressão de fim-de-semana? Para os colegas de trabalho impossível saber. Tinham lá as suas desconfianças, pois se trata de um homem que tem Tolstoi e Borges na estante. Detesta Paulo Coelho, best-sellers americanos, usa Lexotan e guarda uma carta num envelope de Ituiutaba, Minas Gerais, com as iniciais LV do remetente (com certeza, o leitor deve saber de quem são estas iniciais). Lá pelo quarto dia, o chefe, com a pulga atrás da orelha fica assombrado, pois ele nunca tinha sumido tantos dias como agora. Insistentemente liga, liga, liga, até a linha cair. Ao mesmo tempo, um repórter telefona para arrancar uma entrevista com o escritor (sim, o funcionário público era um escritor), e nada. Silêncio Absoluto. Preferiu arriscar, e foi parar no subúrbio. Deu com os funcionários do IML retirando o corpo em adiantado estado de putrefação. Haviam-no encontrado com a cabeça dentro de um prato de Sopa Knorr e a Telefunken ligada "chuviscando". Mais detalhes: vale ler o conto. Um dos melhores do livro.
A temática da morte também campeia "A Marca". Uma trajetória impotente, desencantada e desesperançosa do filho que volta à cidade natal para enterrar o pai. No seu delirante retorno, o personagem é embalado por uma sublime perturbação, um recôndito desejo, fazer o que queria quando mais novo: visitar o túmulo de Baudelaire em Paris. Mas teve que se contentar com o túmulo de Augusto dos Anjos - enterrado em Leopoldina, cidade vizinha a terra natal de Cagiano: Cataguases, Minas Gerais. "A Marca" é um mix de encontro real e fictício para um anônimo dividido, acinzentado e carcomido pelas dores da procura da essência em suas crises existenciais. O remorso atinge o clímax apartir da lembrança das manchas de sangue no cimento, a nódoa que não diluiu, sinal de uma culpa irremediável: a morte do irmão menor, na infância, esmagado por um caminhão de areia. Outro conto que merece uma leitura mais atenta é "A Cidade Proibida". Formatada dentro de "Uma geografia sinistra neste ambiente retórico de fumaça e decadência" (2). Uma prolongada espera de um caminhante que vive de maneira tediosa e vazia. Uma viagem sem volta até os confins de uma cidade que não o tolera mais. Uma fuga cansada da metrópole proibida, carimbada por uma vida devorada pelo pão que o diabo amassou, de extorsiva mediocridade e cooptadora alienação. Uma aliteração fatal: uma transcendência reflexiva cujo fim é o grito surdo de um estopim metálico.
Nota-se também a presença de pequenos contos desassossegados, descrentes de gente sofrida que não tem senão como remédio matar para prolongar a vida, diante da insistência de cobradores de aluguéis atrasados de barracões suburbanos. Nesta série de pequenas narrações, lá pelo meio do livro, existem invocações de todas as ordens: internete, contravenções, invasões, sobreviventes (parece lembrar de longe os contos de Rubem Fonseca), cifras, paralisias - exílios do tempo presente -, resquícios da ditadura militar e alguns acertos de contas com a história e a literatura. Na parte final, num dos contos mais longos, "Todas as Estações", alternam-se pequenas histórias de pivetes, crianças doentes, donas de casa, estudantes e a prostituição galopante. As fragmentações e as retomadas das histórias beiram o roteiro de cinema para um filme elétrico, instigante e documental. Tendo como palco um metrô embalando pessoas que remoem o passado em leituras simplistas e superficiais. Um trem em movimento rasgando as asas da cidade de Norte a Sul. Pintado por painéis realistas, nus e crus, cozidos por estampas de antipatias, humor doentio e crônico, reveladores da incapacidade dos seres de relacionar-se entre si num mundo cão e tortuoso. Tal qual um prédio plantado à beira de um precipício, onde moram a privação e as perdas habituais da vida de seres esquecidos sem quaisquer perspectivas.
A Bagagem de Cagiano - Fundamentalmente poeta, entretanto regido pela máxima de Baudelaire, "Seja poeta, mesmo em prosa", Ronaldo Cagiano desde 1979, quando chegou em Brasília (onde trabalha como bancário), não parou de escrever (coisa que fazia desde a adolescência). Após os rascunhos iniciais, já publicou: Palavra Engajada (poesia, 1989), Colheita Amarga & Outras Angústias (poesia, 1990), Exílio (poesia, 1990), Palavracesa (poesia (1994), O prazer da Leitura, em parceria com Jacinto Guerra (contos juvenis, 1997), Prismas: literatura e outros temas (artigos e resenhas, 1997), Canção dentro da Noite (poesia, 1999), Espelho, Espelho Meu, uma nova parceria com Joilson Portocalvo (novela juvenil, 2000), Dezembro Indigesto (contos, Prêmio Bolsa Brasília de Produção Literária 2001) e organizou as coletâneas Poetas Mineiros em Brasília (2001) e a Antologia: conto brasiliense (2004). Uma bagagem e tanto. E foi justamente o prêmio por Dezembro Indigesto que o fez voltar à ficção. O trabalho realmente toma forma, e o encoraja a vislumbrar também o romance. Pretende lançar em 2005, em dose dupla, O Corcunda de São José dos Campos, cuja temática é a política no interior do Brasil, com seus centralismos, mandos e desmandos, e Os Filhos de Kafka, alicerçado em histórias dos bastidores do poder em Brasília nos últimos 20 anos. Os filhos de Kafka narra os encontros e desencontros de um funcionário público (tipologia constante nos contos, e, agora, também nos romances), Frederico Tocantins, uma pessoa atormentada que não consegue se enquadrar neste mundo globalizado e individualista.
A produção não para por aí. O autor também aguarda a publicação de mais dois livros. O Fio da Meada, infanto-juvenil em dupla com Whisner Fraga e outro livro de contos: A Cidade Proibida e Outros esboços de Solidão e Espanto, já no forno da editora paulista Outras Palavras, cuja temática reverbera a solidão e a incomunicabilidade dos personagens - assuntos prediletos de Milan Kundera - neste mundo bem/mal dito pós-moderno. As influências do autor são diversas, indo de Augusto dos Anjos, Carlos Drummond de Andrade, Manoel Bandeira, Ferreira Gullar, Thiago de Melo, Paulo Leminski e Torquato Neto na poesia e João Antônio, Samuel Rawet, Luiz Ruffato no conto, como chama a atenção Nelson de Oliveira na contracapa de Concertos Para Arranha-Céus.
Para Cagiano escrever é "a oficina de sonhos que hiberna no rigor de tantos (des)caminhos" (3). Portal que permite encaixar com uma certa plenitude e precisão as palavras na criação de uma sinfonia ficcional ou poética independente e redentora. Preciosa por tocar nas feridas da contemporaneidade, e que leve à reflexão, oposto aos modismos, falsas rupturas conceituais, esnobismos e ostentações típica da mentalidade noveau riche. O que realmente conta é a qualidade, a articulação dos seus textos e a solidez da sua imaginação. Por mais que as temáticas sejam as frustrações e as incoerências deste tempo coroado for falsas imagens de leituras fáceis, Cagiano sempre acreditou que a "literatura é sobrevivência; pulmão e evangelho; exorcismo e apaziguamento; catarse e reflexão". Impaciente, aprendeu a reinventar as coisas. A dizer não. Navega por uma trilha fecunda, esclarecedora - com fluxos da memória e consciência das coisas - que realmente faz sentido neste mar de mundo que são as contradições humanas.
Trecho de Concerto para Arranha-Céus: "A corrupção, a solidão do poder, a transitoriedade das pessoas, a empáfia da classe média, o verniz dos poderosos, a indigência dos puxa-sacos, a miséria da periferia, as invasões, a grilagem em terras públicas: síndrome da cidade adulterada, que expulsou os que a levantaram, estupro aos sonhos dos criadores - tudo isso o comovia e inquietava: Brasília aos quarenta anos, de rugas já feita, expeliu os homens, babélica realidade, sodomizada pelas cópulas de suas cúpulas num tempo estranho em que tentava fugir de seus miasmas, de suas CPIs arquivadas, de seus propinodutos por onde sumiam verbas e a esperança." (A Cidade Proibida, pág. 23)
Referências:
(1) Tem(l)o de (Re)colher, in "Canção Dentro da Noite/Poesia/Ronaldo Cagiano" (1999).
(2) Retroviagem, in "Canção Dentro da Noite/Poesia/Ronaldo Cagiano" (1999).
(3) Pórtico, in "Canção Dentro da Noite/Poesia/Ronaldo Cagiano" (1999).
Sobre o Autor
José Aloise Bahia:
José Aloise Bahia nasceu em nove de junho de 1961, na cidade de Bambuí, região do Alto São Francisco, Estado de Minas Gerais. Reside em Belo Horizonte. Tem ensaios, críticas, artigos, crônicas, resenhas e poesias publicadas em diversos jornais, revistas e sites de literatura, arte e imprensa na internet. Pesquisador no campo da comunicação social e interfaces com a literatura, política, estética, imagem e cultura de massa. Estudioso em História das Artes e colecionador de artes plásticas. Sócio fundador e diretor de jornalismo cultural da ALIPOL (Associação Internacional de Literatura de Língua Portuguesa e Outras Linguagens) Estudou economia (UFMG). Graduado em comunicação social e pós-graduado em jornalismo contemporâneo (UNI-BH). Autor de "Pavios Curtos" (poesia, anomelivros, 2004). Participa da antologia poética "O Achamento de Portugal" (anomelivros, 2005), que reúne 40 poetas mineiros e portugueses contemporâneos.
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