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Responsabilidade Civil dos Profissionais Liberais

por Antonio Kehdi Neto *
publicado em 17/04/2003.

I - GENERALIDADES

De capital importância na atualidade são as atividades desenvolvidas pelos profissionais liberais, tais como médicos, dentistas, advogados, engenheiros, arquitetos, fisioterapeutas, fonoaudiólogos, psicólogos, veterinários, enfermeiros com formação universitária, economistas, farmacêuticos, contabilistas, etc.

Tal qual ocorre nos demais segmentos, a atividade dos profissionais liberais, nos últimos tempos, tem crescido de forma vertiginosa, contribuindo para isso a proliferação de cursos superiores em nosso país, ao mesmo tempo tornando mais acessível aos interessados a obtenção de vagas nas diversas universidades hoje existentes.

Assim, a exemplo do que ocorre nos campos dos mais diversos setores da economia, o que se tem visto é a massificação das atividades dos profissionais liberais, o que, na seara da responsabilidade civil, tem um reflexo de extremo vulto.

Por profissional liberal, na definição de De Plácido e Silva , se deve entender o titular de toda profissão que possa ser exercida com autonomia, isto é, livre de qualquer subordinação a um patrão ou chefe. Trata-se, segundo o autor, de expressão usada para designar toda profissão, em regra de natureza intelectual, que se exerce fora de todo espírito especulativo, revelada pela independência ou autonomia do trabalhador que a exerce.

No campo da responsabilidade civil, quando se tratava de violação praticada por profissionais daquela estirpe, o dever de reparação sempre derivou da norma inserta no artigo 159 do Código Civil de 1.916, que cedeu passo ao artigo 186 da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2.002 – novo Código Civil – hoje em vigor. Isso, não apenas na seara das profissões objeto dessas considerações, como ainda nos demais ramos de atividade, inclusive dos prestadores de serviços em geral, gênero do qual faz parte a espécie dos profissionais liberais.

Portanto, o fundamento da responsabilidade civil daqueles profissionais sempre se assentou na existência de culpa em sentido amplo, abrangidos o dolo, consistente na vontade deliberada de praticar o ato ilícito, e a culpa em seu campo estrito, levando-se em conta a existência do quaisquer dos institutos que compõem o trinômio imprudência, negligência e imperícia.

Com o advento do Código de Defesa do Consumidor houve uma grande revolução no âmbito da responsabilidade civil, pois que o referido diploma acabou por inverter o seu fundamento, passando da teoria subjetiva, calcada na culpa, para a objetiva, decorrente do risco da atividade profissional.

Assim, o chamado fornecedor de produtos e serviços, que naquele Codex assume mais de uma feição, passou a responder objetivamente pelos danos causados aos consumidores, isto é, ainda que não tenha agido com culpa.

A par dessa inovação legal, tem-se que aquele Código, ao traçar a responsabilidade civil dos profissionais liberais, deixou-os de fora daquela alteração, pois que o parágrafo 4º de seu artigo 14 veio assim dispor: "A responsabilidade pessoal dos profissionais liberais será apurada mediante a verificação de culpa." Infere-se, pois, que nesse aspecto o Código de Defesa do Consumidor manteve o fundamento subjetivista.

Assim é que, suportando o dano, aí entendido o de ordem material e o de cunho moral (dano extrapatrimonial), cabe ao lesado comprovar não somente a ação ou omissão ilícita do ofensor, das quais tal prejuízo foi originado (nexo de causalidade), mas também a culpa do autor da ofensa, sem o que não há que se falar no dever de reparação.

Porém, à vista da inovação trazida pelo Código do Consumidor, que evoluiu para o campo da responsabilidade sem culpa, é de se indagar se o legislador andou bem, ao permanecer no campo da teoria subjetiva para o caso dos profissionais liberais.

Com efeito, embora as relações desses profissionais com a sua clientela, via de regra, se verifique na base da fidúcia, v.g. o caso do paciente que procura pelo médico da família, ou do cliente que busca os serviços do advogado de sua confiança, é imperioso considerar que o aumento da sociedade de consumo, a massificação dos contratos e a evolução tecnológica contribuíram para o incremento das atividades exercidas pelos profissionais liberais, e por isso questionamos se a permanência do referido prestador de serviços no campo da responsabilidade subjetiva foi medida de acerto por parte do legislador do Código de Defesa do Consumidor.

A doutrina mais autorizada não tem dúvida em enquadrar a relação do profissional liberal com o seu cliente dentro do contexto daquele diploma consumerista. Afinal, se assim não fosse, por certo que não teria o Código um dispositivo especial, reservado ao referido profissional, tal o caso do parágrafo 4º de seu artigo 14.

No entanto, não obstante o aumento significativo do número daqueles profissionais, o avanço tecnológico, principalmente no campo da medicina, e a proliferação das sociedades de consumo, agiu bem o legislador, ao manter aquele tipo de responsabilidade dentro de uma sistemática que é embasada no critério da necessária e antecipada prova de que tenha havido, pelo prestador do serviço, o dolo ou a culpa.

Com efeito, isso se justifica porque os profissionais liberais, que mantêm com seus clientes um vínculo de natureza essencialmente contratual, eis que decorrente de um acordo de vontade entre as partes, quando atuam nessa condição (de profissionais liberais), entabulam avenças cujo conteúdo encerra uma obrigação de "meio" e não obrigação de "resultado".

Nesse prisma, entende-se que o médico, por exemplo, contratualmente, não está obrigado a curar o seu paciente, ou seja, não está adstrito à obtenção do resultado buscado, e que deu ensejo à realização do tratamento. Ainda no caso, é evidente que deverá o médico ser o mais diligente possível no trato da questão para com o seu paciente, envidando todos os esforços e perícia técnica para realizar o que lhe foi pedido pelo seu contratante. Isso, porém, não significa que o referido profissional haverá, necessariamente, de obter o resultado buscado pelo paciente, eis que a ciência médica, conquanto hoje altamente evoluída, está sujeita a inúmeras vicissitudes, as quais poderão frustrar aquele desiderato, sem que por isso se possa falar em culpa do profissional.


II - OBRIGAÇÃO DE MEIO E OBRIGAÇÃO DE RESULTADO

Conforme já salientado, existe vínculo jurídico entre o profissional liberal e o seu cliente, o qual assume uma feição nitidamente contratual.

No caso do médico, por exemplo, Maria Helena Diniz é taxativa, ao afirmar a natureza contratual da responsabilidade daquele profissional, por haver entre ele e o paciente um contrato, que se apresenta como uma obrigação de meio, já que não comporta o dever de cura do paciente, porém de prestar-lhe os cuidados conscienciosos e atentos, consoante os progressos da medicina.

E assim também o advogado, o contador, o veterinário, etc. Evidente que estes prestadores de serviços são obrigados a agir com extrema diligência e acuidade no desempenho de suas atividades, de forma a cumprir a sua parte no contrato.

Não se admite que, a pretexto da permanência desses profissionais no campo da responsabilidade subjetiva, possam eles desempenhar seu mister de forma inadvertida e sem o mínimo de precaução. Não é razoável, por exemplo, tolerar-se a perda de prazo injustificada pelo advogado, eis que desse modo estaria caracterizada manifesta negligência no desempenho do mandato que lhe fora outorgado pelo seu cliente.

Frise-se, em contrapartida, que o advogado não está, efetivamente, obrigado a atingir o resultado buscado, o qual deu ensejo à propositura da ação judicial em favor de seu constituinte. Até porque, esse desiderato não está a depender de seu exclusivo alvedrio, eis que o julgamento da causa é ato privativo da autoridade judiciária, que poderá ou não acolher a pretensão por ele deduzida em prol do outorgante do mandato.

Em geral, a obtenção dos resultados desses serviços estão sempre na dependência de circunstâncias alheias ao empenho, à competência e à vontade do profissional, de sorte que não seria razoável exigir do mesmo uma completa garantia de perfeição daqueles resultados.

No caso das obrigações de meio, tipicamente atribuídas aos profissionais liberais, não é dever do prestador de serviço a consecução do resultado para o qual foi contratado, mas tão somente exercer o seu labor com perícia, nele empreendendo o grau máximo de zelo, boa vontade e tirocínio.

Já nas chamadas obrigações de resultado, que no campo de atuação dos profissionais liberais são poucas, não basta ao profissional atuar com diligência, cuidado e perícia, porquanto a obtenção do resultado é dever do mesmo, sem o que poderá estar caracterizado o dever de reparação do dano causado ao tomador do serviço.

Com efeito, tratando-se também de uma relação de ordem contratual, na seara das obrigações de resultado (caso da cirurgia estética/cosmética) o profissional, ao deixar de cumprir o contrato, não atingindo o resultado almejado, fica obrigado a responder por este ou, se for o caso, a reparar o dano que causou ao tomador do serviço.

Nesse passo, quando a relação contratual encerra uma obrigação de resultado, é dever do profissional lograr o atingimento do intento para o qual foi contratado, sob pena de responder na órbita civil pelos danos ocasionados ao seu cliente.

Em suma, nas prestações de serviços praticadas por profissionais liberais há duas espécies de obrigações: as que são de meio, em sua maciça maioria, e as que são de resultado.

Dependendo de onde se insere a obrigação, adotar-se-ão regimes jurídicos diversos, no que respeita à atribuição de responsabilidade aos profissionais.


III - ENQUADRAMENTO DAS ATIVIDADES PRESTADAS PELOS PROFISSIONAIS LIBERAIS NO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR

Tal como já argumentado, os serviços prestados pelos profissionais liberais inserem-se na regulamentação do diploma consumerista, encerrando, portanto, típica relação de consumo.

O profissional liberal é, assim, verdadeiro fornecedor de serviços, estando caracterizado pelo profundo conhecimento técnico e especialização quanto à sua atividade. Desse modo, não se há de encontrar maiores dificuldades para se inserir o referido profissional na definição de fornecedor que nos dá o artigo 3º do Código do Consumidor.

Em contrapartida, o tomador dos serviços, o chamado cliente, se subsume no preceito insculpido no artigo 2º daquele mesmo Codex.

Por isso, não há dúvida de que a espécie da atividade do profissional liberal se insere no gênero prestação de serviços, que hoje encontra azo no Código de Defesa do Consumidor. Até porque, conforme argumentado, caso não se tratasse de uma típica relação de consumo, por certo que não teria o referido diploma reservado especial dispositivo aos profissionais liberais (artigo 14, parágrafo 4º), sobretudo se formos pensar que no campo da responsabilidade civil, pelo menos quanto ao profissional liberal, nenhuma inovação adveio com o diploma consumerista.

Seguindo esse raciocínio, não fosse a intenção do legislador daquele Código inserir em seu contexto as atividades prestadas pelos profissionais liberais, e certamente não teria ele feito qualquer menção a tais prestadores de serviços.


IV - NATUREZA DOS SERVIÇOS PRESTADOS PELO PROFISSIONAL LIBERAL E RESPONSABILIDADE

No caso dos profissionais liberais, assume especial relevo a verificação do pressuposto culpa na apuração de responsabilidade pelos danos por eles provocados aos seus clientes.

A idéia de responsabilidade é bastante antiga e, conjuntamente com a de reparação, se confunde com a própria idéia de direito, conforme a história tem nos mostrado.

Os princípios de não lesar a ninguém e de recompor o equilíbrio, através da reparação do dano causado ao ofendido, jamais ficaram ausentes do direito ao longo dos tempos.

De uma visão objetiva da responsabilidade civil, reinante nos primórdios da civilização, passou-se a uma ótica essencialmente subjetivista, de sorte a se exigir a presença da culpa ou do dolo quando se tratava de imputar responsabilidade a outrem.

No campo da responsabilidade civil, o artigo 159 do Código Civil hoje revogado ganhou especial destaque, e nele se encontrava a pedra de toque para a imputação de responsabilidade na maior parte das relações jurídicas vivenciadas pelo nosso direito, dentre as quais a do profissional liberal e seu cliente.

Porém, o advento do Código do Consumidor, sem embargo de não ter alterado o fundamento da responsabilidade daquele profissional, ainda calcado na presença da culpa, passou a ser o diploma regente da relação por ele mantida com o tomador dos serviços, nitidamente uma relação de consumo.

O Código do Consumidor, diversamente do regime do Código Civil hoje revogado, instituiu a responsabilidade objetiva do fornecedor de produtos e serviços nas chamadas relações de consumo, deixando de fora os profissionais liberais. Tem-se, pois, que para estes últimos, sem a prova da culpa, não há dever de reparação.

Já se disse que o fundamento da manutenção dos profissionais no campo da responsabilidade decorrente da culpa (culpa em sentido estrito ou dolo) reside no fato de exercerem eles, via de regra, obrigações de meio e não de resultado, cujas diferenciações já foram feitas alhures.

No entanto, mais um fator merece ser mencionado, o qual veio contribuir para a prevalência da responsabilidade subjetiva dos referidos profissionais. A verdade é que os profissionais liberais prestam serviços personalizados, os quais, na lição de Fábio Ulhoa Coelho , normalmente "não possuem qualquer elemento empresarial que justifique se cogitar de exploração de atividade econômica organizada de tal forma que possibilite a distribuição de perdas entre os seus clientes diretos".

Para o referido autor , a natureza dos serviços prestados pelo profissional liberal é intuitu personae, o que implica na indispensável confiança do consumidor na pessoa do prestador de tais serviços, fator este que, inclusive, motiva a escolha do profissional e a celebração do contrato com o mesmo.

Com efeito, sem a presença da pessoalidade na relação prestador / tomador dos serviços, não há, no escólio do festejado jurista, como prevalecer o caráter subjetivo da responsabilidade civil do profissional liberal. Assim, na consecução de serviços típicos do profissional liberal, porém, sob atividade empresarial, onde impera a estrita impessoalidade e a inexistência do elemento confiança do tomador para com o prestador, a apuração da responsabilidade pelos danos causados no desempenho da atividade do profissional se dá prescindindo-se do elemento culpa.

De outra parte, na hipótese de estar presente a confiança do cliente para com o profissional, não há como se abstrair a culpa na atividade de apuração e imputação de responsabilidade, ainda que o serviço seja prestado por pessoa jurídica, v.g. as sociedades de advogados, de médicos, dentistas, etc.

Portanto, ao que se infere, para efeito de se perquirir o fundamento da responsabilidade civil do profissional liberal, a doutrina nos fornece mais de um caminho a ser percorrido. O primeiro, verificar se se trata de obrigação de meio ou de resultado, demandando, na primeira hipótese, a presença da culpa, nos termos do artigo 14, parágrafo 4º, do Código do Consumidor, e, na segunda hipótese, prescindindo daquele elemento, pois que assim estar-se-á configurada a responsabilidade objetiva, pela qual o profissional deverá responder pelo dano decorrente do fato de não ter atingido a finalidade específica para a qual foi contratado. O segundo caminho a ser explorado reside na apuração da existência ou não do caráter de pessoalidade e confiança entre o tomador e o prestador dos serviços. Presentes tais requisitos, tem-se por inequívoca a aplicação do artigo 14, parágrafo 4º, do Código de Defesa do Consumidor, jamais podendo ser responsabilizado o profissional, sem que tenha ele laborado com culpa ou dolo. Inexistentes aqueles pressupostos, mormente considerando que neste caso o desempenho da atividade se dará sob o enfoque empresarial, mister instituir-se regime jurídico diverso, eis que assim o profissional responderá objetivamente, portanto independentemente de culpa.


V - INSUFICIÊNCIA DA TEORIA DA CULPA NA APURAÇÃO DA RESPONSABILIDADE CIVIL DOS PROFISSIONAIS LIBERAIS

Segundo Oscar Ivan Prux , em brilhante artigo, denominado "Um Novo Enfoque Quanto à Responsabilidade Civil do Profissional Liberal", a teoria da culpa não pode ser aplicada em todos os casos de responsabilidade civil de ordem pessoal dos profissionais liberais. Segundo o autor, "nas obrigações de resultado ela se mostra inadequada, e nas agressões aos direitos dos consumidores que são perpetradas através de condutas e práticas de mercado (na oferta, na propaganda enganosa, na cobrança de dívidas, no uso de práticas e cláusulas abusivas, etc.) ela se revela, além de inadequada, quase impertinente".

Assim, caso o profissional liberal veicule propaganda enganosa, v.g. o advogado que se auto-promove sob o falso argumento de jamais ter perdido uma causa, não poderá se eximir da obrigação de reparar os danos praticados, sob o escudo da responsabilidade subjetiva.


VI - ÔNUS DA PROVA

Tendo o Código de Defesa do Consumidor preconizado o caráter objetivo da responsabilidade civil do fornecedor de produtos e serviços, com exceção dos profissionais liberais, houve manifesta inovação no que respeita à distribuição do ônus da prova em processos que tenham por objeto uma relação de consumo.

A regra é a atribuição do ônus da prova a quem alega. Assim, quanto à comprovação dos fatos constitutivos de seu direito, ao autor incumbe aquele ônus, nos termos do artigo 333, I, do Código de Processo Civil.

Porém, esse dogma não é absoluto, e há muito vinha encontrando algumas exceções, como nos casos das leis sobre Acidentes do Trabalho, de Acidentes Ferroviários, Nucleares, etc., inclusive no antigo Código Civil, em seus artigos 1.528, 1.529 e 1.546 – nos dois primeiros casos as regras foram repetidas pelo novo Código, com pequenas alterações -, de modo que nessas hipóteses o réu é quem tinha o ônus de desconstituir as alegações do autor.

No caso do Código do Consumidor não foi diferente, e a par da instituição da responsabilidade objetiva, hipótese em que o fornecedor deverá responder pelos prejuízos acarretados ao consumidor, independentemente de culpa, o aludido diploma, em seu artigo 6º, VIII, previu a possibilidade de se inverter o ônus probandi, carreando-o inteiramente ao fornecedor no âmbito de um litígio.

Estatui o aludido dispositivo que, dentre outros, constituem-se em direitos do consumidor, "a facilitação da defesa de seus direitos, inclusive com a inversão do ônus da prova, a seu favor, no processo civil, quando, a critério do juiz, for verossímil a alegação ou quando for ele hipossuficiente, segundo as regras ordinárias de experiência".

Referida norma encontra seu fundamento na ampla defesa e no contraditório, princípios tais que foram erigidos em garantias constitucionais, nos termos do artigo 5º, LV, da Carta Maior.
Ainda sem se arredar dos preceitos constitucionais, urge verificar que a preconizada inversão do ônus da prova também encontra assento no artigo 170, V, da referida Carta. Afinal, o escopo de se facilitar a defesa do consumidor somente é alcançado através da aplicação de medidas desse jaez.

Na verdade, todo esse aparato, colocado à disposição do consumidor, visa a obtenção do necessário equilíbrio nas relações de consumo, em especial dentro de um processo judicial. Porém, ao se utilizar o consumidor das regras ordinárias da processualística, fica, senão impossível, mas bastante difícil a obtenção desse tão buscado equilíbrio. Não é preciso muito esforço para se vislumbrar o grau de dificuldade que encontrará o cidadão comum do povo, o consumidor mediano, quando se vê ele diante de um conflito com uma empresa multinacional, dotada não somente de um poderio econômico infinitamente superior ao de seu contendor, mas também brilhantemente assistida por uma equipe de advogados altamente especializada, afora inúmeras outras vantagens que o caráter de sumariedade deste trabalho não nos permite aqui arrolar.

Por isso, cabe ao fornecedor, a parte mais forte da relação, principalmente porque detém as informações e demais especificações técnicas sobre o produto ou serviço, o fiel cumprimento do dever de informar, de se utilizar dos meios de publicidade, através de linguagem clara e acessível, de expor as qualidades de seu produto ou serviço, enfim, de dotar aquele vínculo mantido com o consumidor da mais absoluta transparência. Em virtude disso, muitas vezes o fornecedor é quem se encarregará de, diante de eventual litígio, produzir toda a prova suficiente para elidir a pretensão do consumidor.

Portanto, a inversão do ônus da prova serve justamente para minimizar as gritantes diferenças existentes entre as partes (fornecedor/consumidor), buscando o grau máximo de equilíbrio nessa relação.

Tratando acerca da matéria ora enfocada, Nelson Nery Júnior argumenta que a previsão de inversão do ônus da prova é "aplicação do princípio constitucional da isonomia, pois o consumidor, como parte reconhecidamente mais fraca e vulnerável na relação de consumo (CDC 4º I), tem de ser tratado de forma diferente, a fim de que seja alcançada a igualdade real entre os partícipes da relação de consumo".

Também o artigo 38 do Código do Consumidor trata da matéria ora abordada, preceituando que "o ônus da prova da veracidade e correção da informação ou comunicação publicitária cabe a quem as patrocina". Como numa relação de consumo a comunicação publicitária ou informação é de titularidade do fornecedor, que é quem tem interesse na divulgação de seu produto ou serviço, sem dúvida que é ele o destinatário específico da supra mencionada norma.

No entanto, a regra da inversão do ônus da prova não é absoluta, eis que o artigo 6º, VIII, exige, para tanto, a verossimilhança das alegações do consumidor, ou que seja ele hipossuficiente.

Aliás, cumpre esclarecer que parte da doutrina assegura que o fato de ter o legislador inserido no dispositivo a partícula "ou" não significa que se dará a referida inversão quando verificadas uma ou outra das hipóteses. Antes, é mister que na relação aqueles dois requisitos se mostrem presentes de modo simultâneo.

Enquanto isso, Nelson Nery Júnior afirma que tais hipóteses são alternativas, como, segundo ele, indica claramente a conjunção "ou". De qualquer modo, os fatos narrados pelo consumidor deverão ser verossímeis, isto é, deverão estar imbuídos de um juízo de probabilidade, não se admitindo meras conjecturas ou suposições, marcadas pela absoluta incerteza. Por outro lado, quanto à hipossuficiência do artigo 6º, VIII, ensina o aludido autor tratar-se não só da dificuldade econômica, mas também da dificuldade técnica do consumidor em poder desincumbir-se do ônus de provar os fatos constitutivos de seu direito. Assim, a deficiente assistência por advogado, quando não seja possível ao consumidor aprimorá-la, configura hipossuficiência.

Ainda no escólio daquele jurista , a inversão do ônus da prova opera-se ope judicis, ou seja, por obra da autoridade judiciária, e não ope legis, tal como ocorre na distribuição do ônus da prova contida no artigo 333 do Código de Processo Civil. Conclusão disso, é que a inversão do ônus probandi encerra uma regra de juízo, cabendo ao julgador verificar se estão ou não presentes os requisitos legais para que se leve a efeito tal inversão. Assim, somente não se dará tal inversão na hipótese de não existir quaisquer daqueles pressupostos. Caso contrário, ainda que presente apenas um deles, é dever do juiz carrear o ônus da prova inteiramente ao fornecedor. A expressão "a critério do juiz", inserta no artigo 6º, VIII, não significa poder discricionário para inverter ou não o ônus. Significa, segundo Wilson Carlos Rodycz , "que o juiz utilizará seus critérios para aferir a presença daqueles requisitos". Por isso, presentes tais pressupostos, a inversão será deferida. Caso contrário, o juiz não a deferirá.

Invertido o ônus, o fornecedor, no caso o de serviços, que é o objeto desse trabalho, somente não será responsabilizado quando provar: a) que, tendo prestado o serviço, o defeito inexiste; b) a culpa exclusiva do consumidor ou terceiro. É isso que determina o artigo 14, parágrafo 3º, do Código de Defesa do Consumidor.

Sobre tais excludentes de responsabilidade, ensina-nos Maria Antonieta Zanardo Donato que são elas numerus clausus, não se admitindo, assim, o elastecimento do elenco taxativo inserto na lei consumerista.

No caso do profissional liberal, é verdade que o Código do Consumidor manteve-o no campo da responsabilidade subjetiva, cumprindo ao tomador do serviço a demonstração de que o mesmo não empregou a diligência e a prudência a que se encontrava adstrito. Afinal, via de regra, presta ele uma obrigação de meio e não de resultado. Aliás, quando se está diante de uma obrigação de resultado, ensina-nos Oscar Ivan Prux que, "a imposição de que o devedor (no caso o fornecedor) obtenha para o credor (que é o consumidor de seus serviços) um resultado perfeitamente determinado, conduz a que se aplique o princípio da inversão do ônus da prova com conseqüências para os envolvidos (consumidores e fornecedores)". Depreende-se, por isso, a possibilidade de se inverter aquele ônus (da prova), ainda quando o prestador do serviço seja um profissional liberal, o que ocorre quando se encontra ele jungido a uma obrigação de resultado, v.g. a do cirurgião plástico (cirurgia estética), a do médico radiologista, a do engenheiro, quando está a confeccionar o projeto (planta) para a construção de um prédio, etc.

Com efeito, quando se está diante da inversão do ônus da prova, a discussão sobre o cumprimento ou não da obrigação dirige-se ao fato de o resultado contratado ter ou não sido obtido, o que auxilia na obtenção do equilíbrio da relação, facilitando a posição do tomador do serviço. Assim, nas obrigações de resultado, é dever do prestador demonstrar que o serviço foi realizado a contento, e que foi obtido o resultado previamente combinado entre as partes. Trata-se de aplicar a regra do artigo 14, parágrafo 3º, do Código do Consumidor.

Isso, porém, não significa que nas obrigações de meio não possa haver a inversão do ônus da prova, de forma a carreá-lo exclusivamente ao prestador do serviço. Sem se desgarrar da posição adotada pelo Código, contemplando a teoria subjetivista da responsabilidade do profissional liberal, em situações especiais, no escólio de Oscar Ivan Prux , ao prestador do serviço incumbe aquele ônus, como acontece quando veicula ele uma propaganda enganosa, quando exerce abusivamente medidas de cobrança contra seus clientes, quando insere nos contratos celebrados cláusulas consideradas abusivas, etc. Aliás, nesses casos, assim como no caso de produtos ou serviços viciados, o referido autor prega a responsabilização do profissional liberal pelo critério subjetivo, porém, com presunção de culpa, critério pelo qual, segundo ele, se obtêm resultados práticos idênticos ao da responsabilidade objetiva.

A dificuldade de provar a culpa do profissional liberal fica, assim, minimizada, diante da possibilidade de se aplicar a regra do artigo 6º, VIII, do Código de Defesa do Consumidor, invertendo o ônus da prova, quando se está diante de situações tais quais as elencadas no parágrafo anterior, e sem se olvidar da necessidade de estarem presentes a verossimilhança das alegações do consumidor ou a sua patente hipossuficiência técnica, cultural e econômica.


VII - BIBLIOGRAFIA

BITTAR, Carlos Alberto (Coord.) Responsabilidade Civil Médica, Odontológica e Hospitalar, São Paulo: Saraiva, 1991

COELHO, Fábio Ulhoa O Empresário e os Direitos do Consumidor, São Paulo: Saraiva, 1994

DINIZ, Maria Helena Curso de Direito Civil Brasileiro, Responsabilidade Civil, 12 edição, São Paulo: Saraiva, 1998. Vol. 7

DONATO, Maria Antonieta Zanardo Proteção ao Consumidor, Conceito e Extensão, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1994

GONÇALVES, Carlos Roberto Responsabilidade Civil, 6. edição, São Paulo: Saraiva, 1995

KFOURI NETO, Miguel Responsabilidade Civil do Médico, 3. edição, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998

LUCCA, Newton de Direito do Consumidor - Aspectos Práticos - Perguntas e Respostas, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995

NERY JÚNIOR, Nelson / Rosa Maria Andrade Nery Código de Processo Civil Comentado, 2. Edição, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1996

PRUX, Oscar Ivan Revista de Direito do Consumidor, São Paulo: Revista dos Tribunais, Julho/Setembro 1996. Vol. 19

RODYCZ, Wilson Carlos A Inversão do Ônus da Prova no Juizado Especial, site www.direitobancario.com.br

SILVA, De Plácido e Vocabulário Jurídico, 2. Edição, Rio de Janeiro: Forense, 1990. Vol. III

Sobre o Autor

Antonio Kehdi Neto: Advogado em Ribeirão Preto/SP e Procurador Jurídico da Caixa Econômica Federal. Graduado em Direito pela Universidade Estadual Paulista – UNESP, onde é mestrando em Direito das Obrigações. Especialista em Direito Processual Civil pela Universidade de Ribeirão Preto –UNAERP.

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