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RESENHAS

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As esferográficas de Giffoni

Jorge Pieiro*

'Como consolo, como derradeiro orgulho, ocorre-me que os mortos são todos iguais'
(Luís Giffoni, O engano)


Ironia. Ironia de criador ou o criador sob ironia? Segredos colhidos da escrivaninha de algum deus ou de um escritor. Não haveria de pensar diferente, leitor que em um conto se deparasse com esta constatação: 'Miolo humano, a maior iguaria do universo! Quanto mais em dúvida, quanto mais confuso, ah, mais saboroso', pronunciada por um chefe de extraterrestres.

Qualquer um que assuma a atitude de ler atentamente o mundo, não deixará de perceber gestos de impertinência excessiva em torno daqueles que se debruçam sobre aspectos da criação literária. A preocupação com esse fazer não é mérito da modernidade ou da pós-modernidade, se não, mais uma recaída ou decaída ao segredo dos vivos-mortos ou mortos-vivos do mundo.

Se, entre os críticos extremos, a angústia da novidade ou a obsessão clássica tenta remover montanhas, em alguns ficcionistas podem-se divisar inquietações ante a impossibilidade de assumirem-se como criadores divinos ou pela angústia sinuosa de existirem apenas como autores terrenos. Enfim, entre críticos e lidos, a reação a um suposto conflito: viver entre uma dor que faz bem e devolve a vida e a corda que se prepara para o suicida.

Quando li, pela primeira vez, que o 'maior estoque de ficção do mundo' encontra-se na tinta das esferográficas, que 'cargas e obras se confundem'; quando percebi a intenção velada, à espera da conclusão de que livros são cárceres para personagens (e para leitores?); que 'forca não dói, nunca ninguém reclamou depois'; quando me saltou aos olhos a barata, erudita barata, que não aceitava a sua condição até testar a própria morte em vapores de inseticida; quando se reduziram à loucura suspiros de ovos e de uma vida, queimados, servidos como refeição; concluí, mais uma vez, que todos somos a ironia de um sonho - a cabeça de Freud afundando num caldo original -, que 'para sublimar a experiência' teremos que (re)ler Frankenstein.

Entre as imagens autorizadas, a palavra simples, porém 'colorida' de negro humor. Aquela que suscita a arte marcada pela tragédia da ironia. Da personagem que descobre a morte como inspiração, matando... para reproduzir em telas imagens da vida roubada, inaugurando 'a ponte entre o metafísico e a tinta'.

O leitor-crítico vê-se diante de 'um buraco-negro portátil'. Maior que o mundo, tenta bisbilhotar a criação desse mundo, mas, ao perceber que não passa de mais um dossiê dos 'arquivos de Deus' - que 'goza o gênese por um momento' e desaparece 'num sorriso eterno' ou ronrona 'sob o efeito de uma dose divina de sedativos e anti-histamínicos' - vê-se incerto. Onde o autor? Onde a personagem? Onde a obra?

Enfim, diante de uma ficção líquida, os textos falam de criação, de recriações, da Criação. Há até personagem que se vangloria da coleção de esferográficas espalhadas pela casa, 'do maior estoque de ficção do mundo'. E que as teme, porque 'a carga oprime'.

Vale experimentar os jogos absurdos do olho por olho, dessa lei de Talião na era pós-tecnológica. Textos que reproduzem o caos, ou recomendam disfarces, ou possibilitam questionamentos, ou, ainda, trazem à superfície a quentura de um emplastro sobre a pancada - mesmo que sirva apenas como alívio psicológico - devem ser experimentados em sua função de simulacros à vida.

Ironicamente, seguindo as artimanhas protagonizadas pela leitura, tentei conservar um segredo, que já não se faz gracioso: a imaginação ainda seduz. Possivelmente, alguém já 'abandonou a realidade e desapareceu dentro da obra', como eu. O que poderá sofrer esse escritor ou o próprio leitor não cabe em verdade absoluta. Fica a ironia e a sujeição a esses feitos.

Deixo ao curioso, pois, a proposta de descobrir de quais dos 23 contos de Luís Giffoni, reunidos em Os chinelos de raposa polar, da Editora Pulsar (selo próprio), os fragmentos e as paráfrases aqui apresentados foram transcritos. Se alguns deles remeterem à lembrança de outros autores, não importa. Vivos ou mortos nunca são iguais. Sem consolo, a culpa ou mérito é de quem ainda usa esferográficas - esses 'depósitos de ficção' - para escrever, mesmo que não as use mais.

Serviço
Os chinelos de raposa polar - Contos de Luís Giffoni. Editora Pulsar (pedidos@editorapulsar.com.br). 120 páginas. R$ 20,00.

Sobre o Autor

Jorge Pieiro: Jorge Pieiro é escritor e professor de literatura. Auto de várias obras:
• Caos Portátil (contos). Fortaleza: Letra & Música, 1999.
• Galeria de Murmúrios (ensaio). Fortaleza: [s/n], 1995. (Cadernos de Panaplo).
• Neverness (poema). Fortaleza: Resto do Mundo/Letra & Música, 1996.
• O Tange/dor (poemas). Fortaleza: [s/n], 1991.
• Fragmentos de Panaplo (contos breves). Fortaleza: [s/n], 1989.
• Ofícios de Desdita (ficção). Fortaleza: IOCE, 1987.

 

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