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RESENHAS
Alternativas para bons contistas brasileiros OU o caminho de Jeová
Vivaldo Lima Trindade*
Para muitos teóricos o Conto é “o” gênero literário moderno por excelência. As razões para essa afirmação podem bem passar pelas seis propostas que Italo Calvino propôs para o século XXI, em torno da Leveza, Rapidez, Exatidão, Visibilidade, Multiplicidade e Consistência.
Além da grande possibilidade de experiências formais que proporciona (servindo mesmo de base para a preparação de novelas, romances e poesias), há no Conto características outras que estão diretamente ligadas à manutenção do interesse do leitor numa leitura ininterrupta. Isso significa que em um conto a medida tem de ser simplesmente exata. Nem mais nem menos. E em seu conteúdo deve sempre imperar a tensão, uma força a suspender a respiração do leitor, a forçá-lo a seguir adiante.
São esses atributos de concisão e densidade existentes nos bons contos o que os aproxima de muitos dos anseios que ora vivemos num mundo dominado pelo excesso de informações (nem sempre úteis, é verdade) e velocidade em todas as matizes, principalmente no campo das comunicações.
Dentro desta perspectiva temos acompanhado o surgimento de bons contistas em todo o mundo civilizado. E o Brasil não é exceção. Quem não parece sensibilizado com o vigor e a qualidade do gênero parecem ser nossas editoras, reservando uma parcela mínima do mercado, que é ainda menor quando o autor é nacional e anônimo.
João Ubaldo Ribeiro disse numa entrevista recente que não entendia porque o escritor estreante e inédito reclamava tanto de nosso mercado editorial, sendo que os mercados estrangeiros eram muito mais fechados. Sinceramente, não sei de onde ele tirou essa idéia. Nos E.U.A. e em vários países da Europa o escritor tem ao menos a certeza que seu original será lido e apreciado. Aqui, nem uma carta acusando o recebimento o escritor brasileiro pode esperar. Talvez o Ubaldo não saiba o que é isso, tendo vivido outro momento histórico e um contexto completamente diferente, não faltando amigos para ajudá-lo a crescer literariamente. Mas homens como Glauber Rocha e Jorge Amado não brotam feito mato. Vá dizer um Mário de Andrade! E ficamos como estamos: sós. Vez por outra recebendo um tapinha nas costas de um pobre Nelson de Oliveira (alguém que tem a coragem de olhar para o lado!), uma reclamação do Affonso Romano e muito pouco combate de quem está por cima. Não faltam estórias de pilhas de originais se amontoando nas soturnas salas das poucas e mal administradas editoras brasileiras que se aventuram em publicar ficção.
Quais seriam então algumas alternativas para os bons contistas brasileiros que se encontram fora do cânone?
1. Insistir e submeter o livro a uma editora, preferencialmente arrumando um intermediário entre ele e o editor, e rezar muito para que um milagre aconteça;
2. Participar de concursos minimamente confiáveis em que o prêmio seja a publicação; mesmo que não haja divulgação e distribuição fortes;
3. Bancar uma edição “de autor” e tentar pôr o livro no mundo por conta própria.
Jeová Santana, poeta e jornalista sergipano, enveredou por esta última opção com seu “A Ossatura” (2002). Não é seu primeiro trabalho de prosa, contudo; antes publicou outro volume de contos chamado “Dentro da Casca” (1993). Também não é um autor sem formação, possui graduação em Letras pela UFS e é mestre em Teoria da Literatura pela UNICAMP. Ou seja: não é um autor despreparado.
O título por si já sugere duas possibilidades distintas de realização, tanto a ossatura da criação do texto, um mergulho na pesquisa de suas estruturas formais, quanto a ossatura das estórias, um desnudamento temático visando explorar situações onde o cerne de certas questões importantes para a narração repousam. Contudo, mesmo experimentando variados formatos como textos curtos, em bloco e tradicionais, JS não se arrisca em terrenos escuros e desconhecidos, prefere, vez por outra, ousar na linguagem. Já no desenvolvimento dos temas ele se detém em narrações de pequenas células sociais, prevalecendo o tema da vida na cidade do interior, particularmente nas do Nordeste, nem sempre tão pequenas quanto se pensa, mas irremediavelmente provincianas, em contraponto com as grandes metrópoles e seu caos e violência. Nesse ponto parece o autor deixar-se enredar por alguns lugares comuns e maniqueísmo ao retratar as personagens oriundas desse meio, o interior, como vítimas, particularmente as mulheres.
O livro está estruturado em quatro partes distintas: Iniciação; Véus; Agrestes; e Lápides. Cada parte traz uma citação bíblica. Todas, menos a última, que trata da perfeita adequação do tempo à vida, curiosamente marcadas pelo ódio, rancor e misoginia. Causou-me certo estranhamento essas citações, pois não consegui decifrar qual a relação exata entre elas e as partes. Suspeito de uma intenção irônica, claro, Jeová (!) cobrando do Divino explicações para tanto sofrimento. Mas não é a religião nem a fé o foco maior de nenhum dos contos de A Ossatura. E sim, volto a dizer, o de uma literatura regional citadina com laivos de denúncia social.
É fácil perceber que Jeová Santana é um bom escritor, há contos excelentes neste livro que o atestam, todavia sinto que se precipitou ao lançar A Ossatura, que o livro ainda não estava plenamente maduro, que incorreu em pressa. Se não, como se explica abrir um volume com um conto que não se realiza totalmente como “O Visitante”? Nele o autor trabalha na perspectiva do mistério em torno de um segredo, que é a identidade de um estranho visitante, faz uso dos clichês para descrever o prefeito, o padre, as fofoqueiras etc., e se resolve por um final pessimista no qual expõe de modo rápido e superficial o egoísmo da natureza humana, não subsistindo nem o humor nem uma análise mais profunda. Da mesma forma que em Véus, de longe a parte mais fraca do volume, os contos “Caixa Postal”, “O Pequeno Relato de Geruza”, “O Livro de Rute”, “A Ossatura” e “Ulisses” tratam da condição da mulher como se essa fosse sempre fraca e exclusivamente dependente do homem, sem demonstrar grandes complexidades nem conflitos. Já em Agrestes, não evita a previsibilidade da morte no final de “Terras” e “A Viagem” e não aproveita todas as possibilidades de um tema tão caro aos nossos dias quanto o seqüestro em “A Ressurreição”.
Outro problema são erros imperdoáveis como “naquele altura” (p.14), “já eram mãe e viam” (p. 38), “por mais altos que sejam as grades” (p. 48), clichês tipo “moldando a realidade sob a lógica dos meus verdes anos” (p. 14), “afinal, as notícias andam velozes em lugares pequenos” (p. 15), “fiquei sabendo o que o destino lhe reservara” (p. 42), “quando me deixo levar pelo rio das lembranças” (p. 94) e coisas dessa jaez que uma boa revisão facilmente evitaria.
Exemplos de musicalidade e boa poesia também não faltam:
“Se eu pudesse, deixaria menos duros os arredores de sua passagem, onde explodem coriscos, trovões e incertezas. Colocaria em seu bolso mais dinheiro do que permitiu a pressa da viagem; adiantaria o relógio do tempo para que saltasse logo esta noite e pudesse de novo mergulhar nas águas do mar da Bahia.” (p. 28)
“A boca de meu pai, forte e escandalosa, rugindo no tropel de palavrões. Quando eles vêm, mais parecem com aquelas chuvas de maio do ano passado.” (p. 57)
“Essas mãos assim encaliçadas falam melhor por mim. Agora estou confinado a esta meia-água. Um vãozinho onde às vezes não cabe toda a dor que sinto” (p.93)
Assim como é preciso enaltecer a força de “Cálice”, estória em que o filho segue o pai num possível encontro amoroso onde a sexualidade de ambos passa a ser questionada, o excelente desfecho do desigual “Um Menino, Uma Noite”, a exatidão da linguagem coloquial em “Lugar de Anjo é no Céu, a beleza pungente de “Ulisses”, a tensão de “Balas de Açúcar Queimado” ao ter de noticiar para uma mãe a morte do filho, a comoção que a leitura de “Segundo Tempo” proporciona, o estilo nervoso e violento de “Fuga para o Blues” ou ainda a burlesca estória de uma cadelinha e suas paixões em “Os Caminhos Movediços do Coração”.
Enfim, A Ossatura é um livro muito desigual, mas que vale a pena ler e conferir a excelência de algumas peças. Pedidos devem ser feitos para o email: jeopoesi@infonet.com.br.
Sobre o Autor
Vivaldo Lima Trindade: Vivaldo Lima Trindade é escritor, assinando apenas Lima Trindade. Tem publicados os livros "Supermercado da solidão" (novela) e "Todo o Sol mais o Espírito Santo" (contos). É também editor do site cultural Verbo 21 em Salvador, Bahia.
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