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O deserto no caminho do contista

por Chico Lopes *
publicado em 19/11/2003.

Tenho uma convivência já de uns dois anos e tanto com Ronaldo Cagiano, contista nascido em Cataguases (MG) e que reside em Brasília. Como o conheci? Através de outro contista, Gil Perini, de Goiânia, que, por ocasião do lançamento de Nó de sombras, me falou dele.

Tempos depois, num suplemento cultural de Goiânia, Cagiano escreveu sobre meu livro, generosamente, parecendo ter entendido o que eu tentava dizer com aqueles contos - sobre vidas malogradas que se agarram a sonhos dementes, irrealizáveis, para manterem um fio de unidade psíquica.

Fiquei feliz com aquilo, porque nada deixa um escritor tão feliz quanto ser lido de fato. Os muito aduladores, que nos elogiam só pelo simples fato de termos conseguido publicar um ou dois livros - não se importando com a qualidade, mas com o status que o objeto livro supostamento confere a um autor (esquecem-se, naturalmente, que a indústria livreira pode ser tão utilitária e banal quanto uma fábrica de sabão) -, não nos deixam senão agastados.

Há certos vazios e hesitações nos olhares que dizem: “Li seu livro, gostei”, que não permitem que nos enganemos. Querer ser amado pelo que escreve é a grande vulnerabilidade do escritor. Ele fica particularmente melindroso com seu “filhote”. É isso que o torna tão patético, tão humano, tão carente e, por vezes - por que não dizê-lo? -, tão chato. Sempre “coruja” com o que gerou, uma mínima crítica pode fazê-lo um inimigo mortal da gente, e isso para toda uma vida.

Há algum tempo, Cagiano me falara de seu livro de contos, Dezembro indigesto, e eu gostara do título. Fiquei feliz quando, mais tarde, ele me disse que o livro vencera um concurso em Brasília e seria publicado. Passaram-se meses - como tudo neste país, adiamentos e mais adiamentos fazem a publicação dos livros passarem de sonho suave a um aborrecimento à la Kafka. Finalmente, saiu. E fui das primeiras pessoas a receberem a edição.

Cagiano conseguiu, para a capa de seu livro, a imagem de um deserto tunisiano, feita por uma fotógrafa italiana (quando lhe disse que a lindíssima Cláudia Cardinale nascera lá, na Tunísia, animou-se mais ainda). É sugestivo, porque o título parece nada ter a ver com a imagem, e, no entanto, acaba-se por entender que alguém tem que varar um dezembro de difícil travessia, como um Saara, um Atacama.

Ademais, é assim que vivemos: no meio de areia e cacto, e, quando gritamos “Água à vista!”, daí a pouco, naturalmente, concluímos que é miragem. Como metáfora, o deserto tem mil funções na atualidade de um país em crise, culturalmente arrasado.

São histórias de quem passa a pão e água e pesadelo. Já disse a Cagiano que esse não é um livro vendável e que seu mérito reside em nunca abaixar o tom do protesto, da raiva e da tragédia: ele é um inconformado com a distopia generalizada que restou do país nas últimas décadas.

Em A ilha invisível, numa Brasília sombria, um passageiro de ônibus deixa escapar um desconhecido que não é ninguém senão Antonin Artaud. Kafka, o próprio, visita Cataguases (e deixa influências, naturalmente, sobre um Rosário fusco). Uma menina de seis anos é estuprada por um membro da família.

Quase nem há narrativas; há gritos, reclamações e, por vezes, o livro é desigual, mas guarda segredos, paroxismos, não condescende, avança em delírios febris e dedos postos em feridas as mais purulentas. Gosto especialmente de Espectro dissonante, em que Cagiano já começa com “Deus é muito longe”. Luiz Ruffato, companheiro de literatura de Cagiano, nascido ele também em Cataguases, diz: “...é um autor à moda antiga, ou seja, alguém que ainda acredita no poder das palavras modificando o mundo”.

Pode ser que Poços de Caldas venha a conhecer logo esse autor. Cagiano quer muito conhecer a cidade, que um dia sua mulher visitou e amou.

Sobre o Autor

Chico Lopes: Chico Lopes é autor de dois livros de contos, "Nó de sombras" (2000) e "Dobras da noite" (2004) publicados pelo IMS/SP. Participou de antologias como "Cenas da favela" (Geração Editorial/Ediouro, 2007) e teve contos publicados em revistas como a "Cult" e "Pesquisa". Também é tradutor de sucessos como "Maligna" (Gregory Maguire) e "Morto até o anoitecer" (Charlaine Harris) e possui vários livros inéditos de contos, novelas, poesia e ensaios.

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Francisco Carlos Lopes
Rua Guido Borim Filho, 450
CEP 37706 062 - Poços de Caldas - MG

Email: franlopes54@terra.com.br

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