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"Corações Blues e Serpentinas": uma caixa de relíquias de Lima Trindade
por Darcy Ladeira Dias
*
publicado em 11/06/2009.
Sigo aqui como testemunha dessas três décadas narradas nos contos de Trindade, vivenciadas entre mudanças e reviravoltas comportamentais. Trindade nasce em 1966, quando já o 68 sinaliza toda uma contestação do segmento jovem, cansado da velharia do pós-guerra e de suas receitas invariavelmente hipócritas e bem-comportadas.
"Corações blues e serpentinas" não é, entretanto, um livro datado em esquemas que não possam se movimentar por mais eixos. As andanças são animadas, como serpentinas que se desenrolam em várias direções. Estar entre os anos 60 e 90 não nos acomoda em linhas estritamente divisórias; um leitor que não vivenciou certos contextos pode perfeitamente se apaixonar por eles, principalmente quando Trindade resgata velhas figuras que ficaram escondidas, ou apagadas, à margem da literatura de pílulas douradas. Justamente por estarem (e serem) à margem é que são interessantes.
O livro, um mimo. Uma caixa de relíquias. Pequenos contos artesanais, ourivesarias. Perfeição do estilo, matéria rica e essencial. Também ilustrações naturalmente desenhadas, despidas. Provocam meu olhar dois nus masculinos abrindo o belíssimo conto "Anjinho barroco". Espécies de croquis muito limpos em sua espontaneidade, como que imbricados na linha essencialista das narrações. Traços sugestivos de que nus homossexuais não precisam de poses fotográficas estudadas para mostrar o homoerotismo; basta virem despidos, naturalmente nus.
Entre mais encantos, "Corações blues e serpentinas" abre um sopro literário de grande significação para o leitor. Vamos desnovelando os tabus sexuais, deixando de lado os preconceitos contra a homossexualidade. Descubro, nessa temática do proibido, que a sexualidade é tão importante quanto viver, não importa a opção sexual. O que importa é que é real, não é uma anormalidade. Anormal seria negar-lhe a existência, crivando-a de anátemas e rejeições.
Tentar essenciar o que Trindade traz, nesses quinze contos, vai exigir de mim um exercício conciso e bastante difícil. Temo deixar de fora significados que, traduzidos, nos enredam em complicadas teias. Ou nos apaixonamos a ponto de quilométricas análises ou ficamos devedores ao recortar e resumir, na tentativa de alcançar o escritor. Daí que vou correndo o risco de deixar alguns contos de fora, para outra respiração, para mais janelas.
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Nem sempre se exige uma transcendência afetiva entre os parceiros. No "Amor inconsútil" inexiste um peso moral, a cena e a convivência entre os parceiros independem de laços afetivos. A escrita é totalmente desamarrada, seguindo a trilha lançada pelos dois personagens.
Já liberdade e amor aparecem em "Três movimentos para um selvagem desamor". O parágrafo inicial, escrito em grandes cortes com ponto final, sugere um roteiro cinematográfico, ou a rubrica apontada em scripts. Cada palavra, uma frase. Neste conto, Lima Trindade explora vários estilos e sua versatilidade ainda desenha as duas mulheres apaixonadas com grande beleza estética, como duas deusas que se permitem ao amor e ao sexo. Os textos são limpíssimos, sem necessidade de floreios. Percebo que o toque sexual entre as protagonistas descreve uma dança em seu colorido, sua musicalidade e seu erotismo.
O selvagem desamor pode estar ligado à figura de Enzo, um belo homem que Tânia descartou, descobrindo o prazer com Duda. Também descarta, em casa de Duda, substituir a autoridade do macho, descaracterizando a tese do feminismo substituto do falos patriarcal. Trindade descreve duas mulheres se amando, não um macho e uma fêmea. Iconoclasta, o escritor satiriza as bichas-bofes casando de véu e grinalda ("Café com chantilly"). Quanto às historinhas cor-de-rosa, usa de uma linguagem crispada, até mesmo perto do deboche e do sarcasmo impiedoso.
Entro no "Então, é isso", quando o escritor muda completamente de tom. A escrita trabalha com superposição de imagens, deixando o personagem muito à vontade para falar, o que faz entre estados de lucidez e demência, em um tempo deslimite; o ontem pode ser o hoje (eles se baralham) e o que se presenteia pode ser o passado, de igual forma. O personagem, entrado em um delírio febricitante, reconhece-se estraçalhado como o espectro de seus fantasmas. Alternâncias e fusões habitam nosso herói semi-louco, e sua fala vai e volta de um porão mental infestado de ira, nojo e também... amor e beleza. A praça, fisionomia localizada, é o cenário perfeito por onde transitam, param ou moram pessoas arranhadas pela solidão e pelo desencanto. Há um trilo musical diabólico nessas apropriações, nessa descida aos infernos do protagonista, de onde somos cavucados como parte do grotesco dos personagens e da beleza de certos flagrantes.
Fronteiriço entre a demência e a lucidez, o "Então é isso" também nos convida à leitura schopenhaueriana: "Tudo que é belo dói".
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"Lonely?/ Ah, yes/ But it is the flowers and the mirrors/ of the flowers that now meet my loneliness/ and mine shall be a strong loneliness/ dissolvin´deep to the depths of my freedom/and that, then, shall remain my song." (Bob Dylan - "Outlined epitaphis")
A narrativa do conto "A primeira vez" me toca profundamente. Há uma auréola de inocência que chega muito perto da divindade, da infância de alguma coisa. A tonalidade intimista da narração escapa ao solilóquio e ao monólogo no hibridismo de que o protagonista conversa com sua alteridade e com o seu parceiro. Brotado de um aparente silêncio, ele fala com o leitor e, primordialmente, com Lima Trindade.
A escrita intimista de "A primeira vez" é muitíssimo rica, principalmente quando auscultada de dentro da paixão do nosso personagem, iluminado pela beleza do aniversariante que, de repente, o tira para dançar naquela noite, uma noite especialíssima. Uma dança inocente, um beijo na testa de quem se convidou a entrar no conto, no encantamento de ter observado o aniversariante pelo espelho, por onde se protegeu de olhares que poderiam profanizar o momento sublime.
O espelho e o aniversariante fazem lembrar ao escritor a figura contracultural de Kerouac. Para mim, o enigma de Allen Ginsberg, que também poderia estar usando aquele paletó largo e amarrotado de quantas viagens no "On the road". Aquele paletó grisalho como os cabelos do velho beatnik, um homem bonito, tocado pelo buquê de vinho barato, que nos embebeda de paixão por não dizer mais do que queremos.
Imprevisível como o rodopio do paletó cinza, o quanto "era quente aquele paletó oscilando em movimentos de rodopios lentos", o aniversariante deixa o parceiro deslocado no meio da sala. E tudo se distancia, quando todos saem em cortejo para terminar a festa em um bar mais além. Uma estrada por percorrer e que se perde para o nosso protagonista, quando ele se abaixa para amarrar o cadarço do sapato. O momento de distanciamento; o jovem vacila e cai no asfalto, enquanto o cortejo continua, perdendo-se de vista na estrada. "On the road" é também Kerouac, vestido naquele casaco cinza amarrotado, cheirando a vinho, carregando com ele uma multidão de perdidos na noite.
Anjinho barroco
Sobrados encarquilhados pela ação do tempo, sombras, vielas, becos. Grades enferrujadas, prédios que cheiram a mofo e azedo, cães por perto. É noite e a fuga vai tecendo os passos do personagem no conto "Anjinho barroco". Mas eis que uma fresta de porta semi-aberta se oferece à entrada do personagem para que ele medite e descanse. Uma igreja-nave que, mesmo ao adiantado da hora, pode se oferecer aos ofendidos, aos atormentados por culpas e remorsos pelos pesos de anátemas e imprecações.
Nesse útero-mater surpreendo a presença de mais um homem. Tudo indica se tratar de um teólogo. Suas formas são roliças como talhadas para o sagrado entre mais ícones. Ouve-se a voz do consolo, o ombro amigo. E o silêncio é quebrado por murmúrios pelos dois corpos muito próximos. Vem a cumplicidade e os homens deixam o templo, dirigindo-se ao acolhedor sala-e-cozinha do homem de formas redondas. Há também um quarto e objetos desarrumados que lembram solidões. Os dois homens, tocados pelo sagrado, estão também no mundo. No mundano com seus desejos rofanos e encantadoramente sagrados. Uma xícara de café torna-se a bebida dos deuses. E depois do sexo, tecido pelo êxtase de um ritual contagiante, o homem, anjo barroco de formas roliças, entra em transe inebriante, incorporando línguas estrangeiras, enquanto seu parceiro descansa na tranqüilidade dos deuses.
Línguas estrangeiras antigas; seriam o copta, aramaico, etíope, zirieno? Do evenki e do oirate? De todas as línguas do Espírito Santo. Hierofantes que continuam a ecoar os mistérios, as sonoridades, a música divinizada.
O hedonismo segue, exaltando a presença divina.
Essa passagem do conto é belíssima, de uma pureza murmurante e profunda. Ela tece o elo entre o carnal e a alma humanizada. E enquanto se sacraliza o desejo, desssacralizam-se as interdições. O corpo vem em sua inteiridade, na escrita corporificante desse magistral conto de Lima Trindade, ao nascer do sol na manhã iluminada.
"A sexualidade é uma necessidade do ser humano, que tem que ser atendida, e mesmo considerada santa" (Manuel Puig)
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"Quero respirar um desejo qualquer, um tango, um poema, a loucura" ("Queen Sally II" - Lima Trindade)
O transatlântico chegando a Salvador. Movimento que acorda as ruas. As mulheres do "trottoir" aguardam no cais. Belos policiais negros a cavalo. Negritudes. Destaque à negra orgulhosa que gosta mesmo é do negro Caô. Uma bela negra que não gosta de ter sua cor passada em branco...
O encontro com o negro gringo, cabelo curto enroladinho no pescoço taurino, o bigode farto, o marfim dos dentes. A poesia transborda entre os dois. Lima Trindade escreve, do encontro de possíveis banalidades, um vigoroso poema erótico. A ligação entre os dois personagens vem no estilo enxuto, de técnica magistral; uma escrita que faz de Lima Trindade um talentoso escritor na literatura contemporânea, exemplar de perfeição que merece ser laureado.
O sol nasce, entrando no casal de negros, preparando o rito. Ele beijou os pés dela: "Por que então fazer-me Rainha? Um dia o navio partiria..." "Choraram juntos, vestiram-se e não disseram adeus. Na bolsa da negra orgulhosa, alguns dólares". O sol nascendo.
"As cores da alvorada rasgam a couraça da noite" ("Asa Norte")
A prostituta solitária, sob a marquise, olhos carregados de pintura, brinca com as meias. Seu retrato lembra um "portrait" toulouseano.
O homem que a observa, e se sente filiado a ela pelas interdições, olha da janela, esperando que ela se vá. Ele tem a impressão de que ela vai chorar. É quando nosso jovem solitário escuta uma canção. Um homem toca, na sua flauta, os sopros musicais da ópera "Tannhauser", de Wagner, que aos poucos ecoa naquela manhã que desperta. "Tannhauser", a ópera de um jovem perdido pela paixão da Vênus profana, que vai se sacralizar em "amor romano".
Dizem os músicos que Wagner teria inventado o Sol. O mesmo sol que desperta a Vênus calipígia do "Queen Sally II". E que se estende aos amantes do "Anjinho barroco" na divinização do profano. Eis aqui um título: "Todo sol mais o Espírito Santo"...
Sobre o Autor
Darcy Ladeira Dias: * Darcy Ladeira Dias nasceu em Ouro Fino, MG, e reside em Poços de Caldas, onde é professora aposentada. Tem graduação em Português e Francês e suas literaturas e é pós-graduada em Estudos de Linguagem, na Unicamp.< ÚLTIMA PUBLICAÇÃO | TODAS | PRÓXIMA>
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