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Os Sonhos Das Coisas

por Pablo Morenno *
publicado em 16/10/2005.

Quanto às sementes, minha mãe fala a verdade. Feijão cozido com pé de porco é um desperdício. Serve apenas para matar a fome, não cumpre seu sonho de perpetuar a espécie dos feijões. Nada adianta dar-lhe cova e adubo, apodrece e não vinga. O feijão preparado para ser alimento frustrará um de seus sonhos. Mata a fome, mas não brota. Escolhido entre pedras e carunchos, o grão vai à panela com sonho também escolhido. Os sonhos do feijão são alternativos e não aditivos. Se matar a fome, não germina. Se germinar, não mata a fome.

Sobre o sonho das coisas e sua ânsia em realizá-los, Jorge Luis Borges, o argentino, relata com gênio peculiar em O Punhal. Enquanto alguns se divertem enfiando-o e tirando-o da bainha, sente-se, o punhal, frustrado e inútil. De que lhe valeu o sofrimento da têmpera e forja? Quer matar, quer sangue. Numa gaveta da escrivaninha, entre rascunhos e cartas, interminavelmente sonha o punhal seu singelo sonho de tigre, e a mão se anima quando o rege porque o metal se anima, o metal que pressente, em cada contato, o homicida para quem o criaram os homens. Às vezes tenho pena. Tanta dureza, tanta fé, tão dócil ou inocente soberba, e os anos passam, inúteis.

Tem dias que viajo no sonho das coisas e seu latente desejo de vir à tona. Além do sonho das sementes, naturalmente engendrado, há coisas nascidas da imaginação do homem com seus desejos também humanos. Natural ou inventado, todo sonho possui uma força indomável para tornar-se realidade. É por isso que as batatas e as cebolas brotam na despensa e que os venenos vazam dos frascos. Por trás das coisas, háum poder maior que elas, é o poder do sonho para o qual existem ou foram plasmadas.

Se o sonho das coisas não se tornar realidade, sempre haverá frustração. É o que ocorre com um livro não lido, uma roupa esquecida, uma panela no armário, um perfume evaporado. Se o livro não foi aberto, uma imaginação foi morta. Se a roupa não foi vestida, alguma beleza ocultou-se. Se a panela não foi usada, uma ceia deixou de ser feita. Se o perfume evaporou, um cheiro de rosas se perdeu para sempre.

Às vezes, enxertando uma utilidade antes inexistente, o homem trai o sonho original das coisas. Utilidade não é sonho, não o substitui. O livro guardando recortes, o vestido tapando uma fresta, a panela aparando goteiras e o perfume incendiando as achas de lenha. Caberá ao sonho resignar-se à espera de um tempo propício, ou à eterna frustração imposta.

Quando o homem desvia o sonho das coisas, torna-se profundamente responsável pelos resultados. Simplesmente porque ele traiu o sonho latente enxertando outro impróprio e extrínseco. Éo caso de se usar um tijolo, com seu sonho de casa, para estraçalhar um ser vivo. Ou quando uma faca de cozinha, com seu sonho de cortar alimentos, transpassa um pulsante coração.

É por causa da força dos sonhos latentes nas coisas que eu sou a favor da proibição do comércio de armas e munições. Na bala e na arma, como no punhal de Borges, haverá um sonho buscando alguém para realizá-lo. Uma arma sem disparo, uma bala sem matar, desperta compaixão por seu sonho frustrado. Tanto metal forjado e inútil. Ela têm direito a seu sonho que, ao contrário do sonho dos feijões, não se contenta com a metafórica morte da fome.

Sobre o Autor

Pablo Morenno: Pablo Morenno nasceu em 21.05.1969, em Belmonte, SC, e mora em Passo Fundo, RS. É licenciado em Filosofia e bacharel em Direito. Também é professor de Espanhol em cursinhos pré-vestibular, músico e servidor público federal do Tribunal Regional do Trabalho/4ª Região, e pinta nas horas vagas. Escreve uma coluna semanal de crônicas no jornal O Nacional, de Passo Fundo RS, e Nossa Cidade de Marau-RS. Colabora com os jornais Zero Hora, Direito e Avesso, e com sites de leitura e literatura. É Membro da Academia Passofundense de Letras, ocupando a cadeira cujo patrono é Érico Veríssimo. Como animador cultural e escritor, participa de projetos de leitura do IEL- Instituto Estadual do Livro do RS e de eventos literários no Rio grande do Sul e Santa Catarina. Com suas palestras interdisciplinares e descontraídas, utilizando-se de histórias e da música, conversa com crianças, jovens, pais, professores e idosos sobre a importância da leitura e da arte na vida.

Livros publicados: POR QUE OS HOMENS NÃO VOAM? Crônicas, WS Editor e MENINO ESQUISITO, Poesia Infantil, WS Editor. Contato com o Autor: Pablo Morenno

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