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A descodificação do olhar antuniano

por Fernanda Massebeuf *
publicado em 28/05/2007.

Lobo Antunes, para quem viver é escrever sem poder corrigir (1), é um dos grandes nomes da literatura portuguesa contemporânea, sobretudo por seu estilo lascivo e ferino com o qual desmistifica e dessacraliza a gloriosa História de Portugal à medida em que a revisita nas Naus (2)(1988). A identidade portuguesa é o ponto fulcral de uma escrita tida como única fonte de sentido para a vida do autor (3), escrita através da qual ele transgride o proibido. O proibido, segundo o Dicionário Larousse Illustré (4), é um imperativo instituído a alguém por um grupo ou sociedade afim de impedi-lo de um ato, um comportamento. A transgressão por sua vez implica na desobediência de regras, na violação, no desrespeito. Daí essa transgressão do proibido ao invés de ser sinônimo de sua interdição, define juntamente com ele as regras da vida social. Aplicando esses conceitos às Naus percebemos que é o intuito do autor tocar a alma do leitor de maneira que este cesse de projetar o passado no futuro e comece a confrontá-los para poder enxergar o verdadeiro Portugal do século XXI. Agindo dessa maneira Lobo Antunes, ao assumir seu papel de psiquiatra visceral do povo português, é revelador daquilo que não se quer ver.

O perturbante halo transgressivo que reveste as Naus obriga à reflexão o leitor. Se o autor se serve de elementos sagrados da História portuguesa construindo um jogo entre passado e presente, verdade e imaginação, como por exemplo: as cantigas de D. Dinis, p.:130; Sepúlveda empilhava dólares na Suiça, p.: 129; a edição de bolso dos Lusíadas com bailarinas nuas na capa, p.: 129 podemos classificar a obra como Metaficção Historiográfica na medida em que se aborda essa miscelânea de gêneros literários com um certo distanciamento e ao mesmo tempo uma autoreflexibilidade, pois funciona o romance como espelho do autor. Ao definir essa metaficção Linda Hutcheon (1991)(5) aponta para a provisoriedade e a indefinição decorrentes da ambiguidade presente nesse estilo narrativo que provará a existência de uma pluralidade de verdades no lugar de uma única, cabendo ao leitor selecionar a versão que mais lhe agrada. Convergem com a teoria hutcheoniana no tocante à metaficção as perspectivas de Michel de Sertaut e Paul Veyne na medida em que afirmam que a História é uma ficção, uma elaboração, uma recriação. Poderíamos dizer que Manuel de Souza de Sepúlveda é o espelho de Lobo Antunes na medida em que ambos retornam desmoralizados à Lisboa após viverem uma grande tragédia, o que naturalmente implica numa reconstrução total da vida a partir do nada. Manuel Sepúlveda é o único sobrevivente de um naufrágio enquanto que Lobo Antunes testemunhou a morte e o sofrimento inflingidos aos outros durante a guerra de colonização em Angola. A escritura e o verdadeiro amor por uma única mulher também unem essas duas personalidades. Outros nomes implicados com a escritura ao longo do passado português desfilam pelo capítulo. Padre Vieira, Francisco Xavier, Fernão Mendes Pinto. Todos descredibilizados, desmistificados por uma caranavalização que se serve de recursos como o grotesco, o kitch, o mau gosto afim de que um Portugal decadente transpareça aos olhos do leitor, como constatamos na p.124 a figura de um padre Vieira bêbado e abraçado com duas negras, na p.126 Fernão Mendes Pinto e Francisco Xavier recrutando prostitutas ou na p. 132 um Nuno Alvares Pereira concorrente de Sepúlveda no negócio de boites suspeitas. Esse mundo às avessas dessacraliza os mitos, que poderíamos mesmo chamar de tabus portugueses, que num primeiro momento dilaceram profundamente o orgulho em relação ao passado português. Se o observamos através de um prisma literário transparece-nos um possível questionamento do autor em relação à profissão do escritor português de ontem e de hoje. Fernão Mendes Pinto à parte, sabemos que somente os feitos grandiosos eram mencionados pelos cronistas da Corte, ofuscando-se o contexto popular em versões únicas e ortodóxicas. Quando Lobo Antunes diz que hoje em dia os jovens escritores querem ser lidos na segunda, publicados na terça, obter sucesso extraordinário na quarta e serem traduzidos no mundo inteiro na quinta (6) é para chamar nossa atenção para o fato de que não se pode escrever com intuito imediato de sucesso. No passado morriam incógnitos para tornarem-se celebridades grandes nomes da literatura enquanto que nos dias atuais novas vertentes literárias prometem glória e fortuna imediatas, o que estimula produção e difusão em larga escala de uma pseudo-literatura.

Servindo-se de artimanhas literárias como a hibridez Lobo Antunes reconstrói a História de Portugal através da paródia, imitação crítica da realidade por meio da fusão espaço-temporal, da sugestão de possíveis atitudes que poderiam ser tomadas por personagens e da mistura de estilos de linguagem que evocariam a polifonia e a intertextualidade. Não há uma única história, mas várias histórias. A fusão espaço-temporal é percebida através dos exemplos na p.123: miasma de galeras afundadas no Tejo; autocarros; p.124: prato do gira-discos; as camionetas do lixo, na p.125. A mistura de estilos e linguagem exemplifica-se através de: Apesar de milonário e mui privado de el-rei nosso senhor, na p.129: Lixboa, na p.124 e na p.129: Sepúlveda presidia ao conselho fiscal de uma companhia de seguro. Todo esse amálgama dá margem à visibilidade das entrelinhas, das micro histórias que enriquecem e colaboram com a reconstrução de uma nova história plural, bem mais rica e democrática. Comprovando o que vem de ser dito Sepúlveda poderia ser visto como um pícaro, personagem caracterizado pela peregrinação e que faz absurdos para sobreviver ao encarnar o pobre diabo viajante, indo ao encontro ao mesmo tempo de sua descrição feita pela história oficial portuguesa e de seu desenho traçado por Lobo Antunes.

Evidencia-se então por uma ruptura com o poder absoluto de reconstrução do passado a crise de totalidade da História que é fundada nas viagens marítimas portuguesas, marca da Pós-Modernidade, e mais ainda, sinônimo de suversão. Subentende-se a interrogação do passado com espírito crítico para se reconstruir a memória e assim poder se reconstruir a identidade nacional forjada na época colonial, o que evoca o Pós-Colonialismo, teoria que põe em voga as culturas marginais ao dar voz aos vencidos e às minorias, além de interrogar a colonização e suas consequências. Não podemos negligenciar Edouard Saïd quando se trata desse assunto na medida em que ele foi pioneiro nos estudos demonstrativos do vínculo entre literaturas européias e o colonialismo sob a perspectiva da alteridade continental em relação às suas colônias, onde o outro é sempre uma construção do mesmo e que levará os ex-colonizados a quererem tornar-se independentes em relação ao passado e se libertarem de esteriótipos afim de adquirir visibilidade. São mencionadas com frequência as mulheres de vida fácil: p.123: manadas de raparigas lânguidas, p. 124: Antônio Vieira entre duas negras, p. 126: Fernão Mendes Pinto e Francisco Xavier recrutavam um contigente rasoável de mulatas. Reduzidas a prostitutas as mulheres, quase sempre de cor, sob a ótica antuniana reivindicam a visibilidade das minorias marginalizadas, ao passo que aparecem sempre como virtuosas as senhoras brancas, o que é bem exemplificado por Dona Leonor, a quem Sepúlveda presta homenagem dando seu nome ao bar onde trabalha. Subcategorizados mulheres, negros estão tão fragilizados como os homens remanescentes da guerra de colonização.

Sabemos que o autor esteve em Angola, fato que o marcou profundamente ao ponto de estar sempre presente em seus recitos. Foram escritas na década de oitenta as Naus de uma viagem de retorno após a dolorida dissolvição do império colonial português. A partir daí poderíamos acreditar na existência de uma intenção antuniana no que se refere à pertinência quanto ao uso de extrema violência e o mesmo em relação ao outro, além do questionamento em torno da necessidade de se colonizar, ato que implica em dominação e repressão. Os seres humanos não devem se sobrepor uns aos outros. As relações entre os povos devem sempre existir num âbito de respeito, sobretudo em relação às diferenças. O leitor se depara a uma pequena Lisboa, palco dos personagens ressurgentes e decadentes, de cujas glórias do passado lhes restam somente suas denominações célebres, recriadas por Lobo Antunes de acordo com uma perspectiva político-social altamente crítica e irônica. Essa redução da glória ao nada tem o intuito de mostrar ao leitor o quanto a colonização foi inútil, o quanto a violência e o sofrimento humano não se justificam na medida em que se constata atualmente um Portugal reduzido a mero figurante periférico no grande cenário europeu. Então, todas as certezas estabelecidas pela História são fragmentadas, desconstruídas dando margem à novas e múltiplas possibilidades de interpretação dela ao invés de uma única versão oficial.

Revela a análise psicológica do autor a verdade multifacetada na obra na medida em que Lobo Antunes vive intensamente suas criações ao ponto de confessar que os personagens de seus livros o perseguem como se ele vivesse cercado de fantasmas (7). Essa dimensão autobiográfica revela o quanto o sofrimento vivido lhe proporcionou um olhar coerente e crítico em relação ao mundo a sua volta, além de uma escritura sagaz, às vezes feroz e com certeza pedagógica. Entremeiam-se os fios da História aos da ficção na Naus através da transgressão de tabus portugueses com o objetivo de nos mostrar o caos do mundo contemporâneo às avessas e caracterizar a sociedade portuguesa atual como cega pelo espectro de um passado glorioso. O autor incita o inconsciente coletivo através do conjunto de vozes que desfilam e que despojam os pesonagens de seus invólucros heróicos ao revelar o humano, o mortal, o sombrio de cada um deles. A partir daí nos conscientizamos de que todos nós somos imperfeitos e susceptíveis aos desacertos por meio de uma catarse sustentadora de uma nova visão descomplexada do Portugal atual. Graças à escritura tudo o que me aconteceu é infinitamente melhor do que eu pude imaginar. (8)

1) Blanco, Maria Luisa, Conversations avec Lobo Antunes, traduit de l´espagnol par Michelle Giudicelli, Paris, Christian Bourgeois Editeur, 2004, p. 83.
2) Antunes, A. Lobo, As Naus, Lisboa, D. Quixote, 1991.
3) Blanco, Maria Luisa, Conversations avec Lobo Antunes, traduit de l´espagnol par Michelle Giudicelli, Paris, Christian Bourgeois Editeur, 2004, p. 257.
4) Le Petit Larousse Illustré, Paris, Larousse, 2007.
5) Hutcheon, Linda, Poética do Pós-Moedrnismo. História, teoria, ficção, traduzido do inglês por Ricardo Cruz, R.J., Imago, 1991.
6) Blanco, Maria Luisa, Conversations avec Lobo Antunes, traduit de l´espagnol par Michelle Giudicelli, Paris, Christian Bourgeois Editeur, 2004, p. 199.
7) Idem, p. 61.
8) Idem, p. 235.


Referências Bibliográficas
Antunes, A. Lobo, As Naus, Lisboa, D. Quixote, 1991.
Blanco, Maria Luisa, Conversations avec Lobo Antunes, traduit de l´espagnol par Michelle Giudicelli, Paris, Christian Bourgeois Editeur, 2004.
Durand, Gilbert, Les structures anthropologiques de l´imaginaire, Paris, Bordas, 1969.
Dorey, Roger et Pérard, Dominique, L´interdit et la transgression, Paris, Dunod, 1983.
Hutcheon, Linda, Poética do Pós-Moedrnismo. História, teoria, ficção, traduzido do inglês por Ricardo Cruz, R.J., Imago, 1991.
Le Petit Larousse Illustré, Paris, Larousse, 2007.
Mini Aurélio, R.J., Nova Fronteira, 2002.

Sobre o Autor

Fernanda Massebeuf: Fernanda Massebeuf é graduada em LLCE (Língua, Literatura e Civilização Estrangeira) pela Universidade Sorbonne - Paris IV. Realiza atualmente um Master (Mestrado) a fim de se especializar em literatura brasileira, desenvolvendo estudo sobre a poesia de Hilda Hilst.

Email: ferdie45@hotmail.com

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