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Bovino
por Conrad Rose
*
publicado em 21/07/2004.
Nos dias que se seguiram, trouxe latas perfuradas que viraram luminárias sustentadas por galhos de bracatinga. Também querosene, machado, esteira e manta. Era outono. Panela e chaleira; talheres e mantimentos. E um álbum de retratos, sua única lembrança física dos pais.
Ornava diariamente o sepulcro com as mais belas e diferentes flores dos arredores. Para economizar reza, contornou-o com pedras e ostentou ali a mais querida foto dos ascendentes. Compôs um mausoléu por fim. Ausentou-se numa tarde para providenciar muito mais comida, centenas de velas das mais sortidas cores e tamanhos. Um terço, pão e vinho. Uma imagem de São Sebastião e outra de Nossa Senhora Aparecida. Uma bíblia sagrada.
Jaime perdera os pais num ganancioso embate no garimpo. Porém, aquilo acelerara-lhe a herança aos treze. Pepitas escondidas que o garoto carregou ao sair fugido. Se fosse um pouco mais velho talvez os hormônios atrapalhassem, mas Jaime preencheu-se de responsabilidade de tal maneira, que jamais tornou a trabalhar na vida. Mesquinho, tampouco compartilhou seu coração. E desconhecia sexo.
Até que resolveu se esquivar definitivamente do mundo. Na clareira de seus delírios fincou os pais na sepultura como outrora não pudera. Improvisou um altar com tocos e na mistura água/terra modelou e retocou. Orgulhava-se do zelo. Amava-se-lhe. Um terço por dia. Cultivava e melhorava o local sem parar. Catava mudas e frutos.
Alimentava-se somente como ofício para continuar vivo, vara seca que era e, por saber da dor e da importância da sua verdade, resolveu criar uma própria. Calejou mãos, pés e joelhos. Fez-se apenas de suplício doravante.
Demorou para as velas acabarem, mas chegou o dia...
Jaime procurou novamente um comércio nas cercanias, reabasteceu-se de luz e conheceu Márcia, cujo nome só soubera indiretamente, e quase pôs tudo a perder. Cogitou ter companhia. Viu-se próximo do que mais precisava se distanciar. Este medo comumente manifestava um desejo cruel a todas que – por lapso – sorria descuidado. Estas, normalmente lhe retornavam. O putrefato jovem tinha neste sorriso denso seu único contato com a luxúria; e intimista, ejaculava-se ao recordar.
Márcia presenteou-lhe com um sorriso maroto de dentes ávidos, sardas, imensos olhos azuis, nariz ereto e boca rosa; instigou-o com pequenos e pontiagudos seios semi-ocultos, cabelos negros ao ombro e maneiras etéreas; bondade e receptividade. Jaime passou-lhe uma lista e absolutamente nada falou, pagou-a e percorreu o corpo da moça com os olhos. Ela desviou-lhes estritamente o necessário, providenciando-se-lhe propostas. Dominado por sua impotência, ele findou a ocasião dando-lhe as costas e gozou pelo caminho. Ela prometeu avançá-lo na próxima, ocasião que jamais acontecera.
Jaime – tomado por melancolia profunda – começou a preparar sua cova. A lembrança da morte dos entes foi-lhe consumindo desorganizadamente. Estabeleceu sua providência ao lado dos pais, prostando-se numa cama esburacada à Terra, e precavido, guardou sua última pepita abaixo de seu colchão de folha de bananeira. Orou para morrer dormindo e solicitou com fé que Deus o livrasse do infortúnio da morte horrenda - como a antes testemunhada ou a provinda de famigerado animal. E esta – conforme os pedidos – alcançou-o ao relento, ajudada pelo frio, para enfim cicatrizá-lo.
Sobre o Autor
Conrad Rose: Conrad Rose é um escritor paranaense que observa o comportamento humano e brinca com sua paisagem. Atualmente ministra oficinas de criação literária em Santa Teresa, bairro do Rio de Janeiro.Email: conradrose@hotmail.com
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