Crônicas,contos e outros textos
PÁGINA PRINCIPAL → LISTA DE TEXTOS → Henrique Chagas →
Verdes Trigos em São Miguel das Missões/RS - Uma viagem cultural
VerdesTrigos está hospedado no Rede2
Leia mais
-
NOSSOS AUTORES:
- Henrique Chagas
- Ronaldo Cagiano
- Miguel Sanches Neto
- Airo Zamoner
- Gabriel Perissé
- Carol Westphalen
- Chico Lopes
- Leopoldo Viana
- mais >>>>
Link para VerdesTrigos
Se acha este sítio útil, linka-o no seu blog ou site.
Anuncie no VerdesTrigos
Anuncie seu livro, sua editora, sua arte ou seu blog no VerdesTrigos. Saiba como aqui
SUBSÍDIOS FILOSÓFICO-CULTURAIS PARA A FORMAÇÃO DA CONSCIÊNCIA CRÍTICA - PARTE II
por Henrique Chagas
*
publicado em 20/08/2004.
SEGUNDO MOMENTO
MOMENTO DO SUJEITO
MOMENTO DO SUJEITO
Chamamos a atenção sobre a novidade fundamental desse esquema mental em relação ao anterior. Trata-se da superação do momento do realismo cosmológico. O sujeito joga papel decisivo no ato mesmo de compreender o objeto. Como momento seguinte ao anterior, significa a sua "negação", não no sentido escolástico de anulação, mas sim dialético, no sentido de assumir o anterior na sua validez, enriquecido pela novidade do presente.
Naturalmente, na euforia das descobertas, passa-se facilmente de uma compreensão dialética para uma totalizante, de modo que o momento do sujeito em muitos dos seus efeitos pode demonstrar-se como de violento "subjetivismo".
Poderemos entender melhor refletindo as principais relações:
Primeira relação: O homem e sua autoconsciência.
A característica desta primeira relação traduz-se na descoberta da subjetividade. Entende-se por subjetividade a interioridade da consciência, enquanto se opõe à exterioridade do mundo e que se revela precisamente como sujeito de significação e valores pelos quais o homem compreende o mundo. É a forma própria de o homem moderno compreender o mundo, e por conseguinte, de autocompreender-se. Torna-se dominante o caráter projetivo da consciência. O sujeito se percebe como fonte de verdade, de bem e de valor. Os valores objetivos assumem sentidos e significação na medida em que são percebidos, captados pelo sujeito. O sujeito vê que seu respeito pela objetividade é, em última análise, um respeito a si mesmo, à sua consciência. Portanto, a verdade se apresenta fundamentalmente como exigência do sujeito e não do objeto, ainda que esse tenha seu caráter compacto de existência.
Os fatos, a realidade se fazem verdade. Os fatos são simplesmente fatos. Tornam-se verdade na medida em que o sujeito participa pela reflexão de sua inteligência. Numa palavra, a verdade é realidade humana e não das coisas, dos fatos e objetos. Não existem fatos brutos para o homem. Eles são sempre interpretados. Isto significa que cada ato de conhecimento, de verdade, o sujeito se faz presente, com sua historicidade, com seu lugar cultural, social, etc.
Esta viragem antropológica, e em muitos casos antropocêntrica, encontra no "cogito ergo sum" de Descartes expressão explícita. O homem faz-se mestre da realidade. Liberta-se dela para dominá-la, através sobretudo da ciência, da técnica (Revolução Industrial).
A irrupção da subjetividade vai junto com a paixão pela liberdade, pela libertação das amarras objetivas, que até então atavam a consciência do homem (Revolução Francesa).
Momento em que o homem se descobre como "autônomo". Ele se entende como lei de si mesmo, não a recebendo de fora e sim descobrindo a partir de sua razão, inteligência e experiência.
Segunda relação: O homem e seus semelhantes.
Nesse momento marcado pela subjetividade, assistimos a dois fenômenos antitéticos: o individualismo e o comunitarismo. O individualismo chegou mesmo a constituir-se em pilastra de nossa civilização ocidental, ainda que nunca fora realizado em estado puro. A exploração de tal pendor individualista adquiriu relevância no sistema econômico capitalista.
Esta descoberta da subjetividade confunde autonomia com independência e com o mínimo de relação com os outros. A sua expressão econômica mais forte se traduz na "propriedade particular", no senso forte da posse das coisas.
Há outra vertente desse momento. A descoberta da subjetividade permite a descoberta do outro, da alteridade. O outro também é sujeito, fonte de verdade, de valor e de bem. Portanto, momento do diálogo, da intersubjetividade, do comunitarismo. Passa-se de uma relação objetivante, coisal, determinada por regras extrínsecas, para uma percepção da maior importância das pessoas em relação às regras objetivas. Essas só têm sentido na medida em que favorecem um clima de melhor entrosamento entre as pessoas. Cresce a personalização na relação entre os homens. Situações de dominação, de aviltamento, de humilhação, de escravidão são percebidas como injustiça e violação dos direitos humanos.
Também nesta relação não interessa tanto que alguém possua verdades objetivas, mas que seja coerente, veraz com o que pensa. O termo "autêntico" ocupa espaço lingüístico, com força imantizadora e justificadora até mesmo de muita esquisitice. Nas relações humanas, nos atos sociais, nos ritos, procuram-se antes de tudo a autenticidade pessoal em oposição ao mero cumprimento de normas objetivas, prescrições convencionais. O formalismo cede terreno diante da espontaneidade. O importante é sentir-se bem (Carl Rogers - psicólogo americano).
Diante dos acontecimentos históricos, o homem percebe-se mais como ator, criador da história, e não simples objeto de um destino ou obediente-crente numa divina providência... O homem é chamado a ser senhor de sua própria história. As suas decisões determinam o ritmo dos acontecimentos. São produtos da iniciativa humana. O homem faz a história. Seu ser não lhe é dado todo feito. Constrói-se através dos atos, das ações, dos gestos que se realiza em sua existência. Ele é ser e devir. Como ser, tem uma onticidade dada. Como devir, acontece a cada momento. É ao mesmo tempo acontecimento e permanência, transitoriedade e continuidade. E seu projeto, seu devir está entregue a seu poder criativo. O homem é também autocriador de si mesmo.
Terceira relação: O homem e a natureza.
A partir da Idade Moderna, com o progresso das ciências, com o desenvolvimento da técnica, com o aperfeiçoamento das forcas produtivas, o homem emancipa-se diante da natureza. Não se sente mais um ser fadado e destinado a viver segundo o ritmo natural das coisas. Antes encara a natureza como uma tarefa, um problema a ser resolvido, com os meios que vai continuamente aperfeiçoando.
Não é mais a natureza que determina a conduta do homem. É o homem que submete a natureza a sua vontade, a sua conquista racional e racionalizante. De discípulo da natureza, passa a ser seu mestre. Não se trata de uma consciência teórica, aprendida em algum livro, surge da experiência fascinante que vai fazendo de ir domando a noite com a luz elétrica, a distância com o motor e telecomunicações, os espaços celestes com seus aparelhos e naves espaciais.
O universo é visto cada vez mais como um processo evolutivo, no qual o homem ocupa lugar temporalmente reduzido e criativamente expressivo. A dissolução da imagem fixista do mundo produz também transformações profundas na maneira de o homem compreender todas as outras relações consigo mesmo, com a natureza, com os seus semelhantes, como o Transcendente.
Quarta relação: O homem e o transcendente.
Num primeiro instante, esse momento cultural traz sérios problemas a respeito da relação do homem com a Transcendência. No momento anterior (do objeto), o homem identificava-se com a exterioridade, tanto a fonte de valores, verdades e bem como a realidade da Transcendência, em oposição a si mesmo. Ora, no momento em que descobre sua subjetividade, como fonte de valor, verdade e bem, sente, num primeiro impulso previsível, o movimento de rejeição dessa transcendência. Ela lhe aparece como fonte de alienação. Sua existência significa, pois uma negação da autonomia do homem. Nesse contexto, compreende-se o grito de "morte de Deus". A tensão entre a descoberta do primado do sujeito e a Transcendência não se resolve, em muitos casos, numa nova reinterpretação da própria Transcendência, mas em sua negação. A afirmação de um pólo implica na negação do outro. Como, no momento anterior, a afirmação de Deus reduzia a autonomia e liberdade do homem, agora a afirmação do homem arrasta consigo a negação de Deus (leia-se Voltaire).
As verdades reveladas, a própria existência de Deus não conseguem ser percebidas a não ser à luz desse dilema inexorável: ou Deus ou o homem. Nessa perspectiva, afirmam-se os humanistas ateus de projeção numa linha cultural (Feuerbach) e mais tarde numa linha psicológica (Sigmund Freud) e de postulado a partir da plena afirmação do homem (Nietzsche e mais tarde Paul Sartre).
O pensamento cristão (teísta) reinterpreta a Transcendência dentro desse novo esquema mental. "Deus é o nome da profundidade e do fundo infinito, inesgotável, de todo ser. Esta profundidade é o sentido mesmo da palavra Deus" (Paul Tillich).
A Transcendência de Deus não é nenhuma concorrente com o homem. Para ser homem, Deus precisa estar junto. Na medida em que o homem se afasta d´Ela, menos homem se torna, porque se fecha num isolamento egoístico auto destruidor. Sua rejeição, não é a afirmação do homem, pelo contrário, é o enclausuramento do homem na solidão-tormento de seu próprio eu.
ALGUMAS EXEMPLIFICAÇÕES
a) Subjetivação
A descoberta da subjetividade como ponto fulcral de tal momento leva a outro processo, não necessariamente idêntico, mas facilmente compreensível: a subjetivação. A euforia da percepção da importância do sujeito, sua autonomia, sua posição fontal (de fonte) em relação à verdade, ao bem e ao valor produz uma centralização da realidade do próprio sujeito. Esse começa a ocupar o lugar que o objeto detinha no momento anterior. A realidade passa então a ser encarada em vista da auto-realização do sujeito. Ela torna-se facilmente critério de toda verdade, valor e bem. Assim, algo, que não realiza o homem passa a ser considerado sem relevância. E essa auto-realização participa da ambigüidade desse momento, já que ele, como vimos, tem uma face extremamente individualista. E por isso a auto-realização pode encobrir, no fundo, interesses egoísticos. Facilmente se passa, quase de modo espontâneo, para uma relativação de toda verdade. Tudo se torna relativo. Todos os valores dependem do sujeito. Nada possui alguma normatividade. Desliza-se sem mais para os "achismos". Na linguagem surgem, pois, os incansáveis "eu acho que..." como última palavra da realidade.
b) libertação.
A compreensão de libertação desloca também seu acento. Se, no primeiro momento, se via antes a libertação em relação ao mundo objetivo do erro, de falsidade e do vício, aqui se focalizam mais detidamente os entraves de caráter pessoal, subjetivo, que impedem o homem no seu movimento de auto-realização e de dom aos outros. A libertação psicológica assume enorme importância na sua função terapêutica de fazer o homem livre para si e para os outros. Os empecilhos são, pois, os traumas, as neuroses, as frustrações, as fixações, os mecanismos inconscientes de defesa, etc.. E sobre eles exerce-se a força libertadora das práticas psicoterápicas.
CONCLUSÃO
A pergunta fundamental levantada dentro desse segundo momento é o significado do homem, das coisas, do mundo, da historia, da Transcendência para o próprio homem e não tanto de tais realidades em si mesmas. Se no primeiro momento se perguntava que são as coisas - quid est- neste se pergunta que significam as coisas, em cuja resposta o sujeito participa de modo decisivo.
Não nos interessa na descrição desse esquema mental, devido seu caráter esquemático e didático descer a considerações históricas em busca das raízes e origens dos elementos, que desencadearam a modificação do modo de pensar, agir e julgar de um esquema para o outro. Entretanto, podemos talvez indicar alguns grandes acontecimentos, a modo de exemplos, onde certos aspectos desse segundo momento aparecem com maior nitidez. Não se pode deixar, porém, de levar em consideração que as evoluções de mentalidade não são homogêneas nas pessoas e nem observam nenhuma lógica bem travada. Por isso, elementos de esquemas diferentes coexistem em épocas históricas, e seus inícios não são fáceis de perceber. Além disso, quando falamos da valorização do sujeito no segundo momento, não se deve esquecer do aspecto dialético de toda consideração. Ainda que a compreensão dialética como tal se tenha desenvolvido nos últimos séculos, contudo a realidade é ela mesma dialética. Quando no primeiro momento se falava da importância do objeto, da realidade em si mesma, não se pode compreender como tal, sem que se faça também uma referência ao sujeito. Contudo queremos somente observar a predominância do aspecto dialético percebido. A explicitação da dialética não era conhecida na consciência dos homens daquele momento, ainda que a vivessem. O mesmo se diz da valorização do sujeito. Ela só é inteligível em relação ao objeto. Sem dúvida, a eclosão da subjetividade vai levar a uma focalização mais acentuada dos elementos subjetivos.
Como dizia, alguns dados históricos, a modo de conclusão, podem ajudar-nos a compreender a razão de tais deslocamentos:
- A Renascença na Itália, onde volta a tona a cultura humanista, o renascer da cultura grega. O grego exaltava o homem.
- O progresso das ciências naturais, matemáticas dão-lhe maior soberania sobre o mundo, liberando-o de uma concepção mítica da natureza. Na medida em que as forças produtivas se desenvolvem através da ação do incipiente capitalismo, gerando modificações violentas no sistema de habitação e relação social, passando de uma sociedade feudal para uma sociedade burguesa, a liberdade do homem em relação ao seu pequeno mundo rural se firma.
- As grandes revoluções das estruturas sociais, políticas, econômicas, sobretudo no século XVIII, provocam na expressão de Hegel, hoje tornada lugar comum, uma inteligência nova do homem compreendido como liberdade radical.
- As filosofias, sobretudo a partir de Descartes, passando por Kant (Iluminismo alemão) e Hegel até desembocar nas atuais correntes, marcam um processo de subjetivização, interiorização, antropologização, historicização (W. Schulz)
.
- Em nível de Igreja, houve varias erupções desse espírito mais subjetivizante, a partir dos postulados de Lutero com os três: "sola fides fiducialis" (basta a fé), "sola Scriptura" (basta a Escritura) (03) e "sola gratia" (basta a graça) imputada ao indivíduo em contraposição aos elementos objetivos da teologia escolástica: verdades reveladas (dogmas), magistério, obras. Isso vai eclodir no Concilio Vaticano II, gerando uma nova face da Teologia e da Igreja Católica.
TERCEIRO MOMENTO
MOMENTO DO SOCIAL (dialético)
MOMENTO DO SOCIAL (dialético)
Dentro da dialética do momento anterior, em que o sujeito assume papel preponderante, surge novo deslocamento do acento, que vai caracterizar o que chamamos de terceiro momento. Volto a insistir no caráter didático e heurístico desse instrumental, não conseguindo organizar, não conseguindo organizar numa sucessão histórica lógica as idéias e acontecimentos. Contudo tem tal instrumental uma dinâmica dialética, que o justifica. As quatro relações vistas nos momentos anteriores vão receber agora nova conotação, como conseqüência precisamente de superação dialética do momento anterior. Se a primeira síntese acentuava o objeto, a segundo o sujeito, essa focaliza antes o próprio aspecto da dialeticidade da relação, e portanto supera o caráter subjetivista do momento anterior, numa integração social.
Primeira relação: O homem e sua autoconsciência.
O sujeito percebe o caráter dialético de sua consciência. Ele pensa a si mesmo, é fonte de valor, de verdade e de bem de um lado, doutro é pensado, é marcado pelas estruturas objetivas, de modo que sua verdade, seu bem, seus valores são, na verdade, fruto da síntese - objeto e sujeito. Esse caráter dialético já presente em todos os momentos, torna-se aqui mais claro, pois a partir de um extremo de subjetivismo, esbarra o homem com a rigidez inexorável da realidade.
Tal descoberta do aspecto dialético aparece mais claramente a partir da inversão da dialética (Hegel, elaborada a partir do ideal), provocada por K. Marx, na sua ruptura com Feuerbach (Marx inverteu a dialética do ideal para o real, isto é Marx não admitia o materialismo dialético de forma idealizada, mas a partir dos fatos reais). Não se trata de nenhum regresso à posição do primeiro momento, em que os valores vinham de fora para o homem, sobretudo da Transcendência. Eles são profundamente determinados por relações objetivas, porém sociais e humanas. Essas são, portanto, criação do próprio homem.
Nesse momento o homem dá-se conta da influência da atividade na sua própria consciência.
A atenção do homem não se dirige para um homem ideal, para uma liberdade e consciência abstrata, como valores, ou mesmo fonte de valores. Orienta-se em direção do homem real, isto é, o homem situado no conjunto das relações sociais. O homem real é produto de sua situação e relações sociais (leia os escritos do Professor pernambucano Paulo Freire).
Está na intuição desse 3º momento a percepção aguda de tal relação dialética e da importância das relações sociais de produção e de todas as outras relações humanas na gestação de valores, verdade e bem. A consciência humana se entende envolvida em três momentos dialéticos, sem possibilidade de separá-los, como entidades por si mesmas. É o homem que se exterioriza. Tudo que existe no mundo social é criação do homem. Esse universo exteriorizado pelo homem se solidifica, se objetiviza, ganha existência além da consciência e liberdade que o produziu. E começa a exercer sobre esse mesmo sujeito uma ação condicionante, marcante, provocando nele uma internalização de tal realidade. Essa realidade internalizada é, por sua vez, de novo exteriorizada, objetivada, e assim por diante. A consciência dialética do homem consiste precisamente em perceber-se nesse processo dinâmico, contínuo, incessante.
Segunda relação: O homem e seus semelhantes.
Se no momento anterior insistia na intersubjetividade, agora o aspecto societário ocupa o primeiro plano. As relações sociais de produção (nível econômico) e as relações de poder (nível político) assumem maior relevância e o homem é entendido enquanto se insere neste contexto de interesses. O homem é um ser eminentemente político, no sentido de que sua prática interfere no jogo das forças de interesses de sociedade. Supera-se uma concepção intimista e de neutralidade do agir humano. O homem não consegue pairar fora e acima das realidades sócio-políticas. Sua ação sempre tem dimensão política.
O aspecto comunitário não parece suficiente para iluminar o agir humano. Faz-se necessário compreendê-lo dentro das relações sociais que constituem a sociedade. Nesse momento, procura-se sobretudo ultrapassar o caráter intimista das relações humanas, para ver-lhes o alcance político e societário.
Se, no momento anterior, as considerações psicológicas ocupavam lugar proeminente, aqui entram em cena sobretudo a Política e a Sociologia. A sociedade é vista nos seus aspectos estruturais e não simplesmente como mera relação de consciências. As análises orientam-se na linha de detectar as estruturas configuradoras da sociedade, a fim de compreender os interesses em jogo e a maneira de operar sobre elas.
A História adquire também muita importância. Não é considerada como fruto de grandes decisões, sobretudo de personagens importantes. Não se lê à luz dos feitos e das empresas de soberanos, generais, imperadores, presidentes. A atenção volta-se para os verdadeiros interesses econômicos, políticos de grupos, de nações, que se escondem atrás das decisões aparentemente pessoais de alguns estadistas. As relações humanas ampliam-se, pois, para dentro de contextos mais amplos, e perdem seu caráter intimista e subjetivizante.
Nesse contexto, a ideologia desempenha papel importante. Exprime a racionalização dos interesses de classes sociais. A ideologia faz duplo papel de revelar os interesses e de encobri-los. Ao sistematizar os interesses de grupos, faz que eles possam impor-se na sociedade. Nesse sentido revela-os. Mas não o faz, entretanto, de modo científico, objetivo, explicito. Usa jogos lingüísticos que terminam por vedar-lhes uma inteligência clara (anos 70 - Governo Médici). Nisso, a ideologia participa da mentira, da falsificação. Nesse terceiro momento, o homem toma maior consciência de todo esse jogo ideológico e sobretudo de sua relação com os reais interesses das classes sociais.
Terceira relação: O homem e a natureza.
A aceleração da empresa conquistadora da natureza por parte do homem tem atingido graus antes sequer imagináveis. Entretanto, surgem problemas novos. Estamos passando de uma consciência do trabalho humano limitado explorando recursos naturais ilimitados, transformando e conquistando a natureza numa progressão sem limites. O extremo de exploração, a euforia da conquista racional da natureza esbarram agora com o espectro da poluição, do esgotamento de recursos não renováveis, da ameaça de situações imensamente perigosas dentro de um lapso de tempo não muito longo.
O feitiço volta-se contra o feiticeiro. Não é qualquer transformação da natureza que serve para o processo de humanização. Algumas se tornam pesadelo para o homem.
Já estamos em muitos pontos num desenvolvimento que se torna auto-destruitivo. No ritmo em que se caminha pode se prever um colapso do sistema mundial, um novo dilúvio (guerra nuclear, quem sabe ?). Regiões habitáveis começam a tornarem-se inóspitas devido ao excesso de poluição.
A inteligência humana colocada a serviço de interesses tem produzido as mais sofisticadas armas e desenvolvido possibilidades inauditas de destruição. Surge então o medo de que tais armas voltem contra toda a humanidade. Os EUA possuem armas para destruir inúmeras vezes toda a vida do planeta. E a facilidade e risco de que tais armas caiam nas mãos de irresponsáveis torna mais angustiante e questionadora essa situação. Além disso, o homem se envolve numa espiral sem fim, em que cada arma está a pedir um sistema defensivo mais sofisticado. E os gastos que tal espiral provoca são de tal montante, que impedem a solução de problemas fundamentais para a vida humana, como a fome, a doença, a educação em outros países (não me parece justo).
As pesquisas no campo da Biogenética implicam na possibilidade de manipulação do próprio homem. Na tentativa de controlar o código genético, o homem adquire um poder sobre o próprio homem de tal gravidade e alcance , que se torna uma ameaça. Uma vez feita a descoberta, ela fica entregue à irresponsabilidade e à possibilidade criminosa de muita gente. A partir do domínio genético pode uma mente criminosa criar seres (bactérias ou vírus) destruidores da vida humana. A aids não seria um vírus fabricado em laboratório? Tudo isso põe em questão essa consciência triunfante do homem dominador e conquistador da natureza.
Quarta relação: O homem e o Transcendente.
Dois movimentos ocupam esse espaço cultural em relação a transcendência. Um que não consegue entender a possibilidade da existência de uma transcendência dentro de tal esquema mental. Propugna na linha de movimento do segundo momento, um ateísmo ainda mais radical. O que existe é o acaso e a necessidade. O homem não pode compreender nenhuma finalidade. A ciência é a sua arma de compreensão.
Tudo depende da inteligência. Se a racionalidade humana não funcionar, a destruição virá mais cedo. A esperança esta colocada nessa racionalidade científica, que sabe medir os riscos e os custos nos atrasos das soluções. Os computadores estão aí para nos oferecerem dados e cálculos exatos, cuja manipulação tão complexa ultrapassaria qualquer cabeça humana.
Na linha de fé, uma teologia da esperança, uma teologia do social em suas diversas formas (política, libertação) procuram compreender Deus dentro do processo de transformação da sociedade. Nesse processo, o homem experimenta a sua limitação, pequenez, a criaturalidade de um lado, e de outro a necessidade de uma salvação, sustentada pela força indestrutível da esperança. Deus é a sua esperança de salvação, de plenitude no meio aos compromissos de libertação.
EXEMPLOS
Dentro desse esquema, a tarefa reinterpretativa vai elaborando seus temas e produzindo suas mudanças de atitudes, compromissos, concepções de valores. Por isso, podemos elucidar com algumas exemplificações, a título simplesmente de sugestão, deixando aberta a tarefa para outras questões.
a) Desprivatização e valorização das categorias políticas e societárias.
O aspecto político das realidades humanas é focalizado de preferência. Um campo que sofre então reformulação é o da fé, da religião, da Igreja. Como tendência dos últimos séculos, não se percebia facilmente uma relação entre a fé e política. Restringia-se ao setor das opções tomadas em consciência, enquanto que as ações públicas, políticas eram unicamente regidas pelas regras do jogo político vigente. A tendência desse momento é precisamente desprivatizar a fé e mostrar a dimensão política já existente e desmascarar o jogo ideológico da privatização da fé. Uma fé inconsciente de sua dimensão política facilmente estará fazendo o jogo dos interesses dominantes. E atos, que parecem exprimir puramente tal dimensão religiosa, têm alcance político, cuja significação passa despercebida. Não existe uma fé, uma religião, uma teologia, uma Igreja, totalmente neutras, abstratas, apolíticas, puramente ligadas à intimidade pessoal e individual. A fé é também um compromisso social. Fé sem compromisso social é uma alucinação suicida: que gera comportamentos fanáticos e perigosos para a sociedade.
b) Valorização do estrutural e das análises da realidade.
Se o momento anterior percebia com maior clareza os elementos pessoais, a importância da liberdade, consciência, aqui as atenções se voltam para as estruturas, especialmente sócio-político-econômicas. Como elas têm sua consistência e não dependem em suas transformações do simples impulso da vontade humana, impõe-se a tarefa de analisá-las com rigor. Por isso, um dos pontos capitais percebidos dentro desse esquema é o jogo entre ciência e ideologia. Portanto procura-se nesse momento analisar com criticidade tanto a realidade como o instrumental de análise, onde se percebe o jogo de interesses individuais e grupais.
c) Relevância da práxis.
Desloca-se aqui o acento. No momento anterior, atendia-se antes à intencionalidade das ações humanas. Agora se analisa de preferência a sua prática, isto é, a sua ação enquanto transformadora da realidade e o seu significado objetivo dentro do quadro social, independentemente de sua intencionalidade ("De boas intenções o inferno está cheio"). Procura-se mostrar como a ideologia tenta precisamente velar essa percepção, fazendo remontar o significado da ação unicamente à subjetividade das pessoas. As ações humanas são analisadas dentro do contexto do jogo de interesses econômicos e políticos, para ver as quais deles elas favorecem ou obstaculam. O sentido da práxis aparece dessa análise objetiva e não da boa ou má vontade das pessoas.
Com isso, quer-se superar o plano fechado da ortodoxia, no qual a verdade é definida pela teoria. Vê-se antes a verdade a partir de sua realização, da práxis. Ela se verifica (faz-se verdade). Surge como expressão de tal viragem a categoria da ortopráxis.
A práxis é a teoria em ato. A teoria é a consciência que a ação toma de sua natureza e de sua situação histórica. Busca-se uma teoria, que não mais seja contemplativa da natureza, mas transformadora. Todos os mistérios que desviam a teoria para o misticismo encontram sua solução racional na prática humana e na compreensão da prática (Karl Marx). É necessário desmitificar as teorias. "As exigências de abandonar as ilusões sobre sua condição é a exigência de abandonar uma condição que necessita de ilusões" (Marx). A teoria só existirá se for comprovada pela práxis humana. A práxis é entendida fundamentalmente em relação com o homem. Cada um se transforma e se modifica na medida em que ele transforma e modifica o conjunto de suas relações sociais. A práxis não é simplesmente a atividade material do homem. É também o seu conhecimento teórico. A teoria é, pois, um momento da práxis e não uma entidade independente. A práxis é esse conjunto de prática e teoria, a teoria contribuindo, numa dinâmica, a modificar as relações sociais, em lugar de ser simplesmente um reflexo das mesmas.
A partir dessa nova compreensão da práxis, como conjunto de pratica e teoria, repensa-se a relação entre fé e a pratica da caridade, entre a Revelação e a prática pastoral.
d) Outros pontos.
Nesse esquema mental, o conceito de libertação assume sua dimensão mais plena e própria. Não se trata de uma mera passagem de um universo de erro, ignorância e vícios para a verdade, o bem (1º momento), nem uma superação psicológica dos entraves subjetivos (2º momento). Refere-se ao processo de transformação de estruturas opressivas, exploradoras, radicalmente ligadas aos modos de produção, em novas, onde a exploração e a opressão estariam em linha de superação. O termo libertação adquire um sentido em relação às mudanças estruturais sócio-político-econômicas e culturais.
Os aspectos mais pessoais resultam como decorrência das transformações estruturais, ainda que se negue o caráter dialético de toda mudança.
CONCLUSÃO
Este esquema mental é dominado pelas categorias do estrutural, social, dialético, histórico, numa tentativa de superação das limitações e impasses do momento anterior. Naturalmente cada momento tem dentro de si sua dialeticidade e oscila, ora carregando mais um ponto, ora reagindo a esta tendência. Entretanto, há um aspecto que se torna dominante e a partir do qual se compreendem as quatro relações fundamentais.
Se no momento anterior pode ser caracterizado culturalmente pelo predomínio dos humanismos, das filosofias idealistas e da existência, o triunfo da revolução burguesa com as clássicas proclamações dos Direitos Humanos, o desenvolvimento do capitalismo em suas diversas formas, o exacerbamento do subjetivismo e individualismo, etc., este 3º momento apresenta certas formas de anti-humanismo, do predomínio das filosofias e teologias da práxis e estruturalistas, o despertar de movimentos socialistas, reações violentas contra os tipos de individualismos e contra a visão liberal dos Direitos Humanos, que, na prática, favorecem pequenos grupos de elite com exclusão das grandes massas.
Se no momento anterior a glorificação da técnica e das ciências exatas gerou tantas euforias desenvolvimentistas, neste 3º momento paira certa dúvida, certo medo diante de tais progressos, que terminam por ameaçar o próprio homem.
Há muitos germens de contradição nesse terceiro momento, sobretudo no aspecto de extrema racionalidade que ele encerra. Pré-anunciam-se movimentos que o questionam. Entretanto, no presente, não nos é evidente que elementos são realmente novos, anúncio de algo diferente que esta nascendo e que elementos são tentativas vãs de reversão. Diversos movimentos de libertação, o fenômeno de maio de 1968 na França, a experiência do hippie, a Revolução Sandinista na Nicarágua, etc., podem já encerrar alguns elementos anunciadores de um momento em que o aspecto dialético estrutural, tão salientado no 3º momento, receba nova releitura. Vivemos certamente uma hora prenhe de novidades, que ainda não se deixa facilmente configurar se não quisermos ser seduzidos por tentações futurológicas sensacionalistas.
POSFÁCIO
Será então que a verdade, o bem e o valor são relativos, criação das pessoas ? Que é que nos defende então do arbítrio dos caprichos das fantasias dos indivíduos ? As tradições, as construções da inteligência e da vontade humanas não passam, na realidade, de castelos de areia ? Enfim, o relativismo e o subjetivismo terminam por triunfar sobre o esforço de perenidade, de definitividade, de conquistas irreversíveis da humanidade ?
Naturalmente, quem entendesse no sentido das perguntas todo o desenrolar desse trabalho, teria passado à margem de nossas reflexões. Ele conduz-nos a três conclusões fundamentais a respeito da verdade, do bem e do valor:
1 - ···Eles são realidades históricas.
2 - ···O sujeito participa na compreensão, elaboração, transmissão.
3 - ···A mentalidade que os apreendia de modo fixo, estável, imutável, é ela fruto de uma determinada época histórica e de um determinado sujeito cultural.
Quando afirmamos a historicidade da verdade, dos valores não queremos tirar-lhes nenhum traço de seriedade, de importância, de força sobre o homem. Pelo contrário, supomos que o homem foi criado e feito para a VERDADE plena, escatológica. Sua existência é contínua caminhada nessa direção. Sendo sua estrutura feita para e pela VERDADE, vai descobrindo-a, criando-a ao longo da história. Essa construção é um processo. A cada momento forjam-se novas sínteses. Isto já implica que os momentos anteriores não são relegados ao nada e sim assumidos na novidade do momento presente. Isso nos incita a continuar cada vez mais na busca da VERDADE.
Quando afirmamos a participação do sujeito na produção da verdade, queremos salientar um aspecto de responsabilidade e de limitação também de todo conhecimento humano. Os homens encontram-se sempre envolvidos e condicionados por interesses de classe, por situações culturais determinadas e por tantos outros fatores. A caminhada em direção à VERDADE ESCATOLÓGICA não acontece fora de tais condicionamentos.
Este trabalho tentou, com simplicidade, mostrar como se faz tal caminhada, e como ela se prossegue. Naturalmente não é fácil organizar elementos tão variados dentro de esquema tão simples.
Contudo cremos que tal esquema didático pode ser uma primeira abordagem de compreensão da pluralidade de fatores, dados, idéias, em torno de algumas categorias centrais.
Pretendemos simplesmente oferecer essa possibilidade, procurando organizar tais elementos dentro de uma organicidade com certa coerência e numa sucessão lógica (e quanto possível histórica), a fim de facilitar a compreensão das dinâmicas em processo.
Não se tratou de estabelecer um quadro rígido, de tal modo que todas as coisas pudessem ser bem enquadradas, dando-nos a segurança ilusória de as dominarmos. São delineamentos bem gerais.
O instrumental apresentado quis fazer a função de uma bússola, tentando mostrar a direção em que se movem essas tendências. Preside a ele uma compreensão dialético-histórica da realidade e um esforço de sistematização, com todas as limitações que tais opções possuem.
À medida que conseguimos perceber o nosso esquema mental e do outro, poderemos estabelecer um diálogo mais congruente, sabendo a ressonância semântica de nossas afirmações e captando, por sua vez, o alcance dos ditos do parceiro. Este instrumental pensa poder facilitar o diálogo e a compreensão à medida que ajuda a situar-nos em relação a categorias e parâmetros simples, mas fundamentais. E a partir daí, é-nos possível criar espaços de compreensão e diálogo.
NOTAS :
1. O Professor João Batista Libânio discorre sobre o assunto na sua coleção publicada pela Editora Vozes sob o título de "Formação da Consciência Crítica".
2. Esclarecemos que produzimos tal trabalho no ano de 1992, portanto vários anos se passaram. As poucas anotações que fizeram servem para atualizá-lo.
3. Muitos dos seguidores de Lutero interpretaram seus postulados a partir de outro esquema mental (do objeto), dando assim um caráter objetivante à Escritura, transformando-a em objeto com poder supranatural. Exemplo disso é a utilização da Bíblia com poder mágico (abrí-la aleatoriamente para buscar a verdade para determinado fato ou situação, ou em nossos dias, a chamada "caixinha da promessa).
Sobre o Autor
Henrique Chagas: Henrique Chagas, 49, nasceu em Cruzália/SP, reside em Presidente Prudente, onde exerce a advocacia e participa de inúmeros eventos literários, especialmente no sentido de divulgar a nossa cultura brasileira. Ingressou na Caixa Econômica Federal em 1984. Estudou Filosofia, Psicologia e Direito, com pós-graduação em Direito Civil e Processo Civil e com MBA em Direito Empresarial pela FGV. Como advogado é procurador concursado da CAIXA desde 1992, onde exerce a função de Coordenador Jurídico Regional em Presidente Prudente (desde 1996). Habilitado pela Universidade Corporativa Caixa como Palestrante desde 2007 e ministra palestras na área temática Responsabilidade Sócio Empresarial, entre outras.É professor de Filosofia no Seminário Diocesano de Presidente Prudente/SP, onde leciona o módulo de Formação da Consciência Crítica; e foi professor universitário de Direito Internacional Público e Privado de 1998 a 2002 na Faculdade de Direito da UNOESTE, Presidente Prudente/SP. No setor educacional, foi professor e diretor de escola de ensino de 1º e 2º graus de 1980 a 1984.
Além das suas atividades profissionais ligadas ao direito, Henrique Chagas é escritor e pratica jornalismo cultural no portal cultural VerdesTrigos (www.verdestrigos.org), do qual é o criador intelectual e mantenedor desde 1998. É jurado de vários prêmios nacionais e internacionais de literatura, entre eles o Prêmio Portugal Telecom de Literatura.
No BLOG Verdes Trigos, Henrique anota as principais novidades editoriais, literárias e culturais, praticando verdadeiro jornalismo cultural. Totalmente atualizado: 7 dias por semana.
< ÚLTIMA PUBLICAÇÃO | TODAS | PRÓXIMA>
LEIA MAIS
As minorias sofrem com o etnocentrismo, por Carol Westphalen.
A invasão dos saquinhos de supermercado, por Efraim Rodrigues.