- Verdes Trigos
- Web Log
- Resenhas
- Livros
- Especiais
- Van Gogh
- Wheatmania
- Usabilidade
RESENHAS
Sobral, um pedaço do Brasil pela mão de Lustosa
Adelto Gonçalves*
Diz uma lenda que corre o Norte que, à época do fastígio da borracha amazônica, os pró-homens do Pará mandavam lavar sua roupa em Lisboa. Exagero? Pode ser. Mas por trás de toda lenda há um pouco de verdade. Houve homens que construíram fortuna, tornaram-se potentados e tiveram seus nomes mitificados pelos cantadores de feiras.
Um desses, o cearense José Júlio de Andrade, conheceu a Europa antes de se deslumbrar com a beleza do Rio de Janeiro. Esse personagem, o "rei da castanha de caju", desbravou terras que viriam a constituir o Projeto Jari, na Amazônia, antes de vender a propriedade a portugueses que as passaram ao milionário norte-americano Daniel Ludwig.
Esta figura misteriosa, aliás, repetiu, meio século depois, a saga de um milionário quaker, Parcival Farqhuar, que, nos anos 1910, no auge do ciclo da borracha, mandou construir a Madeira-Mamoré, uma ferrovia que levava do nada a lugar nenhum e desapareceu em meio à vegetação da floresta. Ambos foram execrados pela esquerda brasileira, mas não foi por causa dela que seus projetos faraônicos fracassaram.
Quem gosta de contar estas histórias é o jornalista Lustosa da Costa, que acaba de lançar um novo livro, “Sobral: Cidade das Cenas Fortes”, em que mostra a atuação dos padres numa cidade do Ceará ao longo de boa parte do século XX. Quem o lê não pode deixar de considerar este livro uma metonímia do Brasil, pois, ao contar as histórias, Lustosa mostra-se genuinamente brasileiro e, ao mesmo tempo, universal.
Repete em seu novo livro a técnica de contar histórias curtas que já havia experimentado com êxito em Foi na Seca do 19 (Fortaleza, ABC, 1999). Seus relatos podem ser tomados como autônomos, como se constituíssem crônicas escritas para jornal - não fosse essa uma das atividades do autor -, embora sejam atados por um fio condutor.
Com esses retalhos de vida, Lustosa vem resgatando um pouco da história subterrânea do Ceará de seu tempo que, com certeza, não haverá de ser encontrada em jornais velhos, todos facciosos porque, naturalmente, comprometidos com grupos políticos.
Desta vez, o personagem mais fascinante que Lustosa ressuscita é o padre Palhano, figura folclórica da Sobral das décadas de 1950 e 1960, religioso que tinha a cabeça voltada para missões menos sacras, como o radioamadorismo, correr em motocicletas inglesas ou automóveis de luxo, pilotar aviões ou, ainda, arrefecer os calores das fiéis mais exuberantes.
Com verve, Lustosa traça breves perfis de religiosos de uma época em que a Igreja Católica, voltada apenas para a sua clientela favorita, as famílias tradicionais, mandava prender e mandava soltar nas cidades e vilas do sertão brasileiro. Seus membros, não raro, aventuravam-se nos caminhos da política, bem diferente dos dias de hoje em que vê o seu rebanho fluir cada vez mais para templos evangélicos ou televangélicos.
Entre outros, lembra de padre Cícero Romão Batista e de D. José Tupinambá da Frota, as personalidades mais importantes da primeira metade do século XX do clero cearense e da vida pública de suas cidades, Juazeiro do Norte e Sobral. Recorda que padre Cícero, homem de reduzidas luzes intelectuais, chegou a ser eleito vice-presidente do Estado e deputado federal, cargos que jamais exerceu. Até hoje sua gigantesca estátua atrai multidões
Já D. José foi um religioso à antiga, disposto a avançar contra o Carnaval, a maçonaria, o espiritismo e a prostituição, já que em tudo via obra do demônio. Quixotesco, não percebeu que o pecado forçava as portas de sua instituição e, em 1931, foi colhido de surpresa pelo assassinato do vigário de Acaraú, na sacristia da igreja. O crime foi atribuído à importante família da cidade, sob a acusação de o religioso haver seduzido uma moça do clã, que se envenenara de vergonha.
Não é só a patrística sobralense o tema deste livro. Estabelecido em Brasília desde a década de 1970, Lustosa foi repórter político de O Estado de S. Paulo e colunista do Correio Braziliense, mas nunca esqueceu os casos que testemunhou ou ouviu na Sobral de sua juventude.
Iniciou a carreira jornalística no Correio da Semana, de Sobral, e exerceu o cargo de editor-chefe do Unitário e do Correio do Ceará, de Fortaleza. Hoje, é colunista político do Diário do Nordeste, de Fortaleza, e tem dedicado boa parte de seu tempo a escrever livros de ficção que partem sempre da realidade, como Vida, paixão e morte de Etelvino Soares (São Paulo, Maltese, 1995), que teve edição portuguesa em 2002 pela Universitária, de Lisboa.
Nesse livro conta a tragédia do jornalista Deolindo Barreto, fuzilado por jagunços a mando de maiorais da terra. Tem 14 livros publicados e é membro da Academia Brasiliense de Letras. Orgulho de Sobral, Fortaleza e Brasília, é um cronista que não só o resto do Brasil como os países de língua portuguesa precisam conhecer porque, com certeza, todos vão apreciar sua irreverência.
(publicado originalmente no Jornal Digital)
Sobre o Autor
Adelto Gonçalves:
*Doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002) e Bocage – o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003).
E-mail: adelto@unisanta.br
LEIA MAIS
Canção dentro da Noite, por Ronaldo Cagiano.O livro é uma viagem pelo interior profundo de suas aspirações, crenças e ideais, em que o rio de sua inspiração corre entre as margens da introversão lírica e da introversão social. Leia mais
Cinemaginário, por RICARDO CORONA.
Nos poemas desse livro de estréia, o autor paranaense assinala a força da imagem em movimento, da marcação nervosa dos roteiros de histórias em quadrinhos e da palavra cantada da música brasileira. Leia mais