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RESENHAS
Estatuto da solidão
Ronaldo Cagiano*
O jovem escritor carioca João Paulo Cuenca formou-se em Economia e deixou de lado a profissão para dedicar-se à prosa. Se o mundo das finanças perdeu um analista, a literatura ganhou um escritor de mão cheia, interessado mais em canalizar seu olhar estético sobre o mundo que o cerca do que conjeturar sobre mercados. Melhor para a literatura, que se enriquece com um ficcionista que estréia com o pé direito.
Tendo sido revelado durante o I Festival Literário de Parati em 2003, seu sucesso valeu o ingresso na editora Planeta, que lançou seu primeiro livro, o romance "Corpo presente". A obra vem merecendo receptividade unânime da crítica e a leitura das primeiras páginas dão-nos a sensação de estarmos diante de um veterano, tal a segurança e o domínio do processo narrativo. Tal condição coloca esse escritor de 26 anos na posição confortável e promissora de um dos talentos de sua geração, alguém que não está preocupado em recorrer aos artifícios da linguagem palavrosa e etiquetada para impor a sua arte, mas fazer dela um espaço de questionamento do seu tempo e do seu lugar no universo. E o lugar que serve de cenário e matéria à sua investigação literária é Copacabana, território mítico e ao mesmo tempo laboratório para a reflexão sobre a decadência, o vazio existencial e a fugacidade da vida moderna.
"Corpo presente" chama atenção não só pela porosidade do tema, mas também pela disposição dos capítulos, divididos em números primos, uma tática formal adotada pelo autor não como invencionice ou qualquer tipo de malabarismo vocabular e irreverência inócua, muito comum em certa literatura que viceja por aí e senta praça mais pelo grito do que pela criatividade e coerência. Aqui, a forma de escrever sem obedecer a uma linearidade do discurso nem à disposição numérica ou lógica dos textos ou fragmentos não é inusitada, mas uma maneira que define a própria condição dos personagens, "divisíveis por eles mesmos e por um", numa clara alusão às muitas vidas e diversos enquadramentos que uma trama ou a própria vida podem provocar ou representar.
Os fragmentos que enfeixam o livro são verdadeiramente histórias que se intercalam e se interpenetram perpassadas por uma paixão, e podem ser lidos autonomamente. A paixão enfocada é representada pelo dilaceramento e pelo vazio de dois seres, sendo Carmem o objeto desse amor. A situação é narrada por alguém que "anda pelas ruas procurando o que pensar", mas obcecado na missão de escrever sobre as muitas carmens que habitam essa mulher. E nessa incursão ele vai desnudando a vileza da vida urbana do Rio, entre noites e dias em que trava uma batalha contra o anonimato e a solidão, numa cidade cheia de seduções e propícia aos devaneios. Ao longo do livro, Cuenca se lança a um desfile de situações, tipos e ocorrências, explicitando mundos obscuros, na fronteira entre o real e o imaginário. E no registro desse quotidiano capturado ou elaborado, há cenários de vileza onde o "mondo cane" emerge sem solenidade ou pudor - como aquele trecho que inaugura o livro em que uma mãe se masturba enquanto amamenta o filho -, mas que o autor, habilidosamente, os (re)constrói com poesia e sensibilidade.
A figura de Carmem é o protótipo da descartabilidade das re(l)ações quotidianas, dos sentimentos difusos e da vida que poderia ter sido e não foi, feito o poema de Bandeira, como elucida um dos trechos do livro: "essa procura pelo meu reflexo dentro dos
seus olhos representa o caos. Paixões corriqueiras e semanais - eu estou sempre disposto a largar tudo e me perder dentro do espelho. Eu estou sempre abrindo portas e jogando tudo pra depois, perdido entre lençóis sujos, cabelos pintados e uma infinidade de cheiros de mulher" . A personagem adquire inúmeras projeções e contornos, ela existe e interage com seus múltiplos espectros. Funciona como um ícone, um totem ou um fetiche alucinatório: encarna todas as idades, todas as feições e condições sociais. Travestida de heroína ou perdedora, é o símbolo dos confrontos individuais e coletivos, das contradições próprias do homem sempre dividido e incompleto. Assim como Alberto que surge na história e ajuda a compor esse mosaico e se confunde às vezes com o próprio narrador, simbolizando o caos e a diluição das vidas abordadas, com seu nomadismo, suas incertezas, sua falta de perspectivas, de identidade ou de referenciais.
Tais ambivalências e confusões que se instalam tanto na perspectiva do narrador onisciente e ao mesmo tempo estraçalhado pelas visões que se superpõem, quanto na dos protagonistas, acabam por definir o ritmo da história, que vai traçando um painel da própria realidade psicológica e social. Em algumas passagens, o autor promove uma fusão entre a prosa e a crítica, perceptível no uso de um vocabulário que evidencia a preocupação com os valores estéticos e uma discussão em torno da função da arte e da vida num mundo coisificado e vulnerável. Nota-se aí um certo influxo filosófico, sem resvalar no pedantismo ou derrapar em pruridos demasiadamente intelectuais.
"Corpo presente" é um romance que espelha a geração do autor, ressonância de uma dicção autêntica, de um período que viveu o refluxo da ditadura, já sem aqueles referenciais de resistência e arroubos de indignação que caracterizaram as décadas anteriores, tempo fecundo para uma literatura engajada e de resistência.
No entanto, a geração de Cuenca não precisou do trampolim do grito político para deflagrar sua arte e isso é demonstrado na sua prosa autônoma, não condicionada àquelas motivações políticas e ideológicas. Nem por isso deixa de ser questionadora de um outro "status quo", traduzido pela sociedade de consumo em que vivemos, tributária da globalização, em que a alienação, a mediocridade e a cultura de massas vão impondo um veloz escalonamento de valores, com suas hegemonias culturais e seu fundamentalismo econômico-financeiro, tão perniciosos e bestializantes quanto a privação de liberdade e pensamento pós-64. O tempo atual tem sim repercussões alienantes e apassivadoras, que deságuam na perda da identidade e na instauração de uma sociedade de "vidiotas e internéscios", como diria o saudoso José Paulo Paes. E os personagens de Cuenca incorporam a desilusão diante de tudo isso e procuram uma espécie de exorcismo desse terrível estatuto universal que disseminou a solidão.
"Corpo presente" não deixa pedra sobre pedra, toca nas feridas, é tenso e denso. Só podemos esperar isso de um autor com a juventude e a disposição de mergulhar nas emergências e angústias de seu tempo e fazer a catarse, dar o salto, olhar à frente: a sinceridade na reprodução desse universo social e humano, com seus dramas e suas delícias, com seus paradoxos e suas esperanças, doa a quem doer. A literatura de João Paulo Cuenca, não obstante beber nas fontes da angústia e da escatologia, é humana e provocativa. Como Fernando Sabino, há cinqüenta anos marcou presença com"O encontro marcado" ao fazer um retrato candente de sua época, com todos os ingredientes da rebeldia e da busca da verdade e dos sonhos, Cuenca, noutro tempo e noutro lugar, disseca com a mesma ênfase os encontros e desencantos pós-moderno, mergulha de corpo & alma na realidade, mas sem deixar escapar, por mínima que seja, a possibilidade para um trânsito onírico, em busca da utopia realizável.
CORPO PRESENTE
Autor: João Paulo Cuenca
Lançamento: Editora Planeta
Preço: R$ 35 (142 págs.)
Sobre o Autor
Ronaldo Cagiano:
De Cataguases, cidade mineira berço de tradições culturais e importantes movimentos estéticos, surgiu Ronaldo Cagiano. É funcionário da CAIXA. Colabora em diversos jornais do Brasil e exterior, publicando artigos, ensaios, crítica literária, poesia e contos, tendo sido premiado em alguns certames literários. Participa de diversas antologias nacionais e estrangeiras. Publica resenhas no Jornal da Tarde (SP), Hoje em Dia (BH), Jornal de Brasília e Correio Braziliense, dentre outros. Tem poemas publicados na revista CULT e em outros suplementos. Obteve 1º lugar no concurso "Bolsa Brasília de Produção Literária 2001" com o livro de contos "Dezembro indigesto”.
Organizou também várias antologias, entre elas: Poetas Mineiros em Brasília e Antologia do Conto Brasiliense.
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