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A novíssima arena de experimentação literária

por Luis Eduardo Matta *
publicado em 04/06/2004.

A crescente difusão da Internet como um veículo ímpar de comunicação e informação vem, nos últimos anos, operando uma mudança significativa nos padrões de comportamento da parcela mais esclarecida da sociedade, influindo não somente na forma e na velocidade como os fatos são assimilados, como também na própria relação das pessoas com o seu meio. Por conta do seu caráter inovador, da sua formidável capacidade de driblar regulamentos e penetrar mesmo nos ambientes mais fechados com o intuito de subvertê-los e das ilimitadas possibilidades de uso e alcance, ela tornou-se uma arma poderosa e, muitas vezes, capital contra a arbitrariedade e a ganância de governos e grandes conglomerados, historicamente habituados a manipular e distorcer fatos e estatísticas em nome de interesses inconfessáveis. Um exemplo que ilustra bem esse argumento é o recente escândalo das torturas perpetradas pelas tropas lideradas pelos Estados Unidos no Iraque, cujos relatos e imagens aterradores só puderam vir à tona com o impacto devido graças à Internet, já que, por livre iniciativa, uma significativa parcela da grande imprensa norte-americana – ainda à mercê da selvagem onda patriótica deflagrada pelos atentados de setembro de 2001 – hesitaria bastante em fazer as denúncias espontaneamente, por medo de represálias do governo ou, simplesmente, por acreditar que a revelação ao mundo de tamanha barbárie cometida por um país que se vale da reputação de bastião supremo da democracia para legitimar a sua hegemonia global, atrapalharia a já alquebrada guerra contra o terrorismo, atraindo ainda mais a antipatia do mundo contra os americanos e, conseqüentemente, expondo-os a novos ataques.

Alguns acham exagero falar em revolução, talvez movidos pela crença de que as revoluções são sempre ruidosas, súbitas e drásticas, mas há um inegável componente revolucionário no papel da Internet, que vem se manifestando aos poucos com resultados interessantes e surpreendentes. Um dos mais visíveis atualmente, pelo menos no Brasil, é o fervoroso debate levantado em torno da novíssima Literatura, a dita “geração 00”, muito intimamente ligada ao universo cibernético em todas as etapas da criação literária, desde a concepção dos textos até a sua difusão através de blogs e e-zines. É justamente o ineditismo dessa empreitada, possível graças a uma notável tecnologia ainda muito recente e sem paralelo em toda a História humana, que a torna tão interessante e estimulante. Com a Web, autores que pelos meios convencionais teriam chances reduzidas de se expressar, estão conseguindo publicar seus textos, auferir algum renome, estabelecer um canal de comunicação com leitores e outros escritores e, o que é mais importante, experimentar linguagens e estilos num ritmo vertiginoso, oferecendo uma perspectiva inteiramente nova para a Literatura e o próprio exercício da escrita.

Não quero discutir aqui a qualidade do que é publicado na Web, mesmo porque se trata de um suporte ainda incipiente cujas possibilidades não foram totalmente exploradas. É verdade, porém, que muitos dos textos disponíveis on-line atualmente são de má qualidade, para dizer o mínimo. Há um fluxo interminável de sites onde predomina o exibicionismo adolescente, a baixaria nonsense, a falta de criatividade e uma acentuada “verborragia umbilical”, muito em voga atualmente, de gente que pouco ou nada tem a dizer de original, sem falar nos incontáveis atentados à língua portuguesa, reflexo de uma geração pouco letrada, assumidamente avessa às regras mais elementares de grafia e sintaxe, com um notório desprezo pelos livros e que leva a coloquialidade da fala a graus extremos em nome de uma fajuta noção de modernidade. E quando, conjugado a tudo isso, existem ambições literárias, instaura-se o grande desastre que leva uma considerável parcela do mundo editorial e acadêmico a ainda torcer solenemente o nariz à produção da Web, generalizando-a como um reduto de amadores ridiculamente pretensiosos.

É uma besteira, aliás como toda generalização. A Internet está longe de ser a grande culpada pela apatia cultural de hoje; apenas, vem tornando mais visível um universo real que permaneceria em silêncio caso ela não existisse. E, nesse universo, predominantemente inculto, frívolo, banal e vazio, brotam ilhas de excelência e efervescência criativa e é nesse ponto que eu quero chegar. Sou absolutamente isento para falar sobre Literatura na Internet. Nunca tive um blog meu. Sou jovem, escrevo livros há mais de dez anos, nunca utilizei a Web para publicar textos literários, sempre preferindo o suporte tradicional em papel e só vim a conhecer pessoalmente alguns poucos escritores de blogs, ainda que sem maiores intimidades, muito recentemente, por pura casualidade. Mesmo assim, sem tomar parte diretamente desse universo, passei a acompanhar com grande interesse a sua evolução. Desde o ano passado habituei-me a visitar alguns blogs e revistas eletrônicas regularmente, a me informar sobre as discussões existentes no meio, a me surpreender com a qualidade e o profissionalismo de algumas iniciativas – como o projeto Paralelos, que desde o ano passado reúne em suas páginas os representantes da nova Literatura carioca revelada, em grande parte, na Web e a editora Livros do Mal, criada por três jovens escritores gaúchos, colunistas do extinto e célebre e-zine CardosOnline – e a minha impressão tem sido bastante positiva. Tanto pelos resultados até aqui alcançados, como pelos caminhos que podem ser abertos daqui por diante. É todo um mundo novo e desconhecido que ainda está por ser desbravado.

Cabe a pergunta: se os autores não contassem com as facilidades da Internet, eles teriam fôlego e criatividade suficientes para escrever da forma como escrevem? É difícil responder com precisão, já que enveredaríamos pelo terreno nebuloso das hipóteses, mas a resposta mais provável acho que seria não. Por três razões que julgo fundamentais: a primeira é que, sem o canal de publicação oferecido pela Web, muitos autores não teriam estímulo suficiente para escrever, preferindo se concentrar em outras atividades que lhes rendessem algum retorno, ainda que meramente emocional; ou se escrevessem, o fariam de outra forma e com outra linguagem e o texto iria parar, quase invariavelmente, no fundo de alguma gaveta; a segunda é que, uma vez não tendo a Literatura como fonte de sustento – pelo menos não ainda – muitos desses escritores exercem outras atividades, muitas das quais – como o jornalismo, só para citar a mais óbvia – os levam a passar horas diárias diante de um computador o que lhes permite, de vez em quando, publicar um post novo sem que o chefe e os colegas se dêem conta; a terceira razão é a possibilidade que a Internet abre para a interatividade, tanto com leitores como com outros escritores; a troca de informações e experiências, nesse caso, pode ser extremamente enriquecedora e desembocar na formação de uma espécie de rede, coisa que aliás já vem acontecendo – vide a barra de links amigos e recomendados encontrada em diversos blogs. Além disso, há sempre a esperança que muitos aspirantes a escritores nutrem de serem descobertos pelas editoras através da Internet, que serviria, portanto, também como uma vitrine privilegiada de escritos, possível de ser apreciada de qualquer parte do mundo. Essa descoberta, felizmente, tem acontecido e alguns autores vêm conseguindo publicar no papel graças à repercussão dos seus blogs.

A despeito dos êxitos alcançados, há alguns desafios que precisam ser superados. O maior deles é a conquista de leitores, um histórico problema brasileiro, que ainda não foi enfrentado com a competência e a seriedade necessárias e cuja solução está, principalmente, dentro das salas de aula (leiam o meu artigo "Formando Não-Leitores", publicado em dezembro de 2003 neste site, para maiores esclarecimentos). Não só os blogs ganhariam com isso, como todo o mercado editorial e jornalístico, sem contar, obviamente, o próprio povo que veria se abrir diante de si um universo infinito de possibilidades. Há também a questão da consolidação da Internet como um suporte devidamente respeitado de leitura e publicação, coisa que ainda não aconteceu, mas que parece estar a caminho. Um escritor que deseje ser reconhecido, ainda precisa ter os seus textos publicados no formato livro o que é natural, se considerarmos que a revolução dos blogs tem menos de dez anos o que, em termos históricos, representa muito pouco. Nesse último caso, o melhor a fazer é continuar escrevendo e postando, aprimorar os textos cada vez mais, persistir e esperar. Nenhum espaço hoje parece oferecer um painel tão abrangente sobre a nova produção literária brasileira do que a Web; mas, mesmo assim, ainda é prematuro fazer prognósticos sobre o avanço ou não da Literatura on-line. Talvez nada mude e o livro tradicional continue a prevalecer, mas, o certo é que uma nova maneira de se fazer Literatura foi criada; e isso, para o bem ou para o mal, já constitui uma reviravolta irreversível que afetará cada vez mais os escritores em todo o Ocidente, influenciando decisivamente os rumos da prosa daqui para a frente.


Nota da Verdes Trigos:

O presente Artigo foi originalmente publicado no Digestivo Cultural e gentilmente cedido pelo Autor para publicação na Verdes Trigos.

Sobre o Autor

Luis Eduardo Matta: Luis Eduardo Matta nasceu no Rio de Janeiro em 1974. É autor de romances de suspense e espionagem. Sua estréia na literatura aconteceu em 1993, com "Conexão Beirute-Teeran", uma narrativa policial ambientada no pós-guerra do Líbano, com prefácio de Mansour Challita. "Ira Implacável" é o seu segundo romance. Site oficial: www.lematta.com

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