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Instantâneo

por Leopoldo Viana Batista Júnior *
publicado em 22/07/2004.

Alguns pintores famosos, como o Italiano Michelangelo, foram perfeitos na arte de retratar épicos momentos de vida ou dogmas religiosos, a exemplo dos afrescos da capela sistina.

O “instantâneo”, que ora tenho em mãos e passo a vocês, mesmo já amarelado e desbotado pelo tempo, apesar de ainda em preto e branco, não registrou a imaginação do operador da precária máquina caixão, mas, senão, a realidade da vida daqueles que habitaram, ou ainda habitam, a Rua João de Pessoa, no bairro de Miramar.

As cores, que porventura o apreciador venha a notar, nada mais são do que aquelas obtidas pela sua própria imaginação. Mas, a bem da verdade, a vida, quando vivida - o próprio passado - nada mais é que pura imaginação, pois não se pode pegar, alterar, consertar ou esconder. Seus efeitos, estes sim, podem ser apreciados e curtidos, como se vê agora neste instantâneo que lhes entrego.

Mas, meu caro observador, por incrível que pareça a você, naquele passado não muito distante, o artista retratista, mesmo com uma precária máquina caixão, conseguiu a proeza única de registrar a cena em mais de um plano. Esta fotografia possui largura, altura e profundidade. E, mais incrível ainda, mesmo sem movimento, dependendo do ângulo que as suas mãos estejam, tem-se o privilégio de ver até mesmo o interior das moradias, muito parecido com o que hoje se faz com as telas dos computadores. Assim, de forma indelével, ficou registrado o cotidiano da querida rua João de Pessoa, no afamado bairro das muriçocas gigantes.

Pois bem, olhando-se ao comprido da rua, vê-se que começa na Av. Epitácio e se estende por três quarteirões, finalizando, abruptamente, em antiga bueira que deságua no norte do rio do Paul, mais tarde ladeado pela Beira Rio. Casas muito parecidas, no antigo Conjunto Miramar, já estavam sendo modificadas ao sabor daqueles mais cuidadosos ou mais abonados.

No final da década de sessenta - pois o “instantâneo” é daquela época, não esqueçamos -, ainda sem calçamento e modorrenta, distingue-se a poeira de um prefect de Sêo Olívio e a marca dos pneus da rural de Sêo Maurício. Aquela rua proporcionava as melhores brincadeiras aos moleques que lá moravam ou a freqüentavam, no verão ou no inverno. Na estação quente, o calor e a poeira deixavam os meninos tão sujos quanto a lama do inverno.

A rua fez história no bairro do Miramar, especialmente pelas personalidades ímpares que a habitavam, no seu curso mesmo ou ao seu derredor. As tais personalidades traziam um colorido especial ao bairro que as abrigava. Ali, sonhavam um militar do exército, reformado, que tratava seus filhos da mesma forma que seus comandados no quartel, pai de Alexandre Toletinho e Vinícios Agulha Negra; Seu Luiz, barnabé que passava suas tardes, meio depressivo, a jogar xadrez sozinho, quando muito acompanhado por um outro morador, este conhecido como o mais popeiro do bairro; e o Sêo Olívio, também barnabé aposentado, mais grosso que papel de embrulhar prego, ficava a contar à meninada “histórias” das onças que caçara na juventude no sertão da Paraíba.

Tantos e tantos personagens que, se observadas suas vidas com uma pequena lupa, dariam grandiosas novelas e os melhores romances, dado suas interessantes personalidades. Como esconder da história o Cachimbo Eterno e sua imensa prole, o sacristão, Sêo Martorelle, Aurélio, Alexandre Zé Mocinha, Dedé e Lulu. Até cunhado de governador ali morava, o Sêo Luiz Guimarães, que teve seu filho Paulinho morto covardemente nas praias de Cabedelo; Sêo Erasmo, pai de Erasminho e Lauro; um empregado da Brahma e sua camioneta sempre limpa; os pais de “vovô Miguel”; e os pais de Pinto, cabeludo meio subversivo que gostava de tomar umas e outras e que não dispensava seu violão.

Quase como satélites, porque moradores em ruas vizinhas, os irmão Albeluso e Nélio traíra, Temir, os Piolas, Marcos bueiro, Aldírio, Nório de Nórdio, Sérgio Bilandarino, Nego Írio, Raul Boçal, entre outros.

Mas, aqui quero registrar um deles que, propositadamente, apenas mencionei o nome até este momento: Sêo Maurício. Cacau, para os mais íntimos, distinguia-se, desde muito jovem, pela sua espetacular careca. Casado com a digníssima e querida Dona Lígia, teve quatro filhos: Carlos Alberto, o gordo “Carlo” ou Carlinhos; Emília, a Milinha; Saulo, o pequinês, e Maurício Filho, o Mauricinho.

Sêo Maurício, gerente de um banco estatal, marcou toda sua vida de bancário pela seriedade com a coisa pública, pela probidade e pela humildade que o caracterizava. Como gerente do banco, não se conhecia um só cliente que tivesse dele qualquer mágoa. Foi responsável por grande parte do desenvolvimento da cidade de Guarabira, enquanto gerenciava a agência do BNB local, tendo optado pela capital, posteriormente, para melhor educar os filhos.

Mas, aquilo que melhor o definia como homem era sua espetacular personalidade. Afável, gentil, cortês, calmo e agradável. Homem bom, marido exemplar e pai dedicado, educou seus filhos com dignidade e retidão de princípios, tendo a absoluta e imprescindível presença daquela mulher forte, decidida, que esteve e continuará presente, por muitos e muitos anos, a servir de arrimo e pilastra mestra na construção daquela família, hoje já acrescida dos muitos netos.

Mas, o “instantâneo” continua a mostrar uma cena interessante para aqueles que tiveram o privilégio de ser fotografados naquele tempo. Sêo Maurício, ao chegar do trabalho em sua rural no final da manhã, convocava todos os pirralhos presentes, filhos ou não - aqui me incluo, para meu deleite - a fim de lhe aplicarem, por alguns minutos, e com os dedos dobrados, alguns cascudos e cafunés diretamente em sua careca, uma ou outra vez devidamente recompensados com algumas moedas distribuídas entre todos os participantes.

E vejam a clareza da fotografia: na sala, quase deitado em uma cadeira de balanço, camisa aberta, cabeça recostada, mãos cruzadas sobre o peito, Sêo Maurício relaxava em poucos minutos e entrava em sono profundo, a ponto de roncar baixinho, permitindo a fuga de todos às molecadas de sempre.

Bons tempos.

Sobre o Autor

Leopoldo Viana Batista Júnior: Cronista.
Autor do Livro: Estrada de Barro para Ladeira de Pedra.
Advogado da CAIXA em João Pessoa/PB.
Professor Universitário e Ex-Conselheiro Estadual da OAB/PB.


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