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RESENHAS

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Contos de faca

Jorge Pieiro*

"- Está com medo de mim?
- Não nasci com esse nervo no corpo".
("O valente Romano" Ronaldo Correia de Brito)


O argentino Jorge Luis Borges disse que morrer é um costume que sabe ter toda a gente. Como em quase todos os segredos de sua genialidade, permitiu-se enxergar, sem fazer uso da vista que lhe faltava, e ironizar o sentido mais trágico da existência. Sabemos que a morte espreita os que a esperam, os que se desprevinem, os que se remediam, os que se compadecem. Somos todos vítimas de seu misterioso desejo.

Em qualquer época, em qualquer lugar, os costumes e as culturas tratam de preservar dinâmicas várias, com o intuito de resguardar o sofrimento infalível provocado pela presença dessa senhora de todos os pesadelos. Se o seu reino é o do fim do mundo, dê-se a ela o nosso último momento...

Há, porém, que se indagar o motivo pelo qual a morte é surpreendida, muitas vezes, pelo desafiante desejo de não temê-la, ou mais, de torná-la objeto de consumo, banal, como ocorre na vida de uns tantos habitantes dos confins da terra. E por qual razão as histórias desse povo se reproduzem, transformam-se, reavaliam-se e seguem seu compromisso de perpetuar o pesadelo.

Não há verdades absolutas, apenas conjecturas. Existe a literatura que molda, especifica, presentifica e conduz-nos a algumas respostas sobre esse emblemático mistério do convívio de nossos dias. Melhor prazer é percebê-la, enquanto não tarda e tenhamos que voltar ao pó.

Faca, obra do cearense dos Inhamuns Ronaldo Correia de Brito, ilustra um rosário de mortes. É um livro que enrijece o espírito. Talvez, aos menos acostumados a esses desígnios, podem os contos parecer duros, sofridos, exóticos até. No entanto, para quem conhece a realidade dos sertões nordestinos, sua sina, seus segredos, mitos e mistérios, é possível que se embeveça com tanta sinceridade e competência. De pronto, urge alertar: não estamos diante de mais um escritor regionalista, ou retrocedemos à escritura dos anos 30, ou deparamo-nos com a criação de mundos impossíveis. Faca é o próprio manuseio de uma arte que nunca se destrói ou será destruída, pois representa a mitologia de uma cultura.

São onze narrativas que ocupam o imaginário do leitor. Há sempre uma esperança em cada linha, porém o que se define é, invariavelmente, uma desgraça. Mesmo quando o texto se desvia para um momento cômico, como em "O dia em que Otacílio Mendes viu o sol", o cheiro de morte se espalha pelos aposentos da memória. E desfiam-se mortes pressentidas, anunciadas, delirantes, compensadas, escolhidas, vingadas...

Os relatos são de origens arcaicas, porém tem olhos atualizados: ausência de linearidade narrativa, tempos indefinidos, cortes cinematográficos e estruturas fragmentárias. Além disso, as histórias de Faca reavivam o "entulho de um tempo apagado da memória", e trazem, nelas, a expressão silenciosa, como a da senhora Morte, de mulheres poderosas, tais como: Cícera Candóia, Inácia Leandro, dos contos homônimos; e mais, Francisca Justina (de "Faca"), Aldenora Morais (de "A escolha"), ou mesmo Delmira (de "Mentira de amor").


Da coletânea, três contos merecem destaque. "Redemunho" transporta-nos para uma situação que beira a inverossimilhança, mas surpreende-nos pela estratégia do autor para a condução e conclusão da trama. Nele, uma família de antigos fidalgos, reduzida a mãe e filho - abandonado pela mulher - vive em pleno sertão na precariedade da música tocada ao piano antigo, em ranço de nobreza e assolada pelo fantasma de uma mentira.

"O valente Romano" encerra uma espécie de lenda sobre o assassino predestinado Romano Gerôncio, que parecia não ser deste mundo, que teria o consentimento de Deus para viver até chegar seu tempo. Cortes narrativos bem aplicados mostram um homem com cheiro de santo, morto, e seu grande inimigo Anselmo Dantas, perplexo, ante o "corpo que fora a razão da sua vida".

Por fim, o conto "A escolha", que apresenta um triângulo amoroso e, como não poderia deixar de ser, um trágico final de repercussão marcante dentro da trama.

Sem esquecer de mencionar o excelente projeto gráfico, com xilogravuras de Tita do Rêgo Silva, resta apenas concluir que se trata de uma obra de universo mítico, com cheiro de morte entranhado no corpo da vida.

SERVIÇO:
Faca - Contos de Ronaldo Correia de Brito. Cosac & Naify. (www.cosacnaify.com.br), 2003. 184 páginas. R$ 25,00. - para adquirir o livro, clique na capa.

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Sobre o Autor

Jorge Pieiro: Jorge Pieiro é escritor e professor de literatura. Auto de várias obras:
• Caos Portátil (contos). Fortaleza: Letra & Música, 1999.
• Galeria de Murmúrios (ensaio). Fortaleza: [s/n], 1995. (Cadernos de Panaplo).
• Neverness (poema). Fortaleza: Resto do Mundo/Letra & Música, 1996.
• O Tange/dor (poemas). Fortaleza: [s/n], 1991.
• Fragmentos de Panaplo (contos breves). Fortaleza: [s/n], 1989.
• Ofícios de Desdita (ficção). Fortaleza: IOCE, 1987.

 

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