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Fábula de Lars von Trier foi o melhor filme do ano
por Chico Lopes
*
publicado em 19/11/2004.
Me ocorre dizer que não vi neste ano nenhum filme mais importante, mais pertinente e de impacto que DOGVILLE, a fábula moral do dinamarquês Lars von Trier. Von Trier é, aliás, um dos mais vivos e instigantes cineastas da atualidade, formando, ao lado de David Lynch e de uns outros poucos, a pequena galeria dos autores que mantém independência dentro do "mainstream" e que ainda conseguem cutucar essa coisa que nos anos 60 chamou-se Sistema, sacudindo o conformismo doentio e generalizado do público e da indústria. Talvez aja, em alguns casos, como um provocador em que não falta boas doses de charlatanismo e procura de auto-promoção, mas sabe em geral o que está fazendo e na sua crueza é também capaz de muito refinamento.
É difícil dizer o quanto DOGVILLE me satisfez. Tenho ido pouco ao cinema e me tornei um consumidor caseiro de DVDs - os clássicos, de preferência, porque não agüento a porcaria da maior parte das novidades que há por aí (e nas locadoras há provas arrematadas de ignorância: outro dia um sujeito, que não sabia que sou crítico de cinema, me aconselhou, junto a uma prateleira, a não pegar o "Uma rua chamada pecado", de Elia Kazan, porque o filme era em preto e branco - o que significava, para ele, que era uma porcaria. Que espécie de gente é essa que discrimina obras-primas só por não serem a cores? É alarmante!)
DOGVILLE faz o que uma obra de arte decente deve fazer: ruma contra os clichês, rompe com as expectativas viciadas e comodistas do público. Conta a história de Grace, uma mulher que está sendo misteriosamente perseguida por gângsteres e que se instala numa cidadezinha americana, essa "Vila do Cão" que tanto se parece com a idealização mentirosa das cidadezinhas norte-americanas no cinema: gente comunitária, unida, puritana, que procura ajudar seu vizinho etc. É uma paródia da velha "Our town", de Thornton Wilder. Contemporaneamente, temos pouquíssima paciência com a idealização da vida comunitária norte-americana, porque já aprendemos a distinguir o que há por debaixo disso. A eterna hipocrisia e a pequenez humana tornam as cidades pequenas bem o contrário do que querem parecer- ninhos de preconceito, intolerância e mesquinhez ao invés de lugares idílicos onde os medianos podem gozar suas idéias bovinas e "bem intencionadas" em paz.
O filme é deliberadamente teatral, quase uma provocação - as marcas estão lá, na ausência de cenário, no chão de madeira, poucos objetos de cena, linhas pintadas, indicativas, e tudo reduzido a um esquematismo de quadro-negro onde, com um giz, se determina nomes, residências, funções. Nicole Kidman, boa e bela atriz e mulher corajosa (quanto ela é melhor que seu ex-marido, o chatíssimo Tom Cruise!), faz essa Grace com perícia e encanto. E, no elenco, veteranos como Lauren Bacall e Bem Gazzara, despojados, reluzem.
O filme pode parecer um padecimento para os que não gostam de "cinema lento, europeu", para o público que declarou guerra ao cinema intelectualizado. Mas é sim Cinema no que a melhor a arte tem - a coragem criativa, as interpretações de primeira e uma tese arriscada, em que Von Trier coloca a cara para bater. O final é uma maravilha, inesperado, chocante, uma vingança da inteligência contra a estupidez, um suspiro de alívio...Que bom que haja ainda diretores assim, capazes de mandar as convenções para o inferno e nos deixarem inteiramente felizes! Claro que esse final tem componentes fascistas, meio à la Nietzche, mas possui uma lógica que perturba e faz pensar. Principalmente isso: faz pensar. Coisa importante, que a imbecilidade do cinema de massa vem deixando de lado.
É uma vingança contra a estupidez da América de Bush, contra a estupidez de todas as aldeias do mundo, onde as pessoas tentam ser verdadeiras e acabam sendo sacrificadas no altar do preconceito e da picuinha. Uma vingança contra os Jecas "bonzinhos", moralistas, edificantes, cruéis e aproveitadores...Caso do intelectual do filme, o desprezível Thomas Edison Jr. (aliás, as sátiras de Von Trier aos americanos são implacáveis a partir dos nomes). Não é à toa que Grace leva este nome. Há também outras gozações que o cinéfilo reconhecerá - Elm Street, a rua principal, é a rua do título original de "A hora do pesadelo", de Wes Craven, e há lá um garoto completamente sádico e sacana que se chama Jason (no futuro, sairá decapitando adolescentes naquela série imbecil de terror que os adolescentes americanos consagraram - infelizmente, com ecos nos adolescentes do mundo todo).
Von Trier e seu cinema corajoso (lembrar o pouco valorizado e sublime "Dançando no escuro", em que pôs a cantora Bjork para tentar ser atriz) são luzes neste túnel repelente e reacionário que atravessamos.
Legenda: Nicole Kidman: a "Graça" atirada aos porcos em "Dogville"
Sobre o Autor
Chico Lopes: Chico Lopes é autor de dois livros de contos, "Nó de sombras" (2000) e "Dobras da noite" (2004) publicados pelo IMS/SP. Participou de antologias como "Cenas da favela" (Geração Editorial/Ediouro, 2007) e teve contos publicados em revistas como a "Cult" e "Pesquisa". Também é tradutor de sucessos como "Maligna" (Gregory Maguire) e "Morto até o anoitecer" (Charlaine Harris) e possui vários livros inéditos de contos, novelas, poesia e ensaios.Mais Chico Lopes, clique aqui
Francisco Carlos Lopes
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