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Assim, alminha da humanidade

Jorge Pieiro*

Aos poucos, convém aprender a administrar as mais íntimas perversões e os mais impossíveis sonhos para que certezas e vida não sigam somente em rotas paralelas. Talvez seja mais aconselhável pensar que a humanidade é muito mais perversa do que pode imaginar a inocente sabedoria dos incrédulos. Se assim é, cabe exatamente à literatura reafirmar essas não pensadas verdades, ficcionando o real ou realizando a própria mentira.

Antes de tudo, o texto literário escolhe no leitor a divagação. Qualquer que seja o assunto, a visão de mundo deve se estender além do limite. Antes de tudo, uma boa dose de imaginação e impressionismo. Aonde, por exemplo, a fantasia de um leitor seguiria ao se deparar com os 21 contos breves de Dalton Trevisan (1925), reunidos sob o título de Capitu sou eu (Ed. Record, 2003)? Ao se deparar com textos fragmentários, fantasias, maldades e luxúria, pensaria na queda do muro de Berlin ou na também fragmentação da antiga União Soviética? Em Georges Bataille, próximo de Sade? Em estranhos sentimentos e na verdade cruel que circunda homens e mulheres adúlteros? Na ordinária colegial bonitinha de Nelson Rodrigues? No sucumbir das torres gêmeas ou na inconseqüente má conduta dos terroristas e dos antiterroristas? Na perda da identidade na bolsa pós-moderna? Ou, de uma forma contudente, nos pecadilhos do mundo? Ou em nada, pensaria apenas numa leitura de pequenas e densas safadezas?

Dalton Trevisan é, por excelência, um anjo decaído que sempre tocou uma trombeta silenciosamente alarmante, caminhando pelas ruas de Curitiba, em busca dos odores de outros tempos, quer sejam os de 'sabonete de coco do baile das polaquinhas', ou os do 'bafo delicado de aguarrás numa certa lojinha de tintas na Rua Riachuelo', ou os do 'ranço vicioso das flores murchas dos ipês na Praça Tiradentes', quer sejam os das 'baforadas ardentes (morrinha de cigarro, odor de fêmea, iodo de falso uísque) nas portas iluminadas dos inferninhos e boates'. Memória exposta em forma de crônica no texto de 'Curitiba: odores e perfumes'...

Em Capitu sou eu, pode o leitor pensar que está diante de mais um livrinho do 'vampiro'. Digo livrinho, pois é assim, em conta-gotas de nitroglicerina literária, que ele prefere sustentar seu espanto e sua revelação dessa humanidade resumida no espaço de sua provinciana capital, na qual se esconde, ora como um crítico ácido da sociedade, ora como um cavalheiro apaixonado.

Desta feita, o autor premiado de Pico na veia reuniu alguns textos mais longos, se comparados com os das coletâneas anteriores. Mesmo assim, a concisão, a consistência e a leveza revelam-se em curtos e milagrosos contos, como em 'Mais que cipreste', no qual uma das irmãs, 'feia e simpática', seduz um João chantageado e impossibilitado de aproximar-se da outra irmã, 'linda e soberba', pela possibilidade de suicídio daquela, ato que por fim se concretiza. Um novelinho de maldades.

Os tipos femininos ou efeminados em Dalton Trevisan não desapontam as (in)sensibilidades mais atrevidas. São empregadinhas que sofrem abusos ('O patrão'); ou menininhas precoces ('Boina vermelha', 'De olhinho fechado', 'Sou inocente'); viúva em busca de companhia ('O quadrinho'); ou noiva vingativa ('A noiva'); ou, ainda, travestis sem remorsos ('O Natal é uma criança', 'Lulu, a louca').

Dalton parece não inventar nada. O universo é assim, ele apenas realinha os planetas. Além do mais, há tramas prenhes de intertextualidade. O próprio título da obra entrelaça Flaubert (Madame Bovary ces t moi) e o Machado de Assis de Dom Casmurro. Uma adúltera e uma meio acusada de prevaricação. O conto homônimo, que aproxima uma professora de Letras a um aluno relapso, insinua que vale mais um amor bandido, do que uma conduta conseqüente. Ela e Capitu são mesmo 'mulherinha(s) à-toa'.

Em 'Cantares de Sulamita', o autor narra em forma de versos sentimentos profanos, levando o texto libertino a, paradoxalmente, fazer o leitor imaginar ou lembrar de um dos livros sagrados de Salomão.

Enfim, o que impressiona: Capitu sou eu é um livro de fragmentos de cotidiano repletos de puro sadismo, de acontecimentos estranhos, de personagens ordinários e sem boa conduta. Dalton Trevisan bem sabe usar 'A navalha de Van Gogh', como insinua em outro conto em verso. É de uma sutileza que vibra entre a malícia e a pureza, em um texto pleno de pequenas sem-vergonhices, mas que acaba por seduzir o leitor pela sua aparente e adocicada pureza. É nessa sordidez sufocante do cotidiano, pois, que a literatura teima em revelar outros (des)caminhos para a humanidade...

Sobre o Autor

Jorge Pieiro: Jorge Pieiro é escritor e professor de literatura. Auto de várias obras:
• Caos Portátil (contos). Fortaleza: Letra & Música, 1999.
• Galeria de Murmúrios (ensaio). Fortaleza: [s/n], 1995. (Cadernos de Panaplo).
• Neverness (poema). Fortaleza: Resto do Mundo/Letra & Música, 1996.
• O Tange/dor (poemas). Fortaleza: [s/n], 1991.
• Fragmentos de Panaplo (contos breves). Fortaleza: [s/n], 1989.
• Ofícios de Desdita (ficção). Fortaleza: IOCE, 1987.

 

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