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Nova Consciência e Êxtase

por Rubens Shirassu Júnior *
publicado em 02/10/2004.

Ao ouvir a voz do poeta recitando seus próprios versos, no filme Assombração Urbana com Roberto Piva, me levou a olhar São Paulo com outros olhos, rompendo a lógica imposta pela realidade. O maior desafio superado pelo filme de Valesca Dios foi, portanto, fazer com que as figuras poéticas de Piva ganhassem força com imagens em movimento. Em todo o filme, a poesia é mantida nesse patamar, das coisas sagradas, "no mais alto grau do espírito humano". - diz João Silvério Trevisan, amigo do poeta, em emocionado depoimento sobre a sua relação com a poética piviana. O filme caracteriza Piva, em um paradoxo, como poeta ao mesmo tempo muito conhecido e, estudado até nos Estados Unidos, porém pouco divulgado e insuficientemente valorizado no Brasil. Ainda hoje tido como marginal, fora do eixo das grandes editoras e nunca discutido pela academia.

A associação de Piva ao surrealismo, embora correta, pela presença da imagem, não pode esconder uma característica evidente: o uso da nomeação direta. Sua extrema concretude poderia até servir para vinculá-lo ao objetivismo anglo-americano, ao poetizar, não um mundo de abstração formal, porém o que está a sua frente e que ele vive. Logo nos primeiros minutos do filme, o poeta nos conta: "Não acredito em poeta experimental que não tenha vida experimental, cuja poesia não passou pelo corpo, pela alma". Isto é, para Piva, vida e obra não se dissociam. Essa característica, evidente desde Paranóia, o transformou no poeta das referências geográficas precisas, desde a "Praça da República dos Meus Sonhos", de 1963, até as Ilhas Comprida, Jarinu e Cantareira de seu Ciclones (recente trabalho de 1997), tanto quanto das suas já notórias declarações enfáticas de pederastia, igualmente modos de manifestação direta, sem rodeio de palavras. Por isso, pela clareza, por ser o grande inimigo do eufemismo na poesia brasileira, e nem tanto pela obscuridade, hermetismo, caráter iniciático e intertexto, é que se explica um esfriamento crítico-acadêmico com relação a sua obra.

Celebrante do não-discursivo, de Eros e do inconsciente, do conhecimento não só intuitivo e supra-racional, mas revelado, Piva também é um erudito. Nele, a espontaneidade coexiste harmoniosamente com a reflexão e a alta cultura. Por isso, sua produção, contém e expressa uma poética, um sistema de valores e um pensar a poesia. No centro dessa poética, a firme convicção de que a poesia mexe/ com realidades não humanas/ do planeta. Em outra epígrafe reveladora de suas intenções, no início de Ciclones, fala do êxtase divino do livre canto. Portanto, a poesia é o lugar onde o paganismo ainda tem voz e expressão. Sua poesia contém ainda, de modo condensado, uma antropologia, ao afirmar que rituais de umbanda e candomblé são o retorno ou modo de manifestação do xamanismo.

Toda a poesia de Roberto Piva poderia confundir-se com uma produção editorial nessas alturas gigantesca, valorizando modos do conhecimento revelado e os meios de chegar à experiência mística, não fosse inteiramente regido por valores poéticos: o rítmo, a condensação e precisão, a prosódia, e, em especial, a imagem, o traço distintivo de Piva (como poucos na poesia brasileira do século 20 e até a presente data), resultando em versos onde justifica tudo o que possa ser dito sobre marginalização de poetas rebeldes e transgressores. Dá razão ao seu discurso ao apostrofar a dissociação burocrática entre poesia e vida, em Ciclones: "Quando nossos/ poetas/ vão cair na vida?/ Deixar de ser broxas/ pra serem bruxos?"

Sobre o Autor

Rubens Shirassu Júnior: Designer artístico, jornalista e autor entre outros de Religar às Origens (Ensaios, 2003) e Oriente-se: Manual de Procedimentos no Japão, 1999.
É o autor da coluna OLHO MÁGICO na VERDES TRIGOS.

Contato: jrrs@estadao.com.br

Veja também o "ORIENTE-SE: Manual de Procedimentos no Japão"
Edição Independente de Rubens Shirassu Júnior
Site do Livro: http://www.stetnet.com.br/orientese/

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