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VIAGEM PARA APARECIDA

por Miguel Sanches Neto *
publicado em 15/10/2005.

Na Torre da Basílica, a 100 metros de altura, o menino sentiu vertigem. Então o mundo era assim tão vasto. Ele mal pode apreciar, lá embaixo, as águas mansas do Rio Paraíba, onde pescadores haviam encontrado, em 1717, a imagem de Nossa Senhora. O menino foi socorrido pela mãe, que o acomodou num banco, enquanto os irmãos corriam de uma janela à outra do mirante envidraçado, olhando a cidade, as montanhas, a passarela que ligava a igreja nova à velha, tudo era para eles descoberta. Mas o menino sofria pensando que teriam que descer de elevador, sentindo antecipado o vazio na barriga, ele que nunca tinha subido em nada além de árvores e que vinha de uma existência de quintais. Agora olhava o mundo da torre alta, tão alta que ele sentia falta de ar.

No último final de semana, a primeira coisa que eu quis fazer em Aparecida foi visitar a Torre da Basílica. O elevador subia lento e, no mirante, não senti nada, apenas dó daquele menino que um dia ali esteve e não viu a paisagem, sempre sofrendo este incômodo diante de tanta precariedade. Parei em cada uma das janelas, observando as moedas na soleira, atiradas pelas frestas no alumínio – todos queriam apenas ficar rico? Mas havia também centenas de cigarros. Os dois maiores problemas do homem eram a falta de dinheiro e o cigarro? Estudei as feições caipiras, conversei com três solteironas de Castelo, no Espírito Santo, que bem poderiam ser minhas tias. O menino já não existia, o homem não sente vertigem, acha Aparecida uma cidadezinha, mas aquela outra pátria rural ainda está viva. Enquanto olho as pessoas, descubro, nos cantos do mirante, duas máquinas de coca-cola. Quase ninguém ali sabia usar as máquinas – um século os separa do agora.

A viagem antes era longa, tinha farofa de frango, parada na beira da estrada, garrafas de café, brigas para ver quem se sentava ao lado da vidraça no velho fusca recém-comprado. Pousar em um hotel em Aparecida, sair por escadarias, ver o comércio fervilhando, andar na passarela, tudo deslumbrava o menino, até a comida desonesta que era servida. Aparecida, meu Deus, era uma cidade grande, com duas igrejas, uma tão imensa que, ao olhar para cima, sentia-se tontura. O menino queria imagens de santos, queria sorvete, sonhava com um revólver de brinquedo, todo preto, apenas o cabo branco. Ele enfim havia saído de sua cidade, de seu estado, era a primeira viagem de verdade, e não sendo romeiro nem devoto, era o mundo que ele conquistava.

Não assisti a nenhuma missa, olhei com tédio a Basílica em estilo neo-românico, eu agora vinha de uma formação moderna, e nada me encantava. Mas desci à Sala das Promessas, no subsolo, e senti a mesma vertigem de outrora. Já não temia a queda no vazio, a expansão súbita do horizonte, o que me assustava era a dor de meus semelhantes, sim, meus semelhantes, porque embora hoje urbano, com hábitos de outra classe, ainda me identifico com os romeiros pobres e crentes, que levam objetos pessoais, pernas e cabeça de cera, fotos, roupas de parentes, em agradecimento às graças recebidas. Esta outra vertigem eu a sinto mais profunda. Penso em fazer um pedido para Nossa Senhora, mas meu senso de ridículo me intimida, então leio mensagens dos devotos e tomo tudo como manifestação da pátria mística.

O pai do menino conduziu seu rebanho à igreja velha, para a missa. Depois, em fila interminável, eles passaram pela Rádio Aparecida, nos fundos do prédio, para mandar recados a parentes. Antes, ouviu: “aqui quem fala é fulano de tal – bença, pai; bença, mãe – gostaria de dizê que fizemo boa viage e que já pagamo a promessa, com a graça da Mãe Santíssima, amém”. Numa biboca qualquer do Brasil, uma mãe ouvia o filho. O pai também falou algo na rádio, eles ganharam a praça, era inverno, julho provavelmente. Aquele era o mundo? Seria possível viver ali, eternamente?

Saí pela passarela, um ou outro romeiro a percorria de joelhos, alguém se perguntou: que promessas mais fortes são essas? Eu seguia em busca do centro velho, onde, 30 anos antes, eu tinha me esquecido. O menino ainda estaria lá? A cidade me parece agora tão suja, é apenas um subúrbio cheio de camelôs, nenhum bar para se descansar ao lado de bebidas refrescantes. Contorno a praça, entro na igreja velha, que está em reformas, um padre pede donativos para manter a TV Aparecida. Eu deixo a igreja e busco abrigo na rua, em seu burburinho.

O menino estava emburrado. Queria tirar foto montado na zebrinha, com sela e tudo. Mas o pai não deixou, aquilo nem zebra é. O menino chorava, dizendo que era zebra sim, não estavam vendo as listas? Queria tanto mostrar para os amigos que tinha visitado um lugar tão distante em que até zebra havia. Mas o pai tinha outros planos. Falou com o Pe. Vítor e eles todos posaram em foto de família, na frente da igreja, o padre entre o pai e mãe, batina e cabelos brancos, os filhos na frente, em escadinha. Ele era o maior, olhar perdido de quem cavalga animais bravios.

Lá estão os eternos fotógrafos de praça, todos querem tirar meu retrato, mostram fotos de família, que são outras, coloridas, mas iguais àquela dos anos 70. Eu digo educadamente que não. Fico zanzando pela praça, olhando cavalinhos de madeira, montados por crianças, que assim realizam meu antigo sonho. Os fotógrafos exibem máquinas digitais, mas há um velhinho, com a aparelhagem de lambe-lambe, a caixa de madeira coberta de retratos preto-e-branco. Penso em perguntar se por ventura se lembra de um menino que ficou ali, naquela praça, perdido para sempre. Nós nos olhamos com algum distanciamento, então sigo para a passarela, a caminho do hotel.

A família está arrumando as malas, vão pegar de volta a estrada – inumeráveis horas de viagem, paradas em postos, brigas pelo lugar no banco, o pai mostrando as fábricas de São Paulo. O menino se imagina sempre viajando, numa vida de cigano. E se não subisse no carro e se ele se perdesse na multidão, se fosse viver pedindo esmolas nas calçadas, se resolvesse fugir para a África na zebrinha? Tudo estava pronto no carro, eles entraram, o pai deu a partida, o menino olhando pelo vidro traseiro, ajoelhado no assento. Como poderia haver cidades tão grandes como Aparecida? De longe, ele ainda divisava a Torre da Basílica.

Quando cheguei ao pátio dos ônibus, no portal que dá para a rua, vi a mesma zebrinha de minha infância, pronta para quem quisesse ser fotografado tendo ao fundo uma pintura do santuário. Alguns meninos pobres se aglomeravam em torno dela, uma mãe acertava o valor das fotos. Eu me aproximei com cautela, olhei para a zebra, que era apenas um jumento cinza, pintado com listras pretas. Ele estava cansado de ficar ao sol, servindo de cenário. “Quer tirar uma foto?”, perguntou-me o dono. Eu disse não, agora era muito tarde.

Fonte: Gazeta do Povo, 15 de outubro de 2005.

Sobre o Autor

Miguel Sanches Neto: Escritor paranaense e crítico literário, assinando coluna semanal no maior diário do Paraná, a Gazeta Povo (Curitiba), tendo publicado só neste jornal mais de 350 artigos sobre literatura, fora as contribuições para outros veículos, como República e Bravo!, O Estado de São Paulo, Jornal da Tarde (São Paulo) e Poesia Sempre e Jornal do Brasil (Rio de Janeiro).

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