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A Gramática e o Futebol

por André Carlos Salzano Masini *
publicado em 23/10/2003.

Muitos anos atrás, em meus idos tempos de menino, eu sonhava – como sonhavam quase todos os meninos – em ser craque de futebol.

No meu caso, porém, era um sonho sem esperança. Pois além de grosso – grosso mesmo, desses de dar medo – eu do jogo não entendia nada: nem da tática, nem das regras, nem de nada.

O sonho surgira assim de forma quase etérea, coisa dos ares brasileiros, ou talvez influência de meu tio Evelcor, corinthiano roxo, que certa vez, quando eu tinha 7 anos, levou-me ao Morumbi pra ver um Corinthians e Palmeiras. Da partida pouco me lembro, mas a festa da torcida corinthiana saudando o time que entrava em campo... isso eu jamais esquecerei.

Dali em diante, tornei-me fanático. Comecei a passar as tardes de domingo sozinho no quintal, acompanhado os jogos do Corinthians pelo radinho e chutando uma velha bola de capotão por cima do varal (barreira do time inimigo), fingindo ser o Rivelino.

A emoção que vinha do rádio era indescritível... Não que eu entendesse algo do que estivesse sendo narrado ou do que de fato acontecia no jogo. Não. Eu nem sabia o que era "meia-cancha", ou "intermediária", ou "impedimento"... mas a voz do narrador exprimia uma intensidade tão dramática... uma importância tão grandiosa... que parecia retratar uma batalha épica e sobrenatural, uma batalha mítica entre o bem (o Corinthians) e o mal, travada em alturas gloriosas muito acima de nossa realidade terrena e que ficaria gravada eternamente nas imensidões infinitas.

Nunca haverá no mundo real um jogo que se compare às imagens daqueles jogos, tecidas no ar pelo radinho de pilha.

Mas – à parte o rádio – meu verdadeiro sonho, que era jogar de verdade, esse eu nunca cheguei a realizar; e não foi por falta de insistência.

Incontáveis vezes eu me apresentei, cheio de disposição, em times de rua ou da escola. Mas bastavam umas poucas correrias pelo meio de campo e ataque, que logo minhas deficiências ficavam óbvias... e mandavam-me para a zaga.

E lá ia eu pra defesa sem me queixar; mas também lá me faltavam noções de colocação e marcação. Eu corria pra bola... e o centroavante recebia livre nas minhas costas...

Da zaga, eu ia pro gol, e mesmo lá eu continuava feliz. Esforçava-me e atirava-me como um camicase. Mas também lá me faltava técnica: largava bolas, não sabia sair... e acabavam arranjando um goleiro melhor.

De tudo isso, minha única queixa é ter esperado, ano após ano, que algum professor de educação física na escola me ensinasse alguma coisa (talvez os fundamentos básicos do jogo: chutar, matar a bola, colocar-me em campo)... Eu bem sabia que nunca seria nenhum Rivelino, mas queria aprender um pouco! Era frustrante ouvir de cada novo professor, ano após ano, sempre a mesma frase (com um sorriso condescendente, de quem imagina que está sendo muito bonzinho):

– Eu não vou ensinar ninguém aqui a jogar bola (como se ensinar fosse algo ofensivo). Futebol, já se nasce sabendo. Vamos jogar...

E lá ia eu, mais uma vez, a correr atrás da bola... e a dar-lhe pavorosos bicões toda a vez que a infeliz caia, por obra do acaso, na minha frente... isso quando não era a perna de algum colega...

Não. Eu não havia nascido sabendo.

No fim, felizmente, a deficiência futebolística não fez falta em minha vida, nem para meu sustento, nem para a realização de minha verdadeira vocação, que é observar o mundo e descrevê-lo. Mas agradeço aos céus todos os dias o fato de meus professores de português não terem sido como os de educação física.

Também em português eu tive minhas dificuldades, a começar pela dislexia. Mas meus mestres não foram condescendentes com minha ignorância, nem supuseram que os alunos nascem sabendo... Eles ensinaram... e depois cobraram duramente. Foi graças a isso que eu aprendi.

Por isso é com tristeza que observo hoje a moda de se substituir o ensino da gramática por "interpretações de texto".

Tais "interpretações " são como as peladas de minhas aulas de educação física, inúteis para todos, e frustrantes para quem não trouxe de casa a arte da bola ou da gramática.

Oferecer textos sem antes ensinar gramática faz lembrar meus professores de educação física: "Eu não preciso ensinar ninguém... Futebol, já se nasce sabendo..."

A gramática, como o futebol, é algo concreto, que pode ser aprendido e ensinado. Mas as conseqüências da falta dela são muito mais graves para a vida da pessoa, e para o país.

Sobre o Autor

André Carlos Salzano Masini: André C S Masini nasceu em São Paulo, em 1960. Aos 17 anos escreveu sua primeira história de ficção científica, "Os montes além do deserto", que existe até hoje em manuscrito. Cursou Geologia na USP, e formou-se em 1983.

Hoje tem dois livros publicados: a ficção científica "Humanos" e o livro de traduções e estudos “Pequena Coletânea de Poesias de Língua Inglesa”, além disso tem uma coluna semanal no Jornal "O Paraná", e é diretor de um centro cultural virtual, a www.casadacultura.org, que divulga seus trabalhos e tem milhares de assinantes em todo o Brasil.

contato: andre@casadacultura.org

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