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Hotel I : só para dormir

por T.M. Castro *
publicado em 12/09/2007.

Finalmente, uma sala de informática. Após deambular três dias à cata de computador disponível em casas de informática, cyber-cafés, até no comércio de objetos para aluguel, sem sucesso, calhou que encontrei vaga em um hotel decente e mudei-me do “só pra dormir” em que me encontrava, e, pronto, tudo resolvido.

De fato, incautamente viajei para esta praiana Fortaleza desapercebido de reserva hoteleira. O serviço de turismo no aeroporto discretamente me taxou de incauto, a cidade nesta época está sempre lotada, não há vagas. Bem, só pra dormir, ofereceu-me um, um pouco distante da orla, um frugal café da manhã, um quarto com banho, só pra dormir. Chamemo-lo de “Hotel da Praça”, ficticiamente. Tomei a instalação entusiasmado pelo bom preço e pelo convencimento de que, de fato, um quarto limpo e com banho era o quanto bastava, pois a cidade estava lá fora, a praia, o exótico comércio, tudo aquilo que enche a cabeça do viajante em uma cidade tão colorida, tão sol, tão mar,tão vida exterior como Fortaleza.

Preenchida a ficha de hospedagem na recepção, o vão da escada que levava aos quartos nos dois andares superiores, recebi aquelas chaves que pareciam próprias para as portas de uma medina, de tão antigas e oxidadas. Esperei um mensageiro para me ajudar com a bagagem e recebi um sorriso: “Não temos, mas quando folgar aqui eu mesmo as levo”. Obrigado, agradeci, não carece, eu mesmo faço, estão leves.

Eram quatro horas da tarde. Cansado, procurei um banho restaurador e, de fato, afora o fato de a água ser ou muito quente, ou muito fria, a providência foi eficaz. Bem, as toalhas ásperas, ríspidas, exalavam um cheiro de assepsia que dava segurança ao usuário, embora fosse, ao mesmo tempo, um lembrete chega pra lá de que você era mais um a ser por elas surrado, raspado, enfaixado.

Após o banho, que julgava restauradora providência, sentei-me próximo à janela, de onde se descortinava uma rua lateral tomada por pequenos comerciantes. Àquela hora, as pequenas lojas já encerravam suas atividades, acendiam-se as lâmpadas da iluminação pública, e, pequenas falhas no serviço aqui e ali davam ao logradouro um lúgubre aspecto; havia um bar ainda em movimento ao fim da ruela, mas, pelo cenário geral, sou de jurar que ao final de seu expediente um bêbado restaria atravessado, ao solo, por entre suas desorganizadas cadeiras. Da janela, divisava o campanário e parte do telhado de uma antiga igreja, a do Rosário, e pedaços da uma vez belíssima praça que a circundava. Seria a antiga Fortaleza. Facilmente encontrei poesia naquela circunstância. A etimologia da palavra “poesia” indica o grego e o verbo criar e vi que é possível se estabelecer aquele pulsar mágico mesmo quando a matéria base do criar é a decadência rude; talvez aí haja até mais arte, pois não é duro criar sobre a sublime decadência, a dos velhos filmes italianos, o velho castelo, as taças de cristal em jogo incompleto, cortinas brancas, esvoaçantes e esgarçadas... aí é, parece, fácil, dei-me a filosofar, pois nada mais via a fazer diante do sinistro de minha geografia do momento.

Cheguei a pensar em vestir-me para dar uma circulada pela orla; um táxi rapidamente me levaria a algum lugar. Abri a porta do apartamento para sondar os sons do hotel. A parca iluminação do corredor, arandelas sem os bulbos, dava ao interior do hotel um aspecto também de esmorecimento, de fim de dia, de lúgubre enfermaria, que me desanimou a qualquer movimento alternativo: permaneceria entre muros.

O frigobar dispunha das mesmas garrafinhas sonolentas de todo lugar; um saquinho de castanhas vencidas e uns amendoins que nada tinham de torradinhos não me convenciam a uma happy hour, mormente porque in solitude. Mesmo assim, tomei duma garrafinha de cerveja e me pus a bebericar e a rever toda minha circunstância.

Ora, aos cinqüenta anos, decerto bem empregado, podia me dar ao luxo de visitar os pontos exóticos de meu país. No Nordeste, meu imaginário era frívolo e saltitante: via sol, sal, céu, cores, águas, peixes, frutas, mercados ainda com sabores árabes e africanos. Também não excluía a frondosa expectativa de encontrar uma lépida nativa, bem ao ponto daquelas que os jornais deploram como de preferência dos estrangeiros, de blusas brancas, saias de cores, leves sandálias.

Bem, dos trinta aos cinqüenta, todos que viajam têm em aventuras que tais um dos escopos da viagem. Não adianta exigir diferente com sólidos argumentos sociais. Faz parte da natureza humana conhecer novos seres de novas terras e produzir novos genes e etnias. Contenham-se as manchetes em proscrever os crimes, aí, tudo bem... mas há idades em que as coisas simplesmente se impõem e se repetem licitamente neste velho mundão, apesar da escandalosa imprensa. Por que não comigo?

Cada idade tem seu escopo de viagem: os pequenos adoram viajar aos avós para ver os primos, os sítios onde se aboletam toda uma infernal petizada; os adolescentes ginasianos amam as danças e clubes noturnos quando em viagem... interessam-lhes colecionar flirts, as amigas dos primos, as primas, por aí vão: os recém-adultos, de vinte e cinco a trinta e poucos, dão-se em viagens quer para folgarem à guisa de congressos universitários, profissionais, ou para neles exibirem suas lideranças nas áreas escolhidas ou ainda para inaugurarem seus novos aparelhos eletrônicos, lap tops, chips etc. Também aí se incluem os congressos promovidos por instituições religiosas. Nessa idade, abunda a mística. Depois vem a idade dos lobos, trinta e poucos a cinqüenta e poucos. Aí, o objetivo é a busca do tempo perdido, é aproveitar os últimos dias de Pompéia, é se desamarrar do casamento recém-desfeito, é o expor-se como experiente operador em um mercado ávido por rápidos lucros, pois o tempo urge. Depois, de sessenta para diante, que bom rever os familiares, ou vamos, amor, bem, querido, até a Terra Santa. Mamãe foi a Fátima com papai, ainda estavam bem de saúde, lembra? Come-se muito bem em Portugal e que maravilhas, os doces egípcios.

Certo é que adiei por mais uma noite meu pulo de lobo. O ambiente do hotel deu-me tal nostalgia, tal lundu, que me empanturrei de cervejas e pedi à portaria me providenciasse uma pizza tipo Entrega Rápida, ou Delivery no português moderno.

Bem, o “só pra dormir” poderia servir para tudo, menos para isso. O condicionador de ar tinha tal barulho que me impedia conciliar qualquer cochilo. Reclamei e fui atendido com um ventilador substituto. Este superava aquele em barulho e ineficiência. O porteiro noturno, metido a engraçado e a íntimo, tipo “meu camarada” pra cá e pra lá, não se conteve na máxima de ser melhor perder o hóspede do que a piada e soltou a pérola: “Deixe os dois ligados que um elimina o barulho do outro”. Fervi, mas sorri, não dei recibo.

Dia seguinte, bem cedo, dez horas, sonolento, fugi para as praias. Tudo muito bom. Logo e logo estava de conversas com a charmosíssima nativa da barraca ao lado. Não perderia aquele biscuit artesanal por nada. À noite, nos encontramos e assim no dia seguinte e as coisas estavam muito bem, menos por um ponto: para uma conversa mais íntima, um martini seco, coisas do gênero, urgia um ambiente vaporizado, finos lençóis de percal italiano, coisas outras que não o “Hotel da Praça”. Envergonhado por não poder anunciar onde me hospedava, faltei ao encontro seguinte e a perdi de rumo. Eis para o que serve um “só pra dormir”.
Bem, tive de agüentar três dias até surgir vaga neste moderníssimo quatro estrelas bem na orla, dispondo de todo serviço, inclusive de informática disponível aos hóspedes. Sinto-me de volta ao mundo.

Do “só pra dormir”, guardo a lembrança de três noites passadas em barricada de guerra; de nostalgia ao repassar na imposta e invencível vigília os deslizes que cometi na vida, meus insucessos, inclusive meu mal vivido casamento recém-findo; fome, calor, pernilongo. Salvou-me do suicídio a certeza de que havia um lá fora, um exterior, um lugar buliçoso, longe daquela praça e daquele Hotel.


Fortaleza, setembro de 2007

Sobre o Autor

T.M. Castro: Temístocles Mendonça de Castro – é formado em Direito, lecionou em Faculdades, foi Promotor do Júri, Procurador de Justiça, Procurador do Cidadão, e hoje está aposentado. Vive entre Alexânia, GO, e Brasília, DF. Um texto seu já foi publicado no site messageinabotou, de Brasília.

Contato com o autor por email: temisbsb@terra.com.br

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