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LEGIÃO
por Miguel Sanches Neto
*
publicado em 12/11/2005.
Um homem sem cheiro. O marido tinha sido sempre assim, desde o primeiro encontro, os dois ainda jovens. Em casa, tudo é neutro: o amaciante de roupa, o papel higiênico e o detergente para lavar louça. Por não terem filhos nem empregada, almoçam fora e ficam livres do cheiro de comida.
– Falta primavera – e Maria das Neves não está pensando na primavera de corpos adolescentes, mas nesta outra que se compra no mercado, um sabonete com odor de flores do campo, por exemplo.
Casais sem filhos ou são muito organizados, não admitindo nenhum bibelô fora do lugar, ou completamente largados, a casa transformada em campo de batalha, roupas em todos os cantos. Pertencendo ao primeiro grupo, Sandro e Maria das Neves têm obsessão pela limpeza e pela posição de cada peça na cristaleira, pelo lugar dos livros na estante e pela ordem das roupas no armário.
Quem entra no escritório de advocacia do casal – os dois atuam no mesmo ramo – sente-se no lugar errado. Tudo branco e frio, um verdadeiro consultório odontológico. O ar-condicionado sempre em 18 graus.
Sandro mantém na primeira gaveta de sua mesa um estoque de lenços umedecidos com produtos antigermes, e limpa as mãos depois de se despedir de cada cliente. Nas suas idas ao fórum ou a reuniões, carrega pacotes de lenços úmidos, usados a todo instante.
Esta e outras manias nada significam para Maria das Neves, que, desde mocinha, sonhava com um homem civilizado. Assim que conheceu Sandro, ainda na faculdade, apaixonou-se. Casaram-se meses depois e a vida conjugal é esta longa estação na enfermaria.
– Tanta limpeza deve ter esterilizado os dois – a secretária do escritório comenta com a faxineira.
Agora a novidade. Um cliente marcando encontro na sauna do clube, onde os empresários se reúnem nas tardes de sábado. Sandro sugeriu um bar novo, mas, acostumado a mandar, o industrial apenas repetiu a frase e desligou o telefone.
Ele não disse nada para Maria das Neves até o final de semana. No sábado de manhã, foi ao cabeleireiro e depois a uma loja – comprou chinelas novas, um roupão branco e cuecas. De volta, fez a barba e arrumou em uma bolsa de mão os produtos de higiene. Chegou na hora marcada, apresentando-se ao porteiro do clube e pronunciando o sagrado nome do cliente.
– O senhor pode entrar, ele ainda não chegou.
No bar da sauna, viu senhores de toalhas surradas em torno da cintura, aglomerados ao redor de uma mesa, comendo pão com carne. Um deles estava totalmente nu. Todos conversavam alto, ignorando sua presença. O cheiro de pinho despertou sua vontade de espirrar, mas controlou a renite, vencendo o formigamento do nariz. Para não parecer que estava observando os homens seminus, olhou para o bar. O barman estendeu duas toalhas, uma chave numa cordinha e um sabonete. Ele ficou com aquilo na mão direita, enquanto a esquerda segurava a bolsa.
– Onde fica o vestiário?
Um senhor de idade olhou para ele com ar de desconfiança. O barman apontou uns armários de aço dispostos em forma de reservado.
Ele foi para lá, conferiu o número do armário e abriu a porta enferrujada. Havia um par de chinelas imensas, número 44. Guardou a bolsa, tirou a roupa e o tênis, sentindo-se ridículo com a cueca nova, mas logo estava enrolado na toalha e calçando as chinelas 44. Ao sair do reservado, encontrou o cliente.
– Dr. Sandro, venha experimentar um pedaço de carneiro.
Ele obedeceu em silêncio. Aproximou-se da mesa e fez os mesmos movimentos dos demais. Pegou um pão, abriu uma cavidade com a mão, pescou um pedaço de carne com o garfo coletivo, deixou cair no pão e comeu. Depois da primeira mordida, não sentiu mais o gosto forte da carne.
O industrial brincando com os amigos e ele tão tenso, como um menino que vai pela primeira vez ao dentista.
– Fazemos sauna aqui há mais de 30 anos – disse o cliente, indo para os armários.
Sem ter com quem conversar, Sandro repetiu o ritual e ficou num canto. O cliente voltou, ordenando:
– Vamos para a limpeza dos poros.
Entraram por uma porta e deram com o banheiro de chão úmido, com boxes para chuveiro e uma pia longa. O empresário tirou a toalha, pendurou num dos ganchos de inox na parede. Sandro repetiu estes movimentos.
Entraram num corredor que terminava na sauna úmida. Dali vinha o cheiro de pinho. Do lado direito, a sauna seca – com vidro na porta, revelando paredes revestidas com madeira escura. Do lado esquerdo, duchas de água fria.
Sentaram-se no degrau de cerâmica da sauna úmida, forrando-o com a toalha de rosto, e começaram a negociação. Sandro estava tão concentrado que não olhava para lado nenhum, apenas para as chinelas. Gotas de água caíam do teto.
O cliente fez a barba na sauna, depois de cobrir o rosto com creme Bozzano. Na saída, massageou o rosto com uma loção da Gillette. Secaram-se diante do espelho, enrolando-se na toalha e voltando ao bar.
Com o negócio encaminhado, beberam cerveja para selar o acordo. Agora, todos viam tevê. No canto do balcão, uma caixa de cotonetes. O empresário tirou uma haste e secou o ouvido. Sandro mais uma vez o imitou. Depois, foram para o armário e se trocaram.
Em casa, Sandro ainda sentia a quentura da sauna, por isso tomou um banho frio.
– Como foi? – perguntou Maria.
– Fácil – e contou tudo.
– Você teve que suar para pegar este trabalho – ela riu.
No sábado seguinte, o marido não fez a barba pela manhã. À tarde, saiu com um aparelho de barbear, ele que só usava barbeador elétrico. Tinha nova reunião com o industrial. Chegou como velho freqüentador, pedindo as toalhas.
Encontrou o amigo diante da pia. Contou as providências, tinha mantido contato com os funcionários dele, enquanto passavam o creme de barbear. Conversando, foram para a sauna úmida. Ele agora olhava os homens, alegres como colegiais. Até arriscou entrar na discussão coletiva.
Ao sair, usou a loção pós-barba, sentindo no rosto uma ardência saudável.
A mudança foi percebida de longe por Maria.
– Que cheiro de macho!
– Eles usam esta loção lá na sauna. Achei que seria deselegante negar uma tradição.
Naquela noite, Sandro não tomou banho, e os dois dormiram abraçados, como no início do casamento.
Maria sonhou que dividia a cama com homens desconhecidos.
Sobre o Autor
Miguel Sanches Neto: Escritor paranaense e crítico literário, assinando coluna semanal no maior diário do Paraná, a Gazeta Povo (Curitiba), tendo publicado só neste jornal mais de 350 artigos sobre literatura, fora as contribuições para outros veículos, como República e Bravo!, O Estado de São Paulo, Jornal da Tarde (São Paulo) e Poesia Sempre e Jornal do Brasil (Rio de Janeiro).< ÚLTIMA PUBLICAÇÃO | TODAS | PRÓXIMA>
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