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RESENHAS

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O novo conto brasileiro

Ronaldo Cagiano*

A produção ficcional brasileira vem experimentando nos últimos anos um novo "boom", algo semelhante ao que ocorreu na década de 70 do século passado, que revelou uma safra promissora de contistas. Tal fenômeno não é episódico nem se circunscreve ao hegemônico e monopolista eixo Rio-São Paulo, que concentra as maiores e melhores editoras do País e para onde naturalmente convergem os holofotes da grande mídia. Há um cenário diferenciado, independente e com um grau de autonomia em relação ao movimento editorial cartelizado, em que surgem escritores de valor, os quais, sem favor algum, vão se impondo pelo vigor e qualidade de suas obras, tanto no aspecto estético quanto no tratamento gráfico.

Contistas de expressão vão surgindo em vários estados, publicados por pequenas editoras. Em Minas, despontam Francisco de Moraes Mendes, Sérgio Fantini, Fernando Cesário e Chico Lopes. No Paraná, o premiado Miguel Sanches Neto e Paulo Sandrini. Do lado gaúcho, vamos encontrar Amílcar Bettega Barbosa e Altair Martins, além do premiado poeta e crítico Fabrício Carpinejar. No nordeste, há representantes da boa prosa em vários estados: os cearenses Pedro Salgueiro e Tércia Montenegro, o sergipano Jeová Santana, os baianos Aleilton Fonseca e Carlos Barbosa e o potiguar Pablo Capistrano. No interior paulista, Edmar Monteiro Filho, Guilherme Scalzilli e Whisner Fraga, detentores de alguns prêmios, comparecem com sua densa ficção. Em Goiás, Delermando Vieira, José Maria e Silva e Leonardo Teixeira; e em Brasília, Aglaia Souza, Leonardo Almeida Filho e Wilson Rossato Jr, este último vencedor do concurso da revista CULT em 2001. São vozes qualificadas que distinguem uma nova geração de ficcionistas que ainda não receberam a devida atenção do mercado editorial, mas cuja produção vem colhendo boas referências críticas.

Desses autores, destaco Paulo Sandrini, de 32 anos, um paulista de Vera Cruz que acaba de lançar em Curitiba, onde vive desde 1994, seu segundo e instigante livro de contos, "O estranho hábito de dormir em pé" (Travessa dos Editores, 133 pgs, R$ 20), na seqüência de sua aplaudida estréia em "Vai ter que engolir" (2001).

Em recente entrevista ao suplemento literário "Rascunho" (outra ilha de resistência aos esquemas predestinados da avassaladora indústria editorial), Sandrini afirma, sem nenhum desbunde alucinatório ou presunção: "Nunca achei ser um requisito básico viver num grande centro para poder problematizar o mundo, enxergá-lo ou simplesmente vivenciá-lo em muitos de seus reveses, que é o que gera a minha literatura." Com isso, ele despotencializa aquela visão concentracionista muito arraigada no meio intelectual, que insiste em privilegiar apenas o que é produzido nas metrópoles, conferindo-lhe valor inestimável e exclusivo, em detrimento da imensa e boa literatura, produzida no resto do Brasil, mas dispersa em pequenas tiragens e sem boa distribuição.

Sua obra vem merecendo boa recepção da crítica. Entre os que destacaram seus contos recentes, está o cortejado escritor e crítico Nelson de Oliveira, que recentemente o apontou, numa enquête do JB/Idéias, como um dos novos valores do conto contemporâneo. Sandrini integra uma geração que, não obstante as dificuldades de um sistema cada vez mais ensimesmado, em que rótulos, apadrinhamentos e pedigrees editoriais valem um ingresso no vaidoso círculo literário, vai se impondo pela densidade de seu trabalho, e indica que veio para ficar.

Seus contos não frustram essa expectativa. O autor labora dentro de uma estrutura que bebe nas fontes do realismo fantástico, mas sem caminhar a reboque da velha estrada iniciada por José J. Veiga, Murilo Rubião ou Rosário Fusco, sem requentar aquela dicção alegórica ou surreal comum a esses autores. Se, de um lado, há uma atmosfera de fábula em seu trabalho, por outro o absurdo e o incompreensível funcionam como representação de uma realidade que beira o desajuste e a estranheza. Essa outra forma encará-la, é um recurso semântico e formal que remete o leitor a uma compreensão do mundo, a partir de uma reflexão incomum, que comporta questionamentos filosóficos.

A estranheza ao mundo real, caótico e veloz é carregado de uma visão mágica, mas dissociada dos atos heróicos, destinando a cada história e a cada personagem sua parcela irresignada de espanto e horror, porque nisso reside a metáfora da própria vida, com seus contornos imprecisos, sua voracidade escatológica, seus signos apocalípticos. É o que gera no ser uma permanente inquietação diante do imprevisível, instaurando, a partir disso, um jogo de vida ou morte diante da necessidade de sobreviver aos absurdos do quotidiano. Um bom referencial para esse clima de terra geográfica e psicologicamente arrasada está no conto "Um desvario humano no olhar". Partindo de uma inusitada invasão de animais estranhos (onagros) alterando a rotina de uma cidade, o autor simboliza o eco de uma sociedade confusa e perdida, e sugere ainda a predisposição de se conviver com o desconhecido e ao que escapa ao ordinário como estratégia para não sucumbir às mazelas e à ditadura dos valores em que se baseiam as relações do homem com o mundo que o cerca.

Sem se preocupar com exercícios de falsa ousadia formal ou intencionais malabarismos de linguagem, Paulo Sandrini seduz o leitor justamente pela coerência e maturidade de suas construções, demonstrando segurança e versatilidade no delineamento dos personagens e no fluxo das histórias. Realiza uma obra singular, garantindo, com certeza, um longo percurso para suas futuras criações.

Sobre o Autor

Ronaldo Cagiano: De Cataguases, cidade mineira berço de tradições culturais e importantes movimentos estéticos, surgiu Ronaldo Cagiano. É funcionário da CAIXA. Colabora em diversos jornais do Brasil e exterior, publicando artigos, ensaios, crítica literária, poesia e contos, tendo sido premiado em alguns certames literários. Participa de diversas antologias nacionais e estrangeiras. Publica resenhas no Jornal da Tarde (SP), Hoje em Dia (BH), Jornal de Brasília e Correio Braziliense, dentre outros. Tem poemas publicados na revista CULT e em outros suplementos. Obteve 1º lugar no concurso "Bolsa Brasília de Produção Literária 2001" com o livro de contos "Dezembro indigesto”.

Organizou também várias antologias, entre elas: Poetas Mineiros em Brasília e Antologia do Conto Brasiliense.

 

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