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Escrever bem é um dever moral

por Chico Lopes *
publicado em 15/03/2004.

Embora a literatura brasileira tenha Machado de Assis, Guimarães Rosa e Clarice Lispector, aos quais é infalível que retornemos sempre para releituras, confesso que nenhum escritor brasileiro me atrai tanto neste aspecto quanto Graciliano Ramos.

Releio Graciliano para me purgar de um monte de leituras distraídas, indiferentes, escapistas etc que pratico devido ao vício de nunca me separar de livros. Reencontro nele uma coisa que, para mim, é essencial: enxugar, enxugar, podar, deixar que do imenso cascalho palavroso emerja a pepita necessária de expressão e verdade. Revejo essa prática como espelho de uma integridade ascética invejável.

Literatura é amor à verdade, ao substantivo preciso, à nudez última da alma humana. Claro que a legião de subliteratos, maus escritores e meros oportunistas fazedores de livros que habita este país não pensa nada disso e continua a produzir porcaria otimista, de acordo com o apetite da massa pelo lixo espiritualóide que estiver em voga. Mas gente como Graciliano estará lá, fundamental como sempre foi, quando toda esse esgoto cor-de-rosa acabar.

Curiosamente, o Graciliano sempre citado é o dos romances. Os contos de "Insônia", por exemplo, são pouco lembrados, como se fossem manifestações apreciáveis, mas menores, de seu gênio. Mas me parecem muito subestimados. A densidade do escritor também está ali, toda ela.

"Um ladrão": entranhas da injustiça brasileira

Graciliano é um escritor viril, se é que se pode usar este adjetivo para um criador literário sem provocar confusões e mal-entendidos. Não se trata, é evidente, de viril no sentido de machão. É viril no melhor sentido espiritual: tem o heroísmo de um artista diante do Destino, da brutalidade inexorável da vida, lidando com a realidade de modo corajoso e intransigentemente honesto para poder espelhá-la fielmente. É curioso que, nessa senda, o escritor acabe tendo uma atitude que, ainda que ele seja um ateu confesso, a finalidade se pareça com a de místicos ascetas.

A virilidade de Graciliano repousa no vigor com que escolhe palavras, deixando de lado as que de fato não importam para a sua mirada ascética. Conta-se que, revisor de um jornal carioca, queixava-se muito das porcarias sub-literárias que lhe eram confiadas. Todo mundo sabe o que é isso - artigos de loas, cheios de "enaltecimentos" (na verdade, meros puxa-saquismos a gloríolas da hora, "doutores" e outras brasileirices sórdidas), escritos abaixo de ginasianos sobre datas festivas etc. Graciliano ficava furioso com aquelas frases estúpidas, alambicadas, adjetivos falsificadores, embelezamentos subservientes. Uma vez, quando ele não se encontrava por perto, alguém deu uma olhadinha xereta num texto que estava revisando. Era uma daquelas porcarias típicas que se escreve no Natal. O xereta viu lá uma canetada furiosa de Graciliano sobre um trecho em que se dizia "bimbalham os sinos": "Bimbalham os sinos é a p...q...p...!!!"

Palavra, para ele, não era coisa com que se brincasse. Ele sabia que pode se erguer todo um estudo preciso do caráter pelo tipo de texto apresentado por um ou outro homem. A escolha de adjetivos e superlativos quase sempre revela hipocrisia interesseira - basta ver os terríveis vícios de retórica e eufemismos da classe política, por exemplo.

Andei relendo os contos de "Insônia". No conto que lhe dá título, tem-se as lembranças dos delírios de Luís da Silva em "Angústia". Não há um personagem em ação: há um estado de espírito comum nos escritos do romancista - o da consciência que não encontra repouso e observa atenta, lúcida, impiedosa, um mundo escuro, muito escuro. A hostilidade desse mundo não é aplacada por nada e o sono não vem.

"Um ladrão" é uma pequena obra-prima. Vale por todo o livro. Conferir aí toda a arte de Graciliano ao compor um personagem que é o melhor retrato do coitado brasileiro, à margem de tudo. Ele entra numa casa para roubar, mas a arte do furto não é coisa que domine, se perde, vê uma moça bonita dormindo e, através de uma série de associações com a lembrança de uma menina que desejara na infância, será traído por um impulso: vai beijá-la. É bem um ladrãozinho qualquer, um dos muitos sujeitos humilhados até o pó nas entranhas de uma sociedade cuja injusta desproporção social jamais foi alterada por governo algum, de direita ou esquerda. Mas a questão com Graciliano não é se deixar levar pela compaixão: a lucidez tem que permanecer soberana.

Não há saída, num país cheio de mentiras (as literárias e todas as outras), a não ser procurar livros assim.

Sobre o Autor

Chico Lopes: Chico Lopes é autor de dois livros de contos, "Nó de sombras" (2000) e "Dobras da noite" (2004) publicados pelo IMS/SP. Participou de antologias como "Cenas da favela" (Geração Editorial/Ediouro, 2007) e teve contos publicados em revistas como a "Cult" e "Pesquisa". Também é tradutor de sucessos como "Maligna" (Gregory Maguire) e "Morto até o anoitecer" (Charlaine Harris) e possui vários livros inéditos de contos, novelas, poesia e ensaios.

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Francisco Carlos Lopes
Rua Guido Borim Filho, 450
CEP 37706 062 - Poços de Caldas - MG

Email: franlopes54@terra.com.br

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