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De Baquetas e Batuta

por Conrad Rose *
publicado em 22/05/2005.

Zé chamou Zé prá passear. Pai e filho de oito. Almoço, jogos eletrônicos... depois, o racha do mais velho num sintético arenoso do Aterro do Flamengo, umas duas no botequim prá: comentar à vontade, discutir o final das contas, retomar amizades e hidratar.

Então, já onze da noite, os dois cruzavam a Lapa rumo à Central do Brasil, quando se depararam a um negro homem de cabelos grisalhos – físico naturalmente prevalecido, com um par de baquetas a tremer uma bateria de sete peças. Só(!), embora a palavra se contraste, tamanhos: domínio, suingue, cadência e ousadia do baterista. Por outro lado, veste como luva na inusitada falta de acompanhamento: o artista no afã com o instrumento; platéia não lhes era fundamental.

Geral parava e o par de Zés sentou-se no gramado para absorver. Logo, o menor deles deslocou-se pela relva, rompeu uma mureta de pedras e hospedou-se a um passo do prato. Na calçada – coisas do Rio.

Tum tum tá, Tutum tutum tá!

O moleque não mais piscava. Faíscas saltavam-lhe os olhos. Amoleceu o beiço e começou a batucar no chão. Levantava-se e tornava a sentar, alterando apenas o ângulo, nunca a feição; enquanto o músico escorria de ritmo e suor, até escapar-lhe uma das baquetas.

De pronto continuou a tocar com a mão, improvisou e num piscar de olhos – excetuando-se os do pequeno Zé, apareceu-lhe à mão outra baqueta, esta já partida pelo esforço de certa virada. Simultâneo, Zé apanhou a caída e a estendeu ao baterista que, ainda sem parar, trocou-as, cedendo ao garoto a quebrada. Sorriram-se com gratidão suburbana: valente e gentil modo de olhar. Zé fez dela, além de baqueta, batuta; e nas pedras da Lapa, batucada.

Outro sorriso - lado oposto da bateria - reluzia o maior dos Zés e cobria uma mulher inteira. A dona era provida de longos e cacheados cabelos castanhos e tremeluzentes olhos da mesma cor que, sorrateiramente, fitavam os lampejados negros do boleiro. Quando ela se fez dançar, outro beiço suspendeu. Moderados movimentos com gingado carioca, insinuantes e encantadores. Torpor a anestesiar o Zé pai.

Mais: ela caminhou até o chapéu sustentado por um tripé – onde o músico recebia aplausos em espécie, cada qual seguido dum sucinto brado de agradecimento – depositando ali uma nota. Passos compassados que arrepiaram uma metade inteira do par de Zés.

Sua fidalguia acessível fazia da bela muito além de miss simpatia, mas sim uma mulher em busca de vida, duma deriva de amor temerário.

Tum tum tá, Tutum tutum tá!

Mal o baterista encerrou a série, a linda se foi; Zé nada fez. Rodou a aliança no dedo e sossegou. A cozinha caseira prevalecera desta feita, ainda mais porque Zé tinha ciência do quão seria doído desprezá-la mais tarde, ou o peso dele mesmo sê-lo na abordagem. Depois, destratar a mãe do garoto, na frente dele(?): inviável.

- Melhor deixar prá lá. – regurgitou.

Assim, acompanhou-a em perspectiva até seu desaparecimento sob os Arcos.

Mais tarde, caminhando pela Mem de Sá, a dupla conversava:

- Viu meu gol? Não tem prá zagueiro nenhum. Eu desenrolo e rede!
- Eu vi.
- E o maluco da bateria?
- Maneiro. Ele me deu isso e disse pr´eu catar umas latas. – mostrando ao pai a baqueta quebrada.
- Falou com ele?
- Falei não, só ouvi.

- Na sexta, ele fatura. Gringo vê e abre o bolso. Mas se chover, já era. - ... - Bom, se ele falou prá juntar umas latas, eu vou ajudar. O cara tem conceito e se achou que você dá pra coisa, já é... Agora tem uma: o maestro aí vai ter que dispensar a batuta por hora. Prá chegar na vila, tarde da noite, com um espeto destes, só se for louco. Dura da polícia e satisfação pros comandos.

- É presente! - súplica infantil.
Zé pai serenou. Esbugalhou os olhos e, trancafiando-se, reluziu novamente - talvez pela música, pelo encantamento ou pela ausência de culpa neste montante:
- Vamos fazer assim. Deixe comigo. Me ajude a procurar um canto prá mocar.
- Que tal um buraco de tijolo?
- Bem isso.

Mais adiante, alojaram a madeira num estacionamento da Presidente Vargas. Na condução, pela Avenida Brasil, Zé filho pronunciou:

- Logo vamos precisar dum buraco maior. Bem maior! – e sorriu com aquela ansiedade própria de criança fascinada.

Já na cama, o menor sonhou em morar numa antiga e espaçosa casa da Lapa.

Tum... tum... tutum tá!

Sobre o Autor

Conrad Rose: Conrad Rose é um escritor paranaense que observa o comportamento humano e brinca com sua paisagem. Atualmente ministra oficinas de criação literária em Santa Teresa, bairro do Rio de Janeiro.

Email: conradrose@hotmail.com

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