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O Calendário de Feliciano
por Airo Zamoner
*
publicado em 12/06/2006.
Abriu a janela. Recebeu o bafo agradável da alvorada e se debruçou em Curitiba, ainda quieta, amarrada, silenciosa.
Espreguiçou-se como um gambá, soltando ruídos vasconços. Murmurou rabiscos vocais desconexos e parou diante do calendário para arrancar mais uma folha.
O décimo andar do prédio mais antigo da Rua Quinze de Novembro, viu Feliciano largar a folha daquele seu dia e ficou admirando a queda lenta, a navegação caótica, exatamente como caíram todos os seus dias.
Lá embaixo, o minúsculo homem sentiu algo em seu ombro. Bateu a mão com raiva, livrando-se violentamente do dia de Feliciano.
No chão, a folha foi se prostituindo, ora pisada por um, ora por outro, até desaparecer em frangalhos sob as sapatas do tempo.
Feliciano não mais admitiu continuar sendo o ator inerte daquelas cenas. Não queria mais ver seu tempo se desmanchar como bolhas de xampu, voláteis, transitórias, inúteis.
Sentiu-se coberto de bobagens, assaltando cada pedaço de seu tempo. Estava enfadado da seriedade cansativa a locupletá-lo por dentro, a envolvê-lo por fora. Queria brincar. Queria liberdade. A liberdade de voar como voaram seus pedaços de vida janela abaixo. Queria voar como eles. Um vôo interminável. Um vôo que nunca chegasse ao chão como chegam diariamente suas folhas efêmeras que se perdem na podridão do pisoteio indiferente.
O mês corre célere. Ele anda até o calendário e arranca precipitadamente o dia de hoje que recém começa. Vira e o revira nos dedos duros. Vai até a janela e libera-o no espaço. Nem aguarda vê-lo chegar ao chão imundo. Volta apressado. Arranca outra lâmina, outro pedaço de vida. Vida que agora está sob seu domínio. Os minutos se escoam. Os pequenos e finos papéis esvoaçam às dezenas.
O gari prestimoso vai reunindo, uma a uma, as folhas pequenas que se borram pela calçada. Folhas pisadas, folhas virgens, folhas satisfeitas, folhas frustradas, folhas úteis, inúteis. Folhas que não param de cair. Olha para cima e recebe a chuva imensa de existência a despencar num esvoaçar irresponsável. Não consegue mais cumprir sua tarefa com esmero e seriedade. Por um tempo, senta-se no banco próximo. E espera que todas terminem sua queda em revoada.
Feliciano pára em frente ao calendário. Lá está o último dia, esperando ser arrancado. É trinta e um de dezembro. Algo dentro dele flui como pensamentos líquidos se derramando pelos poros em rebelião.
Olhando insistente para cima, o varredor sente dores no pescoço. A derradeira não desce. Ou já teria caído? Ele espera... Todas aquelas folhas espalhadas no espaço, muitas também pisoteadas como a primeira, tornando quase impossível sua missão solitária. Mas Feliciano não tem pressa. Vai saborear este seu último dia em todos seus contornos. Num repente, arranca o dia trinta e um. Vai à janela, amarrota aquele resto em sua mão e se lança do décimo andar, num gozo infinito de liberdade, agarrado a seu último dia. Lá embaixo, cumprimenta rapidamente o lixeiro e vai recolhendo, um a um, cada fragmento. Uns intactos, outros nem tanto. O gari, percebendo a angústia de Feliciano, ajuda-o com denodo. Em pouco tempo, de posse de todos os pequenos papéis, confere dia por dia e volta feliz a seu mundo, agarrado a suas últimas e preciosas folhas para gastar vagarosamente, sentindo o sabor das bobagens, fugindo como um louco da seriedade que mancha e amarrota seus dias curitibanos.
Repentinamente, Feliciano volta apressado até o ontem.
Corre como criança, as mãos cheias de saborosos dias.
Sobre o Autor
Airo Zamoner: Airo Zamoner nasceu em Joaçaba, Santa Catarina, criou-se no Paraná e vive em Curitiba. É atualmente cronista do jornal O ESTADO DO PARANÁ e outros periódicos nacionais. Suas crônicas são densas de conteúdo sócio-político, de crítica instigante e bem humorada. Divide sua atividade literária entre o romance juvenil, o conto e a crônica, tendo conquistado inúmeros prêmios e honrosas citações.< ÚLTIMA PUBLICAÇÃO | TODAS | PRÓXIMA>
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