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Trecho do livro

por Amós Oz *
publicado em 22/05/2005.

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Nasci e cresci num apartamento muito pequeno, ao rés-do-chão, de teto baixo e medindo uns trinta metros quadrados: meus pais dormiam num sofá-cama que, ao ser aberto à noite, ocupava praticamente todo o espaço do quartinho deles. De manhã bem cedo, enfiavam esse sofá bem enfiado dentro dele mesmo, sumiam com a roupa de cama no escuro do caixote que lhe servia de base, viravam, encaixavam, empurravam e comprimiam o colchão, e estendiam uma forração cinza-clara sobre o sofá devidamente fechado e bem prensado. Por fim, espalhavam algumas almofadinhas orientais bordadas, fazendo desaparecer da vista qualquer vestígio do sono noturno. Deste modo, o quarto de dormir servia também de escritório, de biblioteca, de sala de jantar e de sala de visitas.

Em frente a esse quarto e pintado de verde-claro, estava o meu quartinho, onde um armário parrudo ocupava mais da metade do espaço. Um corredor escuro e estreito, baixo e um pouco torto, como um túnel cavado para fugir da prisão, ligava os minúsculos cozinha e banheiro aos dois pequenos quartos. Uma lâmpada fraca, prisioneira de uma gaiola de ferro, espalhava por esse corredor, dia e noite, uma luz mortiça e triste. Havia apenas uma janela no quarto dos meus pais e uma no meu, ambas protegidas por venezianas de metal, ambas tentando desesperadamente vislumbrar através das frestas a paisagem que se estendia a oriente, mas conseguindo apenas avistar um cipreste poeirento e um muro de pedras irregulares. Por uma janelinha gradeada, a cozinha e o banheiro espiavam o pequeno pátio, que se assemelhava ao de uma prisão, com seu piso cimentado, cercado por muros altos. Pátio onde agonizava, por falta de um mísero raio de sol, um pálido gerânio plantado numa lata enferrujada de ervilhas. Sobre o peitoril das nossas janelinhas havia sempre potes de vidro lacrados com pepinos em conserva, ou algum cacto tristonho enterrado numa tigela que, depois de rachada, fora convocada a desempenhar a função de vaso de plantas.

Era um apartamento semi-enterrado: o pavimento térreo do prédio fora escavado na encosta da montanha. E a montanha era o nosso vizinho do outro lado da parede—um vizinho pesado, introvertido e silencioso, uma velha montanha melancólica, com seus hábitos de solteirona inveterada; sonolenta, na sua quietude invernal, nunca arrastava móveis, nunca recebia visitas, jamais emitia algum som, não incomodava, mas pelas paredes que nos separavam alcançava-nos constantemente algo como um leve e persistente relento de bolor, e o frio, a escuridão, o silêncio e a umidade desse vizinho taciturno.

E era assim que ao longo do verão perdurava sempre um pouco de inverno em nossa casa.

As visitas diziam: Como é agradável a casa de vocês nos dias mais escaldantes de sharav. Como é fresquinho e tranqüilo, até frio, mas como é que vocês agüentam isso aqui no inverno? As paredes não ressumam bolor? Não é meio deprimente?

Dois quartinhos, um banheiro mínimo e uma cozinha apertada. Estes, e principalmente o corredor que os ligava, eram muito mal iluminados. Os livros estavam por toda a casa: meu pai lia em dezesseis ou dezessete idiomas diferentes e falava onze (todos eles com sotaque russo). Minha mãe falava seis ou sete idiomas e lia em sete ou oito. Falavam entre si em russo ou polonês quando não queriam que eu entendesse (quase sempre não queriam — quando mamãe disse uma vez na minha presença a palavra "cavalgadura" em hebraico, e não numa das outras línguas, meu pai ficou muito zangado e gritou com ela em russo: "Sto s tavoi?! Videsh maltchik riodom s nami!" [Pare com isso! Você não vê que o menino está escutando?]). Se no mais das vezes liam livros em inglês e alemão por razões de ordem cultural, certamente era em ídiche que sonhavam à noite. Mas a mim só ensinaram hebraico: quem sabe temiam que, se eu ficasse conhecendo muitas línguas, também fosse seduzido pelos encantos da Europa maravilhosa e fatal.

Pela escala de valores dos meus pais, quanto mais ocidental fosse uma coisa, mais alta se encontrava no plano da cultura. Por mais que Tolstoi e Dostoievski fossem caros a sua alma russa, tenho a impressão de que a Alemanha — apesar de Hitler — parecia-lhes mais culta do que a Rússia e a Polônia. A França, mais do que a Alemanha. A Inglaterra situava-se talvez um pouco acima da França. Quanto aos Estados Unidos, não estavam muito seguros: afinal, esse era um país onde as pessoas atiravam nos índios, assaltavam trens pagadores, cavavam à procura de ouro e caçavam mocinhas.

A Europa era para eles a Terra Prometida proibida — o continente encantado dos campanários, das praças calçadas com pedras muito antigas, dos bondes, das pontes e torres de igrejas, das aldeias remotas, das fontes de águas medicinais, das florestas e dos prados cobertos de neve.

As palavras "chalé", "prado" e "pastora de gansos" me fascinaram e comoveram durante toda a infância. Havia nelas a fragrância voluptuosa de um mundo genuíno, sereno, distante do zinco dos telhados empoeirados, dos terrenos baldios com suas carcaças enferrujadas e moitas espinhosas, das encostas áridas da Jerusalém sufocada sob o peso do verão esbranquiçado. Bastava sussurrar para mim mesmo "prado" — e já ouvia os mugidos das vacas com seus sininhos pendurados no pescoço e o murmúrio dos regatos. De olhos fechados, eu contemplava a linda pastora de gansos, que para mim era sexy até as lágrimas, antes mesmo que eu entendesse alguma coisa.

Anos mais tarde, acabei sabendo que, durante o mandato britânico, nos anos 20, 30 e 40, Jerusalém era um pujante pólo cultural, com grandes empresas comerciais, músicos, intelectuais e escritores — Martin Buber, Gerschon Scholem, Shai Agnon e muitos outros eminentes pesquisadores e artistas. Às vezes, ao passarmos pela rua Ben Yehuda ou pela avenida Ben Maimon, meu pai me sussurrava: "Olhe, aquele ali é um erudito de renome mundial". Eu não entendia o que ele queria dizer. Achava que "renome mundial" tinha a ver, de algum modo, com pernas doentes, pois em geral tratava-se de um velhinho que tateava o caminho com uma bengala, tropeçando enquanto andava, e que mesmo em pleno verão envergava um pesado terno de lã.

A Jerusalém que meus pais avistavam do nosso bairro se estendia quase a perder de vista: era Rehávia imersa em verde e em sons de pianos, eram os três ou quatro cafés com seus candelabros dourados na rua Jafa e na Ben Yehuda, eram os salões da acm, no hotel King David, onde intelectuais árabes e judeus se encontravam com ingleses cultos e educadíssimos, e onde bebericavam-borboleteavam lindas senhoras de pescoço esguio, em vestidos de festa, apoiadas nos braços de gentis cavalheiros de bem talhados ternos escuros. Lá se encontravam, em jantares finos, ingleses esclarecidos e judeus cultos e árabes eruditos, lá aconteciam recitais, festas, elegantes tertúlias literárias, chás e requintados eventos artísticos. E quem sabe se essa mesma Jerusalém, dos candelabros e dos chás literários, só existia nos sonhos dos habitantes de Kerem Avraham — bibliotecários, professores, funcionários públicos e gráficos. De qualquer modo, aquela Jerusalém não era a nossa. Nosso bairro, Kerem Avraham, pertencia a Tchekhov.

Anos depois, ao ler Tchekhov (traduzido para o hebraico), me certifiquei de que ele era um dos nossos: Tio Vânia, esse era o nosso vizinho de cima. Foi o dr. Samoilienko quem me apalpou com suas mãos grandes e fortes, quando tive angina ou difteria. Laievski, com sua eterna enxaqueca, era um primo em segundo grau de mamãe, e Trigórin, nós íamos ouvi-lo nas manhãs de sábado no salão do sindicato.

Na verdade, em nosso bairro estávamos rodeados de russos de todo tipo: havia muitos tolstoianos, alguns deles até mesmo iguaizinhos a Tolstoi. Quando deparei com uma fotografia em sépia de Tolstoi na contracapa de um livro, tive certeza de já tê-lo visto muitas vezes passeando pela rua Malachi, ou descendo a rua Ovádia, a cabeça descoberta, a barba branca desalinhada ao vento, esplêndido como o patriarca Abraão, os olhos faiscantes, empunhando uma bengala talhada em um galho de árvore, a camisa, de sarja, de camponês, sobre a calça larga, e à guisa de cinto uma corda grosseira.

Os tolstoianos do bairro (meus pais os chamavam de tolstoitchiks) eram todos vegetarianos irredutíveis, sempre prontos a consertar o mundo, moralistas ferrenhos, dotados de sentimentos profundos de comunhão com a natureza, amantes da raça humana, defensores intransigentes de todo ser vivo, fosse qual fosse, animados de sentimentos pacifistas, nostálgicos da vida simples e pura, da labuta diária. Todos eles almejavam viver a vida natural do campo, o trabalho primordial com a terra, de sol a sol, nas plantações e pomares da mãe natureza. Mas não conseguiam cuidar nem mesmo da mais singela das plantinhas de vaso — quem sabe as regavam tanto que as coitadinhas acabavam por morrer afogadas. Ou se esqueciam de regar. Ou quem sabe era tudo culpa do governo britânico, inimigo, que costumava misturar cloro na nossa água.

Alguns deles eram tolstoianos saídos diretamente de um romance de Dostoievski: atormentados, falantes, reprimidos em seus instintos, consumidos por idéias. Mas todos, tolstoianos e dostoievskianos, todos no bairro Kerem Avraham estavam, no fim das contas, a serviço de Tchekhov.

Entre nós, o mundo era em geral chamado de "o grande mundo", mas também tinha outros epítetos: esclarecido, exterior, livre e hipócrita. Praticamente só o conhecia pela minha coleção de selos — Dantzig, Boêmia e Morávia. Bósnia-Herzegóvina, Ubangi-Shari, Trinidad e Tobago, Quênia, Uganda e Tanganica. Era distante, sedutor, maravilhoso, mas, para nós, muito perigoso e hostil: não gostavam de judeus porque somos espertos, perspicazes e bem-sucedidos, mas também porque somos barulhentos e intrometidos. Não gostavam do que estávamos fazendo na Terra de Israel, porque cobiçavam até mesmo essa mísera nesga de terra, pântanos, pedras e deserto. Lá, no mundo, os muros estavam todos cobertos de frases hostis: "Judeu, vá para a Palestina". Muito bem, viemos para a Palestina, e agora o mundo inteiro grita: "Judeu, saia da Palestina".

Não só "o grande mundo", mas também Eretz-Israel era distante: em algum lugar longínquo, além das montanhas, florescia uma nova raça de judeus heróis, uma raça morena, robusta e prática, nem um pouco parecida com os judeus da Diáspora, nada parecida com os habitantes de Kerem Avraham. Rapazes e moças, pioneiros, corajosos, bronzeados, silenciosos, que haviam conseguido transformar as trevas da noite em aliadas e, igualmente, ultrapassado todas as barreiras no que dizia respeito à relação dos rapazes com as moças e vice-versa. Não sentiam nenhuma vergonha. Aleksander, meu avô, disse uma vez: "Eles acreditam que no futuro isso vai ser tão simples que o rapaz poderá simplesmente ir até a moça e pedir a ela isso e aquilo. E talvez as moças nem esperem que o rapaz lhes peça, elas mesmas irão pedir aos rapazes, como se lhes pedissem um copo d’água". Ao que tio Betzalel, o míope, replicou, sofreando a raiva: "Mas por acaso isso não é puro bolchevismo, que prega a destruição de todo o encanto e de todo o mistério?! A anulação de todo sentimento?! É assim que se transforma toda a nossa vida num copo de água morna?!". Tio Nachmia, do seu canto, saiu-se de repente com dois versos de uma poesia que me soaram como o rugido de um animal desesperado:

Oh, tão longa é a estrada
O atalho recurva e foge
Oh, mame, eu ando e ando
Mas você está tão longe
Mais perto de mim está a Lua!...

Nesse momento, tia Tzipora interveio em russo: "Chega, chega, vocês estão todos loucos? O menino está ouvindo tudo!". E então passaram a falar em russo.

Aqueles pioneiros estavam além do nosso horizonte, na Galiléia, no Sharon, nos vales. Rapazes robustos e cordiais, mas reservados e pensativos, moças saudáveis, espontâneas e disciplinadas, que pareciam saber e compreender tudo, como se já nos conhecessem, com todas as nossas perplexidades, e mesmo assim tratavam-nos com toda a gentileza, seriedade e consideração. Não como criança, mas como homem, embora ainda pequeno.

Aqueles pioneiros e pioneiras me pareciam fortes, sensatos, capazes de guardar segredos, de entoar em volta da fogueira canções de saudade e nostalgia de cortar o coração e também canções engraçadas ou canções de amor atrevidas, que iam muito além do enrubescer da face. Capazes de desencadear um turbilhão ondulante de danças, até se desprenderem de toda matéria e de toda gravidade. Capazes de meditar na solidão e dispostos à vida espartana dos campos e das tendas, prontos para o trabalho pesado, "lifkudá tamid anachnu, tamid" [estamos sempre, sempre atentos ao comando]. "A paz pelos arados, teus filhos te trouxeram; hoje, teus filhos te trazem a paz pelos fuzis!", "Para onde nos enviarem, lá estaremos." Capazes de montar cavalos selvagens e de manobrar tratores de esteiras largas, de falar árabe e de conhecer todas as grutas e ravinas; afeitos ao manejo de pistolas e granadas, mas também à leitura de poesia e de livros de filosofia a fim de meditar e refletir. Com opiniões próprias, todavia discretos ao expressá-las, conversavam entre si em vozes muito contidas, à luz de velas, nas tendas, altas horas da noite, sobre o significado de nossas vidas e sobre a escolha serena que haviam feito entre o amor e o dever, entre o chamado da pátria e a justiça.

Às vezes eu ia com meus amigos até o pátio da Cooperativa Agrícola, a Tnuva, só para vê-los chegar de lugares distantes, de além das montanhas escuras, os caminhões carregados com os frutos do seu trabalho, "cobertos de pó e de armas, com pesadas botinas nos pés". Ficava rondando por ali para sentir o aroma do feno, para me embriagar com o cheiro das distâncias: lá, onde eles vivem, é que tudo acontece de verdade, eu pensava. Lá se constrói um país e se conserta o mundo. Lá desponta uma nova sociedade, uma nova paisagem toma forma e se escreve uma nova história, lá se aram os campos e se plantam vinhedos, lá se escreve uma nova poesia, lá cavaleiros armados patrulham solitários, prontos para responder com fogo ao fogo dos árabes saqueadores, lá se transformam pobres trapos humanos em uma nação altiva e combatente.

Meu sonho secreto era um belo dia ser levado embora com eles, para também me transformar em altivo combatente. Para que a minha vida também se convertesse numa nova canção, uma vida limpa, honesta e pura como um copo de água gelada num dia de sharav.

Para além das montanhas escuras, a Tel Aviv daquele tempo também era um lugar excitante de onde vinham os jornais, notícias sobre os espetáculos de teatro e de ópera, sobre os balés e cabarés, sobre a arte moderna, os partidos, ecos de discussões acaloradas e retalhos de vagos mexericos. Havia grandes desportistas em Tel Aviv. E o mar. O mar de Tel Aviv estava cheio de judeus bronzeados que sabiam nadar. Quem sabia nadar em Jerusalém? Quem já tinha ouvido falar em judeus nadadores? Esses tinham os genes completamente diferentes. Mutação. "No milagre, nascerá da larva a borboleta."

Na verdade havia um encanto especial e secreto na palavra Tel Aviv. Quando diziam Tel Aviv, imediatamente me ocorria a figura de um rapaz robusto, de camisa de trabalho azul, bronzeado e de ombros largos, um poeta-trabalhador-revolucionário forjado no destemor, do tipo que chamavam gente boa, com um quepe negligentemente pousado em ângulo provocativo sobre o cabelo encaracolado, fumando cigarros baratos e sentindo-se em casa em qualquer lugar do mundo: trabalhava pesado o dia todo, assentando pedras nas calçadas ou carregando areia em betoneiras; ao anoitecer tocava violino; mais tarde, noite alta, dançava com as mocinhas ou entoava-lhes canções tristes na praia, ao luar; pela madrugada, retirava do esconderijo secreto um revólver ou uma metralhadora Sten e se esgueirava pela escuridão para defender casas e campos.

Como Tel Aviv era longe! Durante toda a minha infância estive lá não mais que umas cinco ou seis vezes. Íamos passar os feriados festivos com as tias, irmãs de minha mãe. Não era apenas o fato de que a luz de Tel Aviv era ainda mais diferente da luz de Jerusalém do que é hoje, mas até mesmo as leis da gravidade eram completamente diferentes. Em Tel Aviv as pessoas andavam de um jeito muito especial, apenas tocando o chão: flutuavam, saltando, como Neil Armstrong na Lua.

Nós, em Jerusalém, andávamos sempre um pouco como num enterro, ou como quem chega atrasado a um concerto: primeiro, põe-se a pontinha do sapato para sentir o chão, com todo o cuidado. Depois, quando todo o pé já está assentado, não há nenhuma urgência em movê-lo — dois mil anos se passaram antes que pudéssemos pisar em Jerusalém de novo, então não vamos abrir mão desse direito assim sem mais nem menos. Se levantarmos o pé, logo vai aparecer alguém para tomar nosso pedacinho de terra, na maior sem-cerimônia. Por outro lado, se você já levantou o pé do chão, não tenha pressa nenhuma em pôr de volta: ninguém sabe que ninho de víboras pode estar fervilhando ali. Tramam. Conspiram. Durante dois mil anos pagamos muito caro, com sangue, pelas nossa imprudência, vezes sem conta caímos em mãos inimigas por termos pisado sem antes examinar muito bem onde pisávamos. Era assim que se caminhava em Jerusalém, em geral. Mas em Tel Aviv era completamente diferente! Uma cidade de gafanhotos. As pessoas, as casas, as ruas, as praças, o vento do mar, as dunas de areia, as avenidas, até mesmo as nuvens no céu, tudo flutuava.

Uma vez viemos a Tel Aviv para o Seder, e, de manhã cedo, enquanto todos ainda dormiam, vesti-me, saí de casa e fui brincar sozinho numa pracinha com um ou dois bancos, balanço, tanque de areia e três ou quatro arvorezinhas, onde já cantavam os passarinhos. Passados alguns meses, no Rosh Hashaná, a comemoração do ano-novo judaico, viemos de novo para Tel Aviv, e a pracinha não estava mais lá: fora levada, junto com as arvorezinhas, os bancos, o balanço, os passarinhos e o tanque de areia para a outra ponta da rua. Fiquei pasmo: não entendi como é que Ben Gurion e todas as instituições competentes tinham permitido que se fizesse uma coisa daquela. Como é que pode? Onde já se viu de repente pegar uma pracinha e empurrá-la para adiante? E se amanhã alguém resolver empurrar o monte das Oliveiras? A Torre de Davi? Arrastar o Muro das Lamentações?

Sobre Tel Aviv, as pessoas falavam com inveja e paixão, reverência e algum mistério: como se Tel Aviv fosse um projeto secreto e essencial para o povo judeu, um projeto sobre o qual era melhor não sair por aí dando com a língua nos dentes, pois as paredes tinham ouvidos. Adversários e agentes inimigos pululavam por toda parte.

Tel Aviv. Mar. Céu. Azul. Dunas. Andaimes. Quiosques nas alamedas. Uma alva cidade judia, de traçado simples, que floresce por entre dunas e pomares. Não é apenas um lugar para onde você compra uma passagem de ônibus e então chega lá, mas é outro mundo.

Por muitos anos mantivemos um jeito especial de nos comunicar por telefone com a família em Tel Aviv. Uma vez a cada três ou quatro meses, telefonávamos para eles. Apesar de não dispormos de telefone, nem nós, nem eles. A coisa funcionava assim: primeiro enviávamos uma carta para tia Chaia e tio Tzvi dizendo que no dia 19, uma quarta-feira — e às quartas-feiras tio Tzvi encerrava seu expediente na Cooperativa Nacional de Assistência Médica, a Kupat Cholim, às três —, telefonaríamos às cinco, da nossa farmácia para a farmácia deles. A carta era enviada com bastante antecedência, e então esperávamos a resposta. Na resposta, tia Chaia e tio Tzvi nos garantiam que quarta-feira 19 seria perfeito para eles. Estariam nos aguardando na farmácia um pouco antes das cinco, e não devíamos nos preocupar se não conseguíssemos ligar às cinco em ponto, pois não iriam fugir.

Não lembro se vestíamos roupas mais caprichadas para a ida à farmácia por ocasião do telefonema para Tel Aviv, mas não me surpreenderia se fosse assim. Era uma ocasião festiva. Já no domingo, meu pai dizia à minha mãe: Fânia, você está lembrada de que nesta semana vamos telefonar para Tel Aviv? Na segunda-feira, minha mãe dizia: Árie, não volte tarde depois de amanhã, para não haver contratempos. E na terça-feira, ambos me diziam: Amós, vê se não apronta nenhuma gracinha, está ouvindo? Vê se não se resfria nem leva nenhum tombo até amanhã à tarde. Na última noite me diziam: hoje você vai dormir cedo, para amanhã estar forte na hora do telefonema; não queremos que pensem que você anda passando fome.

Assim, a emoção era construída passo a passo. Morávamos na rua Amós, e a farmácia, na rua Tzefânia, distava cinco minutos a pé, mas lá pelas três horas papai já dizia:

"Fânia, não comece mais nada agora. Para não haver atraso."
"Estou pronta, mas você, com os seus livros, vê se não esquece da vida."
"Eu? Esquecer? Pois estou checando o relógio a cada instante. E Amós vai me lembrar."

Vejam vocês: eu tinha apenas cinco ou seis anos de idade, e sobre meus ombros já recaía uma responsabilidade histórica. Relógio eu não tinha, nem sonhava ter; assim, a todo momento corria até a cozinha, checava o velho relógio de parede e anunciava como o locutor do Centro Espacial: faltam vinte e cinco minutos, faltam vinte, quinze, dez minutos e meio — e quando eu dizia dez minutos e meio, levantávamo-nos, trancávamos a casa bem trancada e púnhamo-nos a caminho, tomando a esquerda até o armazém do sr. Auster, à direita na rua Zachária, à esquerda na rua Malachi, à direita na Tzefânia, e logo entrávamos na farmácia e dizíamos:

"Boa tarde, senhor Heinemann, como tem passado? Viemos telefonar."

Claro que ele sabia muito bem que naquela quarta-feira iríamos telefonar para nossos parentes em Tel Aviv, sabia também que Tzvi trabalhava na Kupat Cholim, e que Chaia tinha um cargo alto na Moetzet Hapoalot, o setor feminino da Confederação dos Trabalhadores, e que Igal iria crescer para se tornar um esportista, e que eram amigos íntimos de Golda Meyerson, mais tarde conhecida como Golda Meir, e de Misha Kolodani, conhecido ali como Moshé Kol. Mesmo assim anunciávamos: "Viemos ligar para os nossos parentes em Tel Aviv". E o sr. Heinemann dizia: "Sim, claro, sentem-se, por favor", e nos contava sua costumeira piada do telefone: "Certa vez, no congresso sionista de Zurique, alguém berrava a plenos pulmões de uma sala. Berl Locker perguntou então a Hertzfeld o que estava acontecendo. Hertzfeld respondeu que o companheiro Rubashov estava falando com Ben Gurion em Jerusalém. ‘Falando com Jerusalém?’, estranhou Berl Locker. ‘Então por que ele não telefona?’".

Papai dizia, então: "Vou ligar agora". E mamãe: "Ainda não, Árie, ainda faltam alguns minutos". Ao que ele respondia: "Sim, mas até conseguir uma linha..." (naquele tempo ainda não havia discagem direta). E mamãe: "Mas e se por sorte recebermos logo a linha e eles ainda não estiverem lá?". E papai respondia: "Nesse caso, nós simplesmente ligamos de novo". E mamãe: "Não, eles vão ficar preocupados, vão achar que perderam o contato conosco".

Enquanto discutiam, já eram quase cinco horas. Papai empunhava o fone, de pé e não sentado, e dizia para a telefonista: "Boa tarde, minha senhora. Por favor, Tel Aviv, 648" (ou coisa parecida: vivíamos então no mundo dos três dígitos). Às vezes acontecia de a telefonista dizer: "Queira aguardar mais alguns instantes, senhor. Neste momento, o diretor dos Correios está falando". Ou o sr. Situn, ou o sr. Neshashivi. E nós ficávamos um tanto aflitos. Como vai ser? O que eles vão pensar de nós, lá longe?

Eu chegava quase a enxergar esse único e bravo fio ligando Jerusalém a Tel Aviv e, via Tel Aviv, ao mundo todo; com aquela linha ocupada, e enquanto estivesse ocupada, estaríamos desconectados do mundo. Aquele fio que serpenteava em curvas sinuosas pelo deserto, por terrenos pedregosos, por vales e montanhas, eu o considerava um grande milagre. E tremia: e se à noite os animais selvagens comessem o fio? E se árabes malvados o cortassem? E se entrasse chuva? E se arbustos secos ao redor dele pegassem fogo? Quem poderia saber, um fio fino daquele fazendo curvas e mais curvas, frágil, desprotegido, exposto ao sol e à chuva, como adivinhar o que poderia acontecer. Meu peito transbordava de agradecimento por aqueles que tinham estendido aquele fio. Dedos hábeis e coração audacioso. Não é pouca coisa estender um fio de Jerusalém a Tel Aviv. Por experiência própria, eu sabia como devia ter sido duro para eles: numa ocasião nós esticamos um fio do meu quarto até o quarto de Elias Friedman, ao todo uma distância de duas casas e um quintal. Fio isolado, tipo espaguete, serviço bem-feito; pelo caminho, árvores, vizinhos, depósitos, cerca, escada, mato.

Depois de aguardar mais um pouco, meu pai supunha que o diretor dos Correios, ou o sr. Neshashivi, havia terminado sua ligação, e novamente erguia o fone e dizia à telefonista: "Perdão, minha senhora, creio haver solicitado uma ligação para Tel Aviv, 648". E ela dizia: "Está anotado aqui, senhor. Favor aguardar". Meu pai dizia então: "Estou aguardando, minha senhora, claro que estou aguardando, mas na outra ponta da linha também há pessoas aguardando". Desse modo ele insinuava que éramos pessoas educadas, mas que havia limite para nossa tolerância. Éramos pessoas civilizadas, e não moleques, não um rebanho para o matadouro. Aquela história — de que todo mundo podia maltratar os judeus à vontade e fazer com eles o que lhes desse na telha —, aquela história tinha acabado de uma vez por todas.

De repente o telefone tocava lá na farmácia, e aquele som sempre provocava um alvoroço, dava um arrepio na espinha — era um momento mágico. As conversas geralmente transcorriam assim:

"Alô, Tzvi?"
"Alô, aqui é Tzvi."
"É Árie, de Jerusalém."
"Alô, Árie, é Tzvi que está falando. Como vocês estão?"
"Aqui está tudo bem. Estamos no telefone da farmácia."
"Nós também. E as novidades?"
"Nada de novo, Tzvi. E vocês? O que você conta?"
"Tudo bem. Nada de especial. Vamos indo."
"Se não há novidades, então está ótimo. Aqui também não há novidades. Vai tudo bem. E vocês?"
"Nós também."
"Ótimo. Agora Fânia vai falar com vocês."

Começava tudo de novo: Como estão? E as novidades? Estamos indo. E depois: "Agora, Amós também vai falar algumas palavras".

E toda a conversa era essa. Como vão vocês? Tudo bem. Ótimo. Então em breve voltamos a conversar. É bom ouvir vocês. Mandaremos uma carta para marcar a próxima vez. Vamos conversar. Tudo bem. Conversar mesmo. Até breve. Então, até logo. Tchau. Lembranças. Para vocês também. Tchau.

Mas aqueles telefonemas não tinham graça nenhuma: a vida pendia por um fio, um fio fino. Agora entendo que eles não tinham nenhuma garantia de que voltariam a se falar de novo. Quem sabe se aquela seria a última vez, quem sabe o que poderia acontecer — irromperem novos tumultos, um pogrom, uma chacina, os árabes poderiam resolver matar-nos a todos, a guerra poderia estourar, sobrevir uma grande catástrofe —, pois os tanques de Hitler já se aproximavam, vindos de duas direções, do Norte da África e também do Cáucaso. Quem sabe que nova desgraça nos aguardava? Aquela conversa vazia não era nada vazia — era apenas espartana.

O que aqueles telefonemas me fazem pensar agora é o quanto era difícil para eles — para todos, não só para meus pais — expressar seus sentimentos mais íntimos. Sentimentos coletivos, eles podiam expressar sem nenhuma dificuldade, eram pessoas sensíveis, e sabiam falar. E como sabiam! Eram capazes de discutir por três, quatro horas ininterruptas, exaltadíssimos, sobre Nietzsche, Stalin, Freud, sobre Jabotinsky, empregar toda a sua energia, chegar às lágrimas, lançar mão de todos os argumentos sobre o colonialismo, o anti-semitismo, a justiça, a "questão territorial", a "questão da mulher", a "questão da arte versus a vida". Mas no momento em que tentavam expressar sentimentos pessoais, o que vinha era sempre alguma coisa desajeitada, seca, até mesmo medrosa, fruto de gerações e gerações de repressão e negação. Num duplo sentido: a educação burguesa européia tinha seu caráter repressivo duplicado pelos condicionamentos da aldeia religiosa judia. Quase tudo era "proibido" ou "não se costumava fazer" ou "não se fazia".

Sem contar que naquele tempo havia uma grande carência de palavras: o hebraico ainda não era uma língua suficientemente natural, que permitisse fazer confissões e expressar intimidades. Era difícil saber o que sairia ao se falar em hebraico. Nunca tiveram certeza absoluta de não estar dizendo, de repente, algo ridículo. Pois o ridículo era o que mais temiam, mais do que qualquer outra coisa, dia e noite. Morriam de medo, de pânico. Mesmo pessoas como meus pais, que conheciam muito bem o hebraico, não o dominavam. Falavam hebraico com cautela exagerada, muitas vezes repetindo a frase, voltando a compor o que tinham acabado de dizer: atitude semelhante à de um motorista míope que tateasse o caminho à noite pelo emaranhado de ruelas de uma cidade desconhecida, num carro que não dominasse muito bem.

Um sábado, uma amiga de minha mãe, a professora Lilia Bar-Samcha, veio nos visitar. No decorrer da conversa, toda vez que nossa hóspede dizia que estava assustada ou que alguém se encontrava em uma situação assustadora, eu desatava a rir, e ninguém parecia entender o motivo da minha hilaridade. Na linguagem corrente, a palavra que a professora usou para dizer que estava assustada significava "peidar". Ninguém parecia achar aquilo engraçado, ou pelo menos todos fingiam que não achavam. E a mesma coisa aconteceu quando alguém disse que tia Clara desperdiçava óleo de fritura: desperdiçar era o mesmo que "cagar". E ainda quando meu pai falava sobre a corrida armamentista ou se enfurecia com a decisão dos países-membros da otan de rearmar a Alemanha para deter Stalin. Ele não fazia idéia de que o termo pedante que usava para dizer rearmar significava "foder" em hebraico coloquial.

Do mesmo modo, meu pai ficava visivelmente constrangido toda vez que eu usava a palavra "arrumar", uma palavra tão inocente, nunca pude entender por que lhe dava nos nervos. É claro que ele nunca me explicou, e, para mim, era impossível perguntar-lhe. Anos mais tarde vim a saber que antes do meu nascimento, nos anos 30, arrumar significava "engravidar". "Aquela noite na loja, ele a arrumou, e na manhã seguinte o patife fingiu não conhecê-la." Algumas vezes, com a expressão "arrumar" entendia-se muito simplesmente possuir, ter relações com uma mulher. Assim, se eu dissesse: "A irmã de Uri tinha se arrumado", meu pai costumava franzir os lábios e fechava a cara. Naturalmente nunca me explicou — como poderia?

Nos momentos em que estavam a sós, não conversavam em hebraico, e nos momentos de maior intimidade talvez nem falassem. Calavam. Tudo transcorria à sombra do medo de parecer ridículo.

Sobre o Autor

Amós Oz: Nasceu em Jerusalém, em 1939. Considerado um dos melhores escritores israelenses da atualidade, já foi traduzido para mais de 22 línguas. Atualmente mora em Arad, no deserto de Neguev, dedicando-se à militância em favor da paz entre árabes e israelenses e ao curso de literatura hebraica que leciona na Universidade Ben-Gurion.

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