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Novo contista na praça
por Ronaldo Cagiano
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publicado em 03/03/2006.
Nos últimos anos, o conto brasileiro vem dando provas de vigoroso renascimento, semelhante ao fenômeno experimentado pelo gênero na década de 70. Antologias e edições independentes revelam um número expressivo de bons autores. Dentre os que despontam nesse universo de boas surpresas, está o brasiliense José Rezende Jr., que estréia com A mulher-gorila e outros demônios (editora 7Letras) e reafirma o espaço para o gênero com o bom desempenho dessa nova geração.
Tendo dedicado grande parte de sua vida ao jornalismo, trabalhando nos principais diários do país, entre eles o JB, onde foi repórter especial, Rezende sempre imprimiu ao texto jornalístico um viés literário, com sua linguagem elegante e um modo especial de enxergar a realidade e refletir sobre ela. É o que se pode colher de suas entrevistas, coberturas e reportagens realizadas para o Correio Braziliense, como a viagem que investigou quase quatro décadas de guerra em Angola, outra que refez os caminhos de Guimarães Rosa nos sertões de Minas, num memorável encontro com Manuelzão, e a antológica matéria sobre João Gilberto.
Afastado das redações há algum tempo, o autor mergulha com paixão no que mais gosta: escrever. Além de realizar palestras, tem um site para divulgar seus textos e dedica-se a ministrar cursos para escritores e jornalistas em sua oficina literária. Em seu projeto 'Como escrever (melhor) para jornais e revistas', dá pistas a escritores novatos ou candidatos que desejam incursionar pelo vasto mundo do jornalismo, escarafunchando os meandros da assessoria de imprensa e os segredos do processo criativo.
Os dez contos que enfeixam seu livro revelam um autor que estréia com segurança e grande domínio da arte narrativa, sem impregnar a sua ficção dos cacoetes da linguagem jornalística nem aventurar-se por pretensas rupturas formais. Seus contos resultam de meticulosa confecção. O autor não se escravizou a um modelo nem sucumbiu a modismos, apesar da amplitude de recursos técnicos e estilísticos e do foco em ambientes distintos.
Seu livro mescla o rural e o urbano, numa prosa que transita entre oralidade/ coloquialismo e sofisticação, tendo sempre como pano de fundo a vidinha miserável e sem alternativas, mas carregada de surpresas ou de desapontamentos, do homem comum. Rezende não se deixa seduzir pela experimentação ou espasmos de qualquer natureza, optando por contar bem uma história.
Sem se preocupar em situar as narrativas geográfica ou cronologicamente, Rezende catapulta o leitor a um mundo mítico e simbólico, o que imprime um caráter atemporal e universal, pois detém-se no que há de essencial (de beleza ou de purgatório) na condição humana, esse território onde se confrontam sentimentos, frustrações, alegrias, delírios, perdas, desencontros, miséria psicológica e pobreza material.
Em suas veredas ficcionais, o cenário interiorano é recorrente, com seu riquíssimo fabulário, como se pode ler em Não passarão (ou a abolição da quarta-feira de cinzas), uma boa conversa que nos lembra os bons momentos de um Guimarães Rosa, mas com um acento muito peculiar. A vida moderna, com seus percalços e desafios, também está presente, como no conto que dá título ao livro, e em 59 segundos, texto ágil e pressuroso, que relata a angústia de alguém assaltado numa cidade grande.
As histórias de Rezende serão lidas agora e daqui a um século e despertarão no leitor o mesmo impacto, porque são dotadas de lirismo, densidade, paixão, secura e transtornos, traduzindo as circunstâncias da vida. É o caso do paradigmático Bangue-bangue, em que a filha, ao recordar as traições do pai, recupera visões, cheiros, sentidos e junta as peças de um quebra-cabeça, tendo o escuro do cinema como metáfora da película de sua vida.
O início desse conto, por si só, vale o livro, pois é uma peça de virtuose à altura de um Gabriel García Márquez: 'Na manhã do dia em que o matariam, por ser uma manhã igual a todas as outras, meu pai tomou o mesmo café, que era sempre muito preto, mas ao mesmo tempo tão sempre doce que nenhum de nós estranharia se alguma formiga suicida disputasse com ele o último gole no fundo da xícara. Comeu uma banda de pão com manteiga e meio biscoito de polvilho encharcado de gordura de porco, como fazia sempre, e não deixaria de fazer naquele dia só porque o matariam. Enquanto mastigava, meu pai tinha nos olhos e no bigode a arrogância serena dos mocinhos que sabem que nunca morrem no fim'.
Com A mulher-gorila e outros demônios, esse mineiro nascido na mesma Aimorés de Sebastião Salgado faz um retrato sentimental, mas não piegas, de um povo esquecido nos confins da sua própria alma e história. Confecção literária do melhor nível de elaboração, incorporando um olhar poético, crítico e felliniano ao retratar as Macondos que há por aí e dentro de nós. Textos para o verdadeiro prazer da leitura, pois nos deixam a provocante e solene sensação de que o autor tem muito mais a nos oferecer em suas futuras produções. Sem dúvida, um grande sopro dentro do panorama da atual literatura brasileira.
Sobre o Autor
Ronaldo Cagiano: De Cataguases, cidade mineira berço de tradições culturais e importantes movimentos estéticos, surgiu Ronaldo Cagiano. É funcionário da CAIXA. Colabora em diversos jornais do Brasil e exterior, publicando artigos, ensaios, crítica literária, poesia e contos, tendo sido premiado em alguns certames literários. Participa de diversas antologias nacionais e estrangeiras. Publica resenhas no Jornal da Tarde (SP), Hoje em Dia (BH), Jornal de Brasília e Correio Braziliense, dentre outros. Tem poemas publicados na revista CULT e em outros suplementos. Obteve 1º lugar no concurso "Bolsa Brasília de Produção Literária 2001" com o livro de contos "Dezembro indigesto”.Organizou também várias antologias, entre elas: Poetas Mineiros em Brasília e Antologia do Conto Brasiliense.
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