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Sala trinta e quatro

por Airo Zamoner *
publicado em 07/09/2004.

Saiu do elevador com o jornal dobrado, amassado nas mãos. Caminhou pelo corredor abafado, penumbroso. Cheiros velhos, impregnados nas dimensões estreitas, apelavam para que voltasse correndo, mesmo que fosse escada abaixo. Resistiu.

Precisava encontrar o número trinta e quatro. O corredor parecia infinito. O som dos passos não se propagava, amortecido pelas sombras, pelo silêncio anterior. Olhava para trás de minuto a minuto, vigiando a retaguarda vulnerável. A escuridão ia fechando a passagem de volta. Visibilidade restrita a três ou quatro metros à frente, três ou quatro metros atrás.

A porta velha, lascada, com o número trinta e quatro escrito com giz amarelo, apagado, surgiu diante de seus olhos medrosos.

Apertou, discreto, a campainha. Aperto curtíssimo. Expectativa enrustida de que ninguém atendesse e pudesse justificar o retorno intempestivo que sabia impossível.

Um olho mágico enferrujado, oco, parecia analisá-lo em raio-x. Resistiu mais uma vez. Conferiu o jornal. Estava no lugar certo. Edifício Asa, vigésimo andar, trinta e quatro.

O umbigo deu alarme, esfriando a barriga. Estava preso para sempre, sem corredor para a fuga. O calafrio escorreu sorrateiro lá para baixo de seu corpo franzino.

Ouviu passos longínquos. Rangido de porta. Vontade de fugir. Necessidade de ficar. O olho mágico vigilante, frio. Ninguém atendendo.

Olhou para o botão da campainha. Vontade de apertar novamente. Vontade de correr, mergulhando naquela escuridão do corredor sem se importar com mais nada. Do outro lado, a certeza da escada, do elevador. Era só correr. Descer aos pulos até a galeria lá de baixo, cheia de gente. Cheia de luzes. Cheia de barulho bom. Chegar lá e ouvir o alarido da praça. Os meninos jogando bola. O Sol agulhando a pele. O jornal que achou no lixo, era só devolver ao lixo. Entraria no jogo e passaria mais um dia igual aos outros.

Voltaria para casa à noite. O mais tarde possível. Daria uma nova desculpa, justificando porque não conseguiu dinheiro algum. Enxergaria a mãe enfiada naquela cama escura, no canto da casa cinzenta como este corredor.

Sua casa, porém. Casa com cheiros velhos, impregnados nas dimensões estreitas. Silêncio da noite quebrado pelos gemidos da mãe. Gemidos da doença ou das pancadas que o pai vai dar nela quando chegar de madrugada, pedindo o dinheiro do trabalho. Trabalho que ele não fez e que está atrás deste trinta e quatro, que tem esse olho mágico espiando. Examinando. Esperando uma eternidade para atender.

A janela estreita no final do corredor derrama no chão um jato de sombra clara, vinda do túnel cinzento que separa os prédios. A esperança aguça as idéias. Nasce a alternativa ao corredor sem volta. Ao olho mágico aterrador. Aos gemidos da mãe.

Correu até a janela. Espiou lá para baixo e pensou no edifício Asa e nas asas que não tinha. Sentiu cócegas nas costas. Ouviu o barulho da chave, virando lá no trinta e quatro. O comichão aumentou e sentiu as asas nascerem céleres. Num esforço de raiva e desespero, empurrado pelo ruído rangente da porta, ergueu-se no parapeito. A gastura pára de soco.

Atirou-se batendo as asas e esvoaçou felicidade pela galeria iluminada.

Sobre o Autor

Airo Zamoner: Airo Zamoner nasceu em Joaçaba, Santa Catarina, criou-se no Paraná e vive em Curitiba. É atualmente cronista do jornal O ESTADO DO PARANÁ e outros periódicos nacionais. Suas crônicas são densas de conteúdo sócio-político, de crítica instigante e bem humorada. Divide sua atividade literária entre o romance juvenil, o conto e a crônica, tendo conquistado inúmeros prêmios e honrosas citações.

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