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Aconteceu no 5599
por Airo Zamoner
*
publicado em 22/08/2006.
Mas o que fazia ali, na janela de sua sala de estar, aquele cartaz de Vende-se?
Onde estava a mulher de seus sonhos, aquela com quem se casara mês passado? Ela, que ficara deslumbrada ao conhecer a capital paranaense, seu movimento colorido, seus prédios e parques, os ipês amarelos, florindo no meio deste inverno diferente. Ela que... Não! Só podia ser obra de algum engraçadinho...
Ao tentar empurrar o portão: o cadeado! Cadeado no portão? Quem o pusera ali, se nunca tivera cadeado? Enfiou a mão pelas grades com dificuldade, até alcançar o botão da campainha. Abusou dos apertos: intermitentes, prolongados, raivosos, danados da vida. Ninguém apareceu.
Cansado, a luz da tarde já esmaecendo, os pensamentos se digladiando numa luta dos infernos em meio a ridículas tentativas de considerar alguma lógica, virou as costas. Caminhou até o meio-fio. Sentou-se na clássica posição dos desolados.
Veio a idéia luminosa: quem está vendendo? Deve ter o nome de alguma imobiliária, ou o telefone neste maldito cartaz. Levantou-se, voltou correndo até o portão. No lusco-fusco, brilhava apenas a palavra “vende-se”. Mais nada! Nem imobiliária, nem telefone.
O vizinho! Sim, o vizinho saberia alguma coisa. Mas ela estaria ali, no vizinho, este tempo todo?
Não conseguiu caminhar. Correu como um atleta, trombou no portão metálico, fazendo tremer o ar e vibrar os tímpanos. Onde está a campainha? Aqui também esconderam esta infeliz?
Uma luz alaranjada, muito fraca, se esgueirava pelas cortinas. O ambiente lá dentro parecia romântico. Nenhum movimento. E o diabo do botão da campainha, onde estaria afinal?
Correu de um lado para o outro. Foi até o poste de entrada de luz. Os olhos percorriam os recantos escurecidos pela noite que ameaçava chegar, para se alojar definitivamente. Olhou para cima. Viu os fios mergulharem pelos vãos do telhado. Um estalo de bigorna fez doer suas têmporas: o telefone. Que estúpido! Pegou o celular. Procurou açodado o número de casa, enquanto seus neurônios disparavam a informação: se ela tivesse adormecido, acordaria, atenderia o telefone. Mas se não ouviu a campainha, como ouvirá o telefone?
O vizinho! Agora sim, era a salvação. Mas a porcaria do botão da campainha não estava em lugar algum. Bateu palmas. Palmas desesperadas, insistentes, malucas, sem parar. As mãos ardiam, ardiam e ele batendo palmas e mais palmas como um demente. As mãos se amorteciam e batiam palmas. Com as palmas, o vizinho apareceria, fazendo silhueta naquela luz mortiça da cortina. Ele perguntaria de sua amada. Ele responderia... O que ele responderia? Ela fugiu, arrependeu-se do casamento, voltou para Shangrilá, resolveu vender a casa. Vender a casa? Como vender a casa, se é alugada? Ou ela estaria ali com ele? Fazendo o quê?
As palmas não paravam. As mãos já sangravam. Ninguém aparecia. A noite já mostrava a Lua, subindo pela abóbada negra, brincando de esconde-esconde com nuvens safadas que escorriam de um lado para outro, mudando de forma de repente, numa brincadeira mágica neste vai-não-vai com a Lua muda, de um prata indiferente, seco. Uma vontade de chorar como criança, de se atirar sob as rodas do primeiro automóvel que passasse, de arrombar a porta com a força que não tinha, mas com a raiva que tinha. No pensamento, a idéia de que sua amada estaria ali, junto com o vizinho, num encontro libidinoso de traição maldita. Não! Isto não poderia estar acontecendo. Mas poderia estar acontecendo! Parou com as palmas. Agarrou as grades do portão. Começou a sacudir insaciável e o barulho de ferro foi se alastrando pela casa, pela rua, pelo bairro inteiro. Gente incomodada se aglomerou na frente do número 5599. As mãos sangrando abundantemente perderam o ímpeto. Ele foi escorregando para baixo num agachar involuntário, enquanto os vizinhos, todos os vizinhos, menos o maldito vizinho, se perguntavam o que estava acontecendo.
Ela vem se esgueirando pela pequena multidão que se acotovela para ver a cena patética. Chega perto dele. Toca seu ombro, seu rosto. Ajuda-o a levantar-se. Aconchega-o junto à camisola que se tinge do sangue das mãos feridas. Apóia-o em seus ombros, ampara-o num caminhar lento em direção a seu lar recém formado. Atravessaram a alameda formada por vizinhos, muitos vizinhos mudos, que apenas abrem passagem ali, na Rua México do Bacacheri, na bela Curitiba. Ela sussurra em seu ouvido: querido! Quando é que você vai aprender que moramos no 5588 e não no 5599?
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