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Resistência aos Governos Injustos

por Henrique Chagas *
publicado em 21/08/2004.

I - Introdução

O desafio que se nos apresenta consiste em uma leitura crítica do texto "A Democracia e o Brasil" de lavra do grande e admirável Professor Gofredo da Silva Telles Júnior (01). Por uma leitura crítica de um texto, entendemos que é uma forma de reinventá-lo, de recriá-lo. O que implica em penetrar na intimidade do tema, no sentido de desvelá-lo mais e mais. O que pretendemos neste trabalho não é simplesmente descrever ou explicar o texto que temos como referencial, pois isto Gofredo Telles Júnior já o fez de maneira digna, mas sim assumir perante ele (o texto) uma atitude comprometida, no sentido de que quanto mais pudermos desvelar o texto confrontando-o com a realidade, a desvelamos também.

A este processo que é uma atitude crítica dos homens historicamente comprometidos, o advogado pernambucano Paulo Freire conceituou como sendo o processo de conscientização. Este processo de conscientização nos convida a assumir uma posição utópica frente ao mundo. O utópico não é o irrealizável. É a dialetização dos atos de denunciar e anunciar (02). A atitude utópica que assumimos neste trabalho de maneira nenhuma se compara com as grandes utopias já mostradas na história: a "República", de Platão; a "Cidade de Deus", de Santo Agostinho; a "Utopia", de Tomas Morus, a Cidade de eterna paz de Kant; o Paraíso do Proletariado, de Marx; o Reino de Deus da leitura apocalíptica e da pregação de Jesus Cristo. Porém tais quais apresentadas é uma ânsia de renovação do presente projetada no futuro.

A questão principal de nosso trabalho se refere à legitimidade da resistência violenta aos governos considerados injustos. Estamos concordes com Gofredo quanto afirma que a resistência é ilegal e não encontra fundamento no Direito. Esta não é a questão relevante, tendo em vista que o Direito Positivo não garante fundamentalmente a resistência aos governos injustos, e mesmo que dispusesse de artifícios legais, qual Estado garantiria sua concretização? Em momento oportuno tentaremos argumentar as razões pelas quais o Direito não resguarda a legalidade para a resistência à opressão dos governos.

Todo o trabalho de Gofredo concerne em justificar a legitimidade da resistência, que é indiscutivelmente um fato social, compreendendo-a em consonância com os autênticos interesses da vida humana. Nossa recriação, nossa análise percorre outro caminho, sob outra óptica de compreensão daquela exposta por Gofredo. Iniciaremos nossa argumentação a partir de conceitos fundamentais para a compreensão de nossa posição com relação ao problema, portanto é mister esquematizar de maneira didática toda argumentação para facilitar a sua exposição e compreensão.

II - A relevância da Práxis

a) Direito como sistematização dos interesses sociais.

Gofredo da Silva Telles Júnior expõe, de maneira simples, a formação do grupo social a partir de um processo de integração, que consiste nos princípios de diferenciação e coordenação. Segundo Gofredo, com a evolução da sociedade, mais numerosas, mais variadas e mais caracterizadas foram se tornando as suas partes. Assim a diferenciação das partes acarreta uma interdependência entre elas, e a partir desta a solidariedade social se impõe. O fato de se solidarizarem as partes constitui o movimento de coordenação.

Este argumento inicial de Gofredo muito se assemelha com as teorias de Durkhein, que, na "Divisão do Trabalho Social", encaminha o processo social a partir do conceito de consciência coletiva. O pensamento durkheiniano apresenta como elemento dinâmico do processo social a consciência coletiva, que exprime a combinação da pluralidade de indivíduos no processo de vida social. O mecanismo de coordenação social de Gofredo é para Durkhein o seu princípio da solidariedade mecânica e orgânica. A primeira baseia-se no princípio das semelhanças, isto é, quanto mais à consciência individual se identifica com a consciência coletiva maior será a integração social pelas semelhanças de crenças, sentimentos, etc..

Já a solidariedade orgânica é produzida pela divisão do trabalho, isto é, pelo princípio da diferenciação, que supõe diferenciação de funções dentro do grupo social. Para Durkhein, a sociedade para se preservar harmonicamente cria artifícios legais para assegurar acima de tudo a subordinação individual à consciência coletiva. É um direito repressivo que mantém a coesão social, como pune os desvios de conduta com relação ao não cumprimento das funções específicas dos indivíduos, inclusive suas obrigações profissionais. Portanto o Direito é a garantia e o avalista para que a sociedade exista harmonicamente. Dentro dessa especulação, Max Weber, diz que a sociedade se apresenta como um palco de luta incessante entre os indivíduos orientados por valores distintos e equivalentes cuja coesão ocorre em situações sempre cambiantes de interesses e dominação (03).

Engels nos explica que a sociedade, com o seu desenvolvimento, passou a conhecer antagonismos, onde a luta de interesses e dominação a dividiu em classes distintas. Então a sociedade passa a ser uma luta aberta e incessante de classes entre si e para que não se autodestruíssem, criaram um poder aparentemente autônomo e imparcial, para suprimir os conflitos abertos e só os permitir no campo econômico (04).

Nossa intenção é discutir o papel do indivíduo dentro dessa órbita social que muito foi explicada por sociólogos e pessoas preocupadas com a vida humana. A partir da argumentação de Gofredo, das teorias de Durkhein, do pensamento de Weber e Engels, posso afirmar tranqüilamente que o resultado das formas jurídicas, do arcabouço jurídico, do Direito Positivo, nada mais é do que a compreensão sistematizada do jogo de interesses sociais. Podemos concluir que o Direito é determinado pela práxis social. Isto é, se a sociedade é justa, o Direito é justo, se porém a sociedade não é democrática, havendo classes distintas, o Direito também será antidemocrático e instrumento de dominação.

b) a consciência dialética

Gofredo afirma que o grupo social se forma para realizar certa idéia, que é causa final dessa associação. A idéia se propagará quanto mais for persuasiva, solidarizando os homens que gostariam de vê-la realizada. A influência dessa idéia congregadora parte da consciência de sua necessidade ou de sua conveniência, que gerará obediência aos imperativos que conduzem para aquele bem, em torno de cuja idéia os homens se agruparam.

Não podemos partir de uma concepção de consciência, de maneira abstrata, como se esta já estivesse predisposta simplesmente a escolher determinado bem, ou determinada idéia. Esta é uma concepção do velho idealismo subjetivo de puras raízes kantianas, que não compactuamos por ser um falso pressuposto. Essa idéia a prior, lembra as "idéias inatas" de Descartes. Isso é irreal. O conceito de valores, de bem e de verdade não existe dentro do nosso espírito como elemento a priori, inato, anterior à experiência. Nem fora de nós, como coisa ou entidade social.

Devemos, sim, discutir essa questão a partir do caráter dialético da consciência do sujeito. Ele pensa a si mesmo, é fonte de valor, de verdade, de bem de um lado. Doutro, é pensado, é marcado pelas estruturas objetivas, de modo que sua verdade, seu bem, seus valores são na verdade frutos da síntese do sujeito e do objeto (objeto aqui entendido como tudo aquilo que esta fora do sujeito, inclusive outros sujeitos). Sempre se esbarrará com a rigidez inexorável da realidade. Toda vez que um voluntarismo quis fazer a realidade, os valores, o bem e a verdade serem fruto exclusivo de sua vontade criadora, defrontou-se com a iniludível concretude do já existente, do dado, que marcam profundamente sua consciência. Este ponto de vista choca-se com o exposto por Gofredo, que parte de uma idéia, consoante nas formas e nos conceitos apriorísticos de Kant, abstraída da consciência das pessoas.

A descoberta do aspecto dialético aparece claramente a partir da inversão da dialética de Hegel realizada por Marx, por ocasião de sua ruptura com Feuerbach. É a partir do surgimento do materialismo dialético que percebemos que os valores, a verdade e o bem são profundamente determinados por relações objetivas, porém sociais e humanas. Essas relações são criações do próprio homem, dando-se conta da influência da atividade humana na sua própria consciência. A atenção do homem orienta-se para um homem real, isto é, situado no conjunto das relações sociais. A consciência dialética do homem consiste precisamente em perceber-se dentro de um processo criador, dinâmico, contínuo e incessante (05).

c) o direito como fruto da práxis humana

Todo o nosso arcabouço jurídico estrutura-se em conformidade com uma consciência abstrata, supervalorizando a intencionalidade humana. Sem dúvida nenhuma, nosso Direito é a afirmação coerente e organizada das forças sociais, cuja hegemonia de valores se apóia na dominação econômica, na hegemonia cultural e na capacidade de coerção. A classe dominante está interessada num Direito que garanta sua sobrevivência e que julgue as intenções das pessoas a partir de uma consciência abstrata e idéias predeterminadas, para que os atos transformadores praticados por pessoas conscientes politicamente não ganhem importância no meio social e não legitimem uma práxis social.

É necessário discutir o caráter transformador do Direito e seu objetivo dentro do quadro social, independentemente da intencionalidade das consciências. É mister mostrar como a ideologia dominante tenta precisamente velar essa percepção, fazendo remontar o significado das ações unicamente à subjetividade das pessoas. As ações individuais e coletivas devem ser analisadas e julgadas dentro do contexto do jogo de interesses econômicos e políticos. O sentido da práxis aparece dessa análise objetiva e não da boa ou má vontade das pessoas. Não se deve medir a retidão de um agir pela pureza doutrinal observada, mas sim pela análise do próprio agir no contexto sócio-político e o seu significado aí dentro. Este é um dos princípios básicos para se discutir a legitimidade da resistência à opressão dos governos injustos. Na medida em que se confirmar uma situação de injustiça, de exploração, é óbvio que a estrutura social é injusta e opressora e necessita de uma mudança, que começa pela conscientização política das pessoas. O valor de um agir vem do aspecto crítico que é imprescindível dentro do sistema social e da novidade da justiça que se prenuncia.

Portanto não é um princípio doutrinal em si que determina o valor do agir humano, mas este deve ser julgado e valorado pela inteligência da práxis, que se coloca numa posição de procedência em relação aos princípios doutrinais. E a inteligência da práxis se faz critério de julgamento dos próprios princípios doutrinais. A práxis, porém, é entendida como reflexão e ação dos homens numa relação dialética. É a prática pensada e a reflexão da prática numa relação dialética que determina os valores, o bem e a verdade (06).

III - Comunhão e colaboração.

Acreditamos que o objetivo da sociedade humana não é mais do que proporcionar aos homens sua plena humanização: ser mais livre, seguro e justo. Quando existe opressão, insegurança e injustiça, o próprio sentido ontológico da sociedade está quebrado. Gofredo diz que os homens acham-se associados de maneira a se completarem reciprocamente. Não há uma simples agregação material de homens, mas uma comunidade organizada. Está perfeitamente correto. Digo mais, quando existe uma situação opressora, a comunhão deixa de existir, pela simples razão de que a desordem instaurou-se, mesmo que ideologicamente seja em nome da ordem e em defesa dos interesses gerais da sociedade como foi o nefasto golpe de 1964, no qual os militares brasileiros se colocaram numa posição ilegítima frente à sociedade brasileira.

A comunhão humana provoca a colaboração de todas as pessoas. É justamente neste ponto que se sustenta a supremacia da soberania popular, que trataremos mais adiante. A comunhão humana deve ser entendida como um nó de relações entre os homens. E esse nó de relações, que Karl Jaspers coloca como sendo o fundamento ontológico do ser humano, parte do princípio de que o homem é um ser eminentemente político e também determina a condição política da comunhão entre os homens, no sentido de que a prática da comunhão entre os homens interfere no jogo de forças de interesses da sociedade.

Dentro desse contexto, a ideologia desempenha papel importante. Exprime a racionalização dos interesses das classes sociais. A ideologia serve de mediação da classe social dominante para a formação e controle das consciências. A ideologia faz duplo papel: revelar os interesses de grupos, quando forem convenientes e encobri-los quando forem anti-populares. Usam-se jogos lingüísticos, que, na maioria das vezes, terminam por vedar uma inteligência clara dos reais interesses dos grupos sociais dominantes.

Um dos objetivos da comunhão e participação para garantir a supremacia popular é promover uma contínua conscientização política, levando em consideração o papel da práxis social, que conseqüentemente terminará por desvelar as ideologias dos grupos sociais e sustentará a comunhão e participação. Forma-se um círculo dialético.

IV - Sociedade Política.

A sociedade política apresenta-se como matriz, que empresta validade a todas as outras formas sociais. Consiste justamente em garantir a ordem jurídica necessária para que as entidades que ela encerra melhor se aproximem dos seus respectivos fins. Celso Bastos, no Curso de Direito Constitucional, afirma que sociedade política não tem definição dos seus fins, pois estes são ilimitados e uma das suas características é justamente o poder de revê-los. Outra característica de uma sociedade política é que só podem existir sociedades no seu seio na medida em que esta tolera, reconhece ou permita suas existências. Abarca os indivíduos de maneira compulsória, portanto, como diz o professor, é uma sociedade envolvente (07).

Dalmo Dallari afirma que a finalidade social é fundamentalmente o bem comum, que foi formulado pelo Papa João XXIII na encíclica Pacem in Terris como um conjunto de condições que consintam e favoreçam o desenvolvimento integral da personalidade humana (08).

Gofredo afirma que o poder está na força exercida pela idéia de um bem a realizar, sobre as consciências solidarizadas pelo império dessa mesma idéia, e capaz de impor aos membros do grupo as atitudes que ela determina. O poder está na idéia e não no órgão de poder. Já questionamos anteriormente como Gofredo expõe a agregação das pessoas a partir da idéia originada de sua própria necessidade ou conveniência. Muito bem. Gofredo concebe esta questão como se fosse tão simples organizar o poder; embora nem mesmo pode-se dizer da sua real e essencial necessidade como afirmam os anarquistas (que de uma ou de outra maneira muito contribuíram historicamente para o desenvolvimento da reflexão em relação ao poder).

Foi providencial a concepção de Durkhein apresentada anteriormente quando diz que a sociedade para se preservar harmonicamente cria artifícios para assegurar a supremacia de sua finalidade. Realmente, há essa tendência de interpretar a sociedade política (Estado) como uma instituição estabelecida no interesse da sociedade como um todo, com a finalidade de mediar e reconciliar os antagonismos que a sociedade inevitavelmente dá origem. Esta posição encerra porém uma deficiência básica . Essa teoria da sociedade política como mediadora dos antagonismos, imperfeições, apatias supõe, implicitamente, que a estrutura de classes existentes ou, o que vem a ser a mesma coisa, o sistema de relações de propriedade seja um dado imutável, inexorável; e a essa instituição são concedidos poderes para manter a ordem e resolver os conflitos.

A fraqueza dessa teoria não é difícil de descobrir. Da mesma forma que, quando Rosa Luxemburgo afirma que não se pode instaurar o socialismo por decreto, não se pode outorgá-lo, principalmente porque é um produto histórico (09), podemos dizer que a fraqueza dessa teoria exposta por Gofredo está na suposição de uma estrutura imutável e, por assim dizer, auto-sustentada. É preciso dizer que a estrutura de classes da sociedade não é parte da ordem natural das coisas; é o produto do desenvolvimento social passado e se modificará no curso do desenvolvimento social futuro. O poder está na força exercida pela idéia de um bem a realizar. O poder está justamente nos conceitos de valores da classe social que desfruta vantagens materiais e que ideologicamente os declara como sendo da maioria dos membros da sociedade.

A sociedade política (Estado), que é sempre prestigiada por esta classe social dominante, é dotada de capacidade para usar a força necessária e essencial à manutenção desse conjunto de coisas e disposta a fazer uso da força. Portanto, sociedade política é a avalista de um determinado conjunto de relações de propriedade, visto que, que como já definimos anteriormente, a sociedade política é envolvente, e exerce soberania sobre todos os que estão sob sua jurisdição. Se as classes em desvantagem possuíssem o poder estatal, tentariam usá-lo para estabelecer uma ordem social mais favorável a seus interesses, o que simplesmente desviaria o local de conflito dentro da sociedade política (Estado).

Segundo Engels, o Estado, como sociedade política, é instrumento de domínio de uma classe sobre as outras. É um produto da sociedade; nasceu da necessidade de conter os antagonismos das classes e, ao mesmo tempo, nasceu em meio aos conflitos delas, o que vale dizer, está intimamente ligado com a classe mais poderosa economicamente.

V - A questão da legitimidade

a) o Bem Comum

Quando Celso Bastos caracteriza a sociedade política mutável em seus fins, abre todo um leque de possibilidades para refletirmos a sociedade política sem descaracterizá-la como tal. Ao entendermos, como faz Dallari, que os fins da sociedade correspondem a promover o bem comum, estendemos mais ainda as possibilidades de reflexão. Somos da opinião de que o ponto fulcral da legitimidade de um governo encontra-se relacionado com o bem comum. Expressão esta tão rica em conceituação, que tantas vezes é ideologicamente utilizada de maneira tão vaga e sem sentido.

Foi a partir da Renascença que o homem se emancipou da mãe natureza, tornando como sua a história da humanidade e passando a dar maior importância ao problema do bem comum. Os conceitos de igualdade, liberdade e fraternidade foram bandeiras das idéias que revolucionaram as ciências. E muitas dessas idéias (no sentido de esquemas mentais, visão de mundo) figuram, hoje, na maioria de nossos códigos e legislações. O bem comum, no conceito do Papa João XXIII, quase sempre é desprestigiado pela simples razão de que a sociedade política (Estado) não tem interesse em promovê-lo. Não pela má-vontade das pessoas, mas pela forma como a sociedade está estruturada.

Tenho a dizer que, para a existência efetiva do bem comum, é imprescindível um processo de humanização das pessoas que se realize a partir de uma conscientização política. É a partir da práxis humana que se desenvolve a consciência política. É a partir desta que se garante o bem comum. O bem comum funcionará como elemento aglutinador da sociedade, e este será cada vez mais legítimo na medida em que atender maior número de pessoas e maior número de pessoas colaborem para a sua realização, o que acontece com a ação praxiológica das pessoas envolvidas.

O bem comum deve ser entendido como a totalidade da garantia dos direitos fundamentais:

1) proteção da pessoa humana

A dignidade da pessoa, que é fonte e receptáculo de valores, é protegida pelo pleno reconhecimento das suas liberdades fundamentais. Não é apenas a garantia formal, mas garantia real onde o Estado não considera os homens apenas como indivíduos substituíveis, uns pelos outros. Ao contrário, toma-os sempre em sua concreta situação histórica, definida pelas condições sócio econômicas de vida, cuja transformação procura realizar. Dentro desse direcionamento, os órgãos públicos devem atuar, prioritariamente, em benefício das populações mais carentes. A igualdade entre os indivíduos não é outra coisa senão a abolição total dos privilégios legais de sexo, religião, filiação partidária ou convicção ideológica.

2) liberdades individuais

A garantia expressa e real das liberdades individuais se realizará com o reconhecimento do direito das pessoas terem segurança para serem o que melhor lhes convier e decidirem para as suas vidas. Não pode o Estado, de maneira nenhuma, aplicar penas ou sanções que desrespeitem a integridade física ou moral das pessoas. Portanto, exige-se para que exista o bem comum, a abolição da tortura, dos maus tratos e das penas degradantes, e, principalmente, da pena de morte.

As pessoas terão a garantia de que não haverá abusiva intromissão na sua vida privada, no seu domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações, em quaisquer hipóteses. A inviolabilidade do domicílio é reforçada, dispondo-se que, à falta do consentimento do morador, ninguém pode penetrar de dia sem mandado judicial, porque à noite nem com mandado judicial. É garantida a liberdade de deslocamento e fixação de qualquer pessoa no território nacional, bem como a livre entrada e saída do país.

O direito de propriedade é configurado em sua autêntica natureza de proteção à dignidade da pessoa humana, sem as indébitas ampliações capitalistas nem a forçada extrapolação de uma função social inexistente. Como proteção da pessoa humana, os limites da propriedade são dados pela sua finalidade de manutenção de uma vida digna e sóbria, para os indivíduos e os familiares que dele dependam. Dentro desses limites esclarecidos, o direito de propriedade goza de proteção ainda maior, não podendo ser desapropriados os bens que sejam reconhecidos em juízo como evidente necessidade pública. Porém, quando a propriedade se distancia dos limites que garantam sua existência, tornando-se em poder de dominação sobre outras pessoas, pode o Estado expropriá-la sem observância das regras que a garantem quando atende aos objetivos do bem comum.

3) liberdades sociais.

A liberdade de reunião é ampliada, dispensando-se, em qualquer hipótese, a necessidade de autorização ou de prévio aviso à autoridade. O princípio da liberdade de associação garante que ninguém pode ser constrangido a se associar, seja para fins de estudos, lazer cultural, religiosos ou de organização sindical de trabalhadores.

4) Acesso à justiça

A garantia fundamental das liberdades parte do princípio de que o acesso à Justiça é gratuito, sem necessidade do humilhante atestado de pobreza. O habeas corpus, o habeas data, ação popular, mandado de segurança, recall, entre outras são institutos garantidos constitucionalmente.


b) o reconhecimento efetivo da soberania popular como instrumento de legitimidade de um governo.


O ponto de partida para superar uma situação de desequilíbrio constante e dinâmico entre classes, que produz múltiplas e crescentes desigualdades, está no reconhecimento efetivo, e não meramente retórico, de que o poder emana do povo e em seu nome e proveito deve ser exercido. E o Estado, fundamentalmente, tem por finalidade suprema assegurar, a todos, condições de vida digna e feliz, dentro dos conceitos de bem comum. Para que isto realmente se realize será necessário deslocar o ponto de legitimidade de um governo, que se encontra na fidelidade à idéia abstrata como define Gofredo, para o reconhecimento efetivo da soberania popular. Essa soberania popular sustenta-se sobre três pilares:

1) o necessário consentimento popular como condição de legitimidade da atribuição e exercício do poder, em todos os níveis; não só na esfera política, mas também no plano econômico. O consentimento popular não se expressa apenas pelo voto nas rituais épocas de eleições, mas também pelo poder de veto. O princípio que norteia a legitimidade do governo está justamente na síntese da práxis social, a partir da realidade em que as pessoas vivem e não de uma idéia abstrata.

2) a soberania do povo se realiza por meio da participação popular no exercício das funções públicas. Legitima-se o órgão de poder a partir do momento em que este se constitui em apenas órgão executor da vontade popular. O povo deve ter participação direta nos destinos da sociedade política (Estado) como na criação do direito que sustenta a sociedade política, seja através do instituto da iniciativa popular ou do referendo. Quando falamos em iniciativa popular estamos dizendo que, para o aperfeiçoamento das leis, é necessário desbloquear o poder legislativo, que está sempre sujeito ao controle de uma oligarquia. Em países da Europa, como a Itália e a Suíça, um conjunto de cidadãos pode fazer uso dessa prerrogativa popular para propor projetos de lei no Parlamento. Além do direito à iniciativa, importa, também, que os cidadãos detenham o poder de sanção, seja através do plebiscito, referendo ou veto.

3) o terceiro pilar da soberania popular é o pleno desenvolvimento do bem comum. A soberania popular e o bem comum estão intima e dialeticamente ligadas. Um não existe sem o outro; importando, nessa relação, a transformação da sociedade. A soberania é expressa pelo princípio majoritário, porém garantindo proteção às minorias (10).

O órgão de poder é legítimo e justo na medida em que estiver subordinado à soberania popular. A partir do momento em que esta soberania deixar de existir estaremos diante do estado de opressão. Portanto, a legitimidade de um governo também está intimamente ligada a quem confere o poder a ser exercido e não a quem é conferida. É o povo que legitima o órgão de governo.

Por um lado, critérios de julgamento encontram-se na análise do agir do órgão de governo no contexto sócio-político. Produzem-se situações de desigualdades e injustiças, conseqüentemente não está subordinado à vontade popular e, obviamente, julgado opressor, portanto ilegítimo.

Doutro lado, é fundamental que o poder não deva ser apenas consentido por uma parte daqueles que lhe estão submetidos. Gofredo diz que o governo é justo quando todos acham que ele é fiel às idéias fundamentais do grupo. Tenho a dizer que critico Gofredo no seguinte aspecto: o poder ideológico da propaganda e marketing político, principalmente pelos meios de comunicação de massa, tem o caráter de tornar as consciências alienadas e obter de todos o seu consentimento. Basta ver o caso da Alemanha de Hitler, onde a sociedade foi enganada através de uma grande máquina promocional, inteligentemente usada por Goebbels. Sendo assim, não basta consentimento para ser legítimo, é necessário que o órgão de governo e de poder promova situações de igualdade de justiça, dentro dos conceitos de bem comum. Sem se esquecer de que deve submissão à vontade popular.

Portanto é justa, legítima e necessária a resistência quando os governos deixam de se submeter à soberania popular.

VI - Tipos de Resistência.

Concordamos com Gofredo que a resistência exige certos requisitos. O que se justifica materialmente, a princípio, são os próprios antagonismos sociais contra os quais ela se levanta para remover esta neoplasia que matam aqueles que se tornaram desprestigiados dentro da sociedade. Estes antagonismos que denunciam as injustiças e a opressão da classe dominante constituem a prova material de que o órgão de poder deixou de se submeter à soberania popular. Desta forma, a resistência é legitima quando realizada pela e em nome da soberania popular. É a própria população que promove a resistência, extirpando o órgão espúrio. O que determina a forma de resistir é o consenso da população oprimida. Somos do entender que a proporcionalidade dos efeitos causados pelo órgão opressor devem ser levados em consideração, mas com força suficiente e capaz de remover o órgão opressor e todos os seus entulhos autoritários, não deixando nada que possa favorecer a uma contra-revolução das forças conservadoras.

A comunhão e a participação de todo o povo, com sua práxis social, são essenciais para que interesses de grupos conservadores não imperem ou se coloquem como interesses da coletividade como um todo. Os meios para aniquilar os instrumentos opressores podem variar de acordo com o respaldo que cada meio tem de sua base: seja a luta armada, a desobediência civil, manifestações de repúdio ou manifestos, etc..

Tenho a dizer que o processo de conscientização política é o melhor caminho para assegurar a existência de uma sociedade justa, livre, igualitária e soberana; e, principalmente, capaz de resistir às tentativas ditatoriais de grupos conservadores. Portanto, a consciência política não só é meio de prevenção, como de cura de uma situação injusta. É através da consciência política que o povo assegura sua soberania. Não há soberania popular sem a conscientização política dos homens. Conseqüentemente, o bem comum deixa de existir se não houver a supremacia da vontade popular.

Tenho a dizer, ainda, repetindo as palavras de Norberto Bobbio, que a democracia se mede pela multiplicação dos espaços onde o cidadão pode intervir, com voto, nas decisões, sejam políticas, econômicas ou sociais que lhe atingem. Onde nada é inacessível e tudo pode ser contestado (11).

Gostaria de manifestar minha discordância com as idéias elitistas do Prof. Gofredo, quando coloca o poder idealizado sob uma casta que se julga capaz de encarnar o poder político, pois somente esta casta tomaria decisões firmes, apreciações justas e julgamentos imparciais. (Não temos hoje como Presidente da República, um sociólogo de renome internacional? Não tivemos no Congresso Constituinte de 1998 grandes sociólogos, juristas, advogados? No entanto, no Congresso Constituinte consolidou-se a malandragem, com raríssimas e heróicas exceções de praxe, que só não nos consolam, entretanto estes foram capazes de suscitar no povo ardentes esperanças de que um dia se chegasse a instaurar a soberania da democracia, e, no entanto, com pouco tempo, aqueles mataram a sangue frio nossas esperanças. E quanto a esses assassinos qualificados no entanto, o Código Penal é omisso) (12).

VII - Conclusão

Para Miguel Reale, o Direito é a realidade na e pela qual se concretizam valores, ordenando as relações intersubjetivas consoante exigências complementares do indivíduo e do todo social (13) . Por mais que pese o respeito que possa e deva merecer Miguel Reale, em sua concepção, o valor paira como uma "entidade" acima da história. É elementar que os valores dominantes em cada meio social, são os que correspondem a uma dominação cultural, que, por sua vez, está apoiada em relações de natureza econômica. Portanto, o Direito, tal como é concebido, não corresponde as exigências do todo social . O Direito nada mais é do que síntese da produção ideológica historicamente condicionada. Diante disso, buscar a legalidade para a resistência à opressão dentro do Direito positivo e subjetivo seria uma tarefa inócua, como sem resultado faz Gofredo.

Entretanto, as leis positivas, outorgadas pelo Estado, nem sempre são Direito, o que faz deduzir que o fundamento ontológico do Direito deve ser buscado através da história das relações sociais, onde a retidão de um agir se mede não pela pureza doutrinal observada, mas pela análise do próprio agir no contexto sócio-político e o seu significado, o seu valor virá do aspecto crítico; não é o princípio doutrinal em si que determina o valor.

Franco Montoro diz "que fazer do Direito uma força conservadora é perpetuar o atraso. A razão de ser do Direito se realiza na luta pela vigência concreta e viva da Justiça. Aceitar as normas jurídicas como inexorável imposição dos detentores do poder significa descaracterizar o direito e mais do que isto traí-lo." (14)

A resistência à opressão dos governos injustos é ilegal, dentro dessa concepção de Direito apresentada e fundamentada pelos Estados autoritários, mas não é ilegítima. E a resistência, seja de que maneira for, resgata a condição sine quae non da sociedade política: o bem comum, a soberania popular, resgata-se a Justiça. Passa ser Direito, o Direito JUSTO. O que não é direito e ilegal é a situação ilegítima de opressão. Portanto, a resistência aos governos injustos não é apenas legítima, mas também de direito, dentro da concepção do DIREITO JUSTIÇA.

Notas bibliográficas:
1. TELLES JUNIOR, Gofredo da Silva. "A Democracia e o Brasil". São Paulo: Revista dos Tribunais, 1965.
2. FREIRE, Paulo. "Conscientização, Teoria e Prática da Libertação", 4ª Edição. São Paulo: Editora Moraes Ltda., 1980, p. 28 e 29 e "Ação Cultural para a Liberdade e outros escritos", 4ª Edição. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1980, p. 89-97.
3. apud GALIANO, Guilherme. "Introdução à Sociologia". São Paulo: Editora Harbra, 1981. p. 57-72.
4. ENGELS, Friedrich. "A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado". Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira S.A., 11ª Edição, 1987, p. 190.
5. LIBÂNIO, João Batista. "Formação da Consciência Crítica". Petrópolis/RJ: Editora Vozes Ltda, 1978, p. 84-102.
6. FREIRE, Paulo. "Pedagogia do Oprimido". Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 6ª Edição, 1978, p. 40 e 108.
7. BASTOS, Celso Ribeiro. "Curso de Direito Constitucional". São Paulo: Editora Saraiva, 9ª Edição, 1986, p. 3 e 4.
8. DALLARI, Dalmo de Abreu. "Elementos de Teoria Geral do Estado". São Paulo: Editora Saraiva, 13ª Edição, 1987, p. 19.
9. LUXEMBURGO, Rosa. "A Acumulação do Capital". Prefácio de Paul Singer. São Paulo: Editora Nova Cultural, 2ª Edição, 1985, p. IX
10. COMPARATO, Fábio Konder. "Muda Brasil, Uma Constituição para o Desenvolvimento Democrático". São Paulo: Editora Brasiliense S/A, 1986, p. 12-28.
11. apud PINHEIRO, Paulo Sérgio. "Os Deputados e os Barnabés". São Paulo: Jornal Folha de São Paulo, Edição de 20 de novembro de 1987, p. A-3.
12. COMPARATO, Fábio Konder. "Crimes de um Congresso sem legitimidade". São Paulo: Jornal Folha de São Paulo, Tendências, Edição de 06 de setembro de 1987.
13. REALE, Miguel. "Filosofia do Direito". São Paulo: Editora Saraiva, 1972, VII, p. . 614 e 615.
14. MONTORO, André Franco. "O Direito e a Justiça nas Transformações Sociais". São Paulo: Jornal Folha de São Paulo, edição de 30 de agosto de 1987, p. A-3.


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Sobre o Autor

Henrique Chagas: Henrique Chagas, 49, nasceu em Cruzália/SP, reside em Presidente Prudente, onde exerce a advocacia e participa de inúmeros eventos literários, especialmente no sentido de divulgar a nossa cultura brasileira. Ingressou na Caixa Econômica Federal em 1984. Estudou Filosofia, Psicologia e Direito, com pós-graduação em Direito Civil e Processo Civil e com MBA em Direito Empresarial pela FGV. Como advogado é procurador concursado da CAIXA desde 1992, onde exerce a função de Coordenador Jurídico Regional em Presidente Prudente (desde 1996). Habilitado pela Universidade Corporativa Caixa como Palestrante desde 2007 e ministra palestras na área temática Responsabilidade Sócio Empresarial, entre outras.

É professor de Filosofia no Seminário Diocesano de Presidente Prudente/SP, onde leciona o módulo de Formação da Consciência Crítica; e foi professor universitário de Direito Internacional Público e Privado de 1998 a 2002 na Faculdade de Direito da UNOESTE, Presidente Prudente/SP. No setor educacional, foi professor e diretor de escola de ensino de 1º e 2º graus de 1980 a 1984.

Além das suas atividades profissionais ligadas ao direito, Henrique Chagas é escritor e pratica jornalismo cultural no portal cultural VerdesTrigos (www.verdestrigos.org), do qual é o criador intelectual e mantenedor desde 1998. É jurado de vários prêmios nacionais e internacionais de literatura, entre eles o Prêmio Portugal Telecom de Literatura.

No BLOG Verdes Trigos, Henrique anota as principais novidades editoriais, literárias e culturais, praticando verdadeiro jornalismo cultural. Totalmente atualizado: 7 dias por semana.

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