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A Doce Ludmila
por Airo Zamoner
*
publicado em 10/09/2003.
O rosto navegou esforços perdidos à cata da atenção lógica de seus amados. Na multidão minúscula dos íntimos a saracotearem por perto, deveria ter alguém que o enxergasse de verdade. Insistia na procura da criatura que pudesse compreender a juventude, a sorrir incomodada dentro da carcaça esclerosada.
Finalmente, ela o encara cheia de comunicação. Ele devolve ares inteligentes de súplica, enquanto os olhos claros se enchem de alegria infantil. A pequena Ludmila sorri. Sorri para ele. Sim! Ele confirma novamente. É para ele! Só para ele. É ela.
É ela a perceber tamanha adversidade.
Num esforço arrebatado, lançou esgares e foi correspondido. Pensou em lançar no espaço a voz de outrora, forte e cristalina. Ouviu apenas um murmúrio fosco, fraco, desmaiando a poucos centímetros dos lábios ressecados. Já não conseguia saber se o que ouvia sair da garganta prisioneira era exatamente o que os outros escutavam. Certamente não era!
Num gesto mecânico, quase bruto, limpam os cantos de sua baba, sem encará-lo, sem interromper a conversa animada com todos. O grande e úmido lenço cobre seus olhos por um pingo de minuto. Tenta escapar do desconforto. As mãos desobedientes tudo querem, nada podem. O pescoço rebelado não gira e quando a paisagem retorna, já não vê Ludmila. Carregada no colo apressado, desaparece pela porta da cozinha. Desesperado, debate-se com violência, sapateia com energia, grita o nome da única a compreendê-lo plenamente, mesmo que num só átomo de tempo. Mas ninguém percebe o gesto, ninguém ouve o berro. Tudo acontece apenas no ludibriado pensamento naufragado. Numa ponta, o cérebro comanda com lucidez cristalina seus desejos. Na outra, o corpo em despedidas, não se importa, não responde.
E agora? Como reencontrar aqueles olhos amados que se cruzam com os dele com tamanha lucidez e compreensão? Olhos amarrados na porta, conjugam a expressão de angústia com a de súplica inútil no rosto abandonado.
Percebem e comandam.
– Ele quer comer. Tragam chá. Comida.
Ele não tira os olhos da cozinha...
E trazem. E entopem-no de chá que ele não vence rejeitar com veemência. Estilhaços de biscoitos pipocam pelo babador adulto. Tenta desvencilhar-se e fixar-se à espera de Ludmila, até que um esperto qualquer percebe e grita para dentro que ele não quer nada, que está jogando tudo fora.
Levam-no ao quarto. Decidem que deve descansar. Não fazem idéia de quanto descansa e que o descanso é sua tortura. Na escuridão e no silêncio dorme inconformado, sem saber por quanto tempo.
Acorda num sobressalto. Olha o relógio ao lado. Pula da cama com a agilidade dos gladiadores. A mulher geme as dores do parto iminente. Duas horas, duas longas horas depois, entra no quarto da maternidade enfeitada e a esposa sorri, mostrando em seus braços, a mais linda criatura do mundo: a doce Ludmila.
Sobre o Autor
Airo Zamoner: Airo Zamoner nasceu em Joaçaba, Santa Catarina, criou-se no Paraná e vive em Curitiba. É atualmente cronista do jornal O ESTADO DO PARANÁ e outros periódicos nacionais. Suas crônicas são densas de conteúdo sócio-político, de crítica instigante e bem humorada. Divide sua atividade literária entre o romance juvenil, o conto e a crônica, tendo conquistado inúmeros prêmios e honrosas citações.< ÚLTIMA PUBLICAÇÃO | TODAS | PRÓXIMA>
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