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Banquete no Lixo

por Pablo Morenno *
publicado em 02/03/2006.

Desde aquele dia convivo com uma situação muito delicada. Vi um banquete servido sobre uma lixeira de rua, frente a um edifício verde-escuro desta cidade. Situação delicada ou desconcertante, ainda não sei. Só estou certo quanto à inquietude, dessas que tem satisfação em ficar remoendo os cronistas até serem reconstituídas em palavras.

Recebo e-mails perguntando se as situações que relato nas crônicas são reais. São. Apenas as reinvento como um pintor que retrata um semblante. Muitas pessoas andam pelas ruas e nada percebem. O cronista tem olho aguçado e, ademais, como se fosse um pára-raio pesca insignificâncias. Raios caem sobre sua cabeça. Os miolos ficam intactos, mas nasce uma crônica. Foi assim com esse banquete na lixeira de um prédio.

Seria para minha fome aquele pedaço de bolo sobre a bandeja de papel. Seria para minha sede a metade do litro de coca-cola ainda com suor das bebidas geladas. Era uma mesa posta. Coisas tão bem distribuídas sobre a tampa da lixeira como ceia de mãe para filho. Nada de restos jogados. Se não houvesse outras comidas tão podres, se não fosse em uma lixeira, tudo ficaria super bem na sala de jantar lá de casa. Se precisasse, não sentiria nenhum constrangimento em me acomodar na calçada, ou postar-me de pé, para saborear tanta delicadeza servida na rua.

Procurei na bandeja e na garrafa algum endereçamento. Não encontrei o meu nome, nem o civil nem o literário. Não, não era eu o convidado. Tampouco havia qualquer outro nome. Era um banquete servido ao primeiro faminto. Um banquete sem comensal específico e, portanto, destinado a qualquer estômago vazio, a qualquer boca seca. Ora, banquetes se servem na casa de alguém, se posto na rua, seria a alguém que na rua morasse. Como não moro na rua, jamais poderia fartar-me daquilo. Resolvi manter intangível a mesa no lixo. Não era justo esbaldar-me em gula quando alguém poderia melhor merecê-la. Tenho restrições a tortas doces e preferia salgadinhos assados. Sou enjoado nas festas, pra ser sincero. E estava mesmo sem apetite.

Quem preparou o banquete? Quem seria tão sensível para servir uma ceia na lixeira ao invés de apenas recolher os restos de sua festa em sacos como faz todo mundo? Quem será esse raro exemplar de filho de Adão? Com a mesa assim posta e disposta, quem da rua chegasse enfraquecido não precisaria abrir todos os sacos. Imaginei o misterioso anfitrião na sacada de um apartamento aguardando a colheita de um sorriso num rosto triste. Qualquer um que chegasse à lixeira encontraria a mesa montada para si mesmo, poderia sentar-se, servir-se, limpar-se com guardanapo. Ao lado do bolo um garfo plástico e ao lado do refrigerante um copo descartável. Sobre a tampa da lixeira uma toalha imitando o linho. Tudo pensado em esmero.

A cidade desumaniza, afasta, isola. A cidade criou os apartamentos, os desconhecidos, os meninos de rua, os idosos de rua, os esgotos, a violência, o desemprego, a marginalidade. Mas enquanto alguém se preocupar em servir um banquete no lixo a ternura mantém sua raiz verde. Uma mesa posta para repartir o pão faz-se um radiante sinal do Reino dos Céus, um arco-íris na noite.

Minha situação é delicada porque me sinto um privilegiado habitante da metrópole. Embora o banquete no lixo não tivesse destinatário, tenho certeza absoluta, não foi para mim. Pior, nunca me lembro de o ter preparado.

Sobre o Autor

Pablo Morenno: Pablo Morenno nasceu em 21.05.1969, em Belmonte, SC, e mora em Passo Fundo, RS. É licenciado em Filosofia e bacharel em Direito. Também é professor de Espanhol em cursinhos pré-vestibular, músico e servidor público federal do Tribunal Regional do Trabalho/4ª Região, e pinta nas horas vagas. Escreve uma coluna semanal de crônicas no jornal O Nacional, de Passo Fundo RS, e Nossa Cidade de Marau-RS. Colabora com os jornais Zero Hora, Direito e Avesso, e com sites de leitura e literatura. É Membro da Academia Passofundense de Letras, ocupando a cadeira cujo patrono é Érico Veríssimo. Como animador cultural e escritor, participa de projetos de leitura do IEL- Instituto Estadual do Livro do RS e de eventos literários no Rio grande do Sul e Santa Catarina. Com suas palestras interdisciplinares e descontraídas, utilizando-se de histórias e da música, conversa com crianças, jovens, pais, professores e idosos sobre a importância da leitura e da arte na vida.

Livros publicados: POR QUE OS HOMENS NÃO VOAM? Crônicas, WS Editor e MENINO ESQUISITO, Poesia Infantil, WS Editor. Contato com o Autor: Pablo Morenno

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