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Complexo de vira-lata

por Noga Lubicz Sklar *
publicado em 08/11/2008.

"Ele escreve seus próprios livros!", afirmo para o meu marido Alan enquanto enumero, entre tantos outros motivos, minha preferência política por Barack Obama. Olho pra ele, ele olha pra mim, e caímos na gargalhada os dois, onde já se ouviu tamanho absurdo, "escreve seus próprios livros"? Uai, gente, não é isso que um escritor faz? Escrever? Mas bem, hum, tudo isso já está no passado, a eleição de Obama, quero dizer, não o mal de um mercado literário onde raros são os escritores que escrevem seus próprios livros, ih, já estou me repetindo, insistindo num estado de coisas que a bem da verdade não deveria espantar ninguém.

Outro dia mesmo a minha nova editora explicava seu trabalho de, hum, editora, me contando que os livros que chegam para publicação vêm completamente crus, com erros terríveis, enfim, impublicáveis. E que depois de editados, imaginem, o autor ainda os altera, isto é, "corrige" a edição, voltando muitas vezes aos erros de antes e por aí vai, euzinha aqui num estado terrível de ansiedade e curiosidade suspensa pra descobrir como é que vai ser comigo (refiro-me à revisão das "Crônicas de Ulysses"), será que o que escrevo é assim também, ruim a um ponto de, além de rejeitado por boa parte das grandes editoras, ainda ter que ser completamente reescrito? A conferir* que se for o caso, prometo confessar pra vocês, mas de volta a Obama que essa coisa de se perder do assunto no meio do texto tampouco está com nada.

Pois foi falando do cachorro prometido à filha que o incrivelmente simpático e aparentemente descomplicado Obama se refere a si mesmo (ih, olha o tempo do verbo aí) como mais um simples "vira-lata", fala sério, nem acreditei quando o ouvi ao vivo, na sua primeira entrevista coletiva, pois é, mas o Globo confirma, foi isso mesmo, e cá entre nós, um vira-lata como ele no poder lava mesmo a alma de muito de nós, vira-latas deste mundo ingrato em busca de um resto palatável de comida, e prestem atenção na ironia, ou melhor, na auto-ironia: é um típico sintoma das muitas mudanças que vêm pela frente, nem sei bem quais, eu mesma confusa à beça, exausta de tantas e tão extremas emoções, sonada pelo jet lag, dormindo de dia e acordada de noite e num estado que me parece perpétuo de sonambulismo ambulante (ih, pleonasmo!) desde que o abençoado candidato democrata alcançou o poder, e ó, vou contar pra vocês que estar lá na terra natal dele, ao vivo, foi destas coisas imperdíveis numa vida, vale os dois dias seguidos de viagem (dois pra ir, dois pra voltar, seis pra ficar) numa poltrona apertada de avião mais a terrível diferença de horário, ah, vale sim, isto é: valeu.

Mas o que não vale é se enganar: numa cultura que vem desprezando a... cultura (e a erudição), num mundo de escritores que não escrevem e leitores que não sabem ler (embora os eleitores, graças a Deus, tenham provado que sabem votar) - somente há dois dias, no aeroporto de Miami, foi que eu descobri, por exemplo, que a lista de best-sellers do NY Times está repleta de fórmulas literárias banais, nada mais distante da verdadeira literatura, coisa que, aliás, hoje em dia eu nem sei o que é - e em pleno contraste com uma Sarah Palin rasinha que nem se expressar verbalmente sem erros de concordância na verdade sabia, Barack Obama é um sujeito inteligente, sofisticado e consciente, preparado e pós-graduado em Harvard, gente, o que não é pouca coisa.

Ficam a partir deste momento, portanto, revogadas as disposições políticas e populistas em prol da ignorância generalizada, e isso, meus amigos, confusa ou não, deslumbrada ou não, numa baita ressaca cívica ou não, já pude perceber. O resto ficou pra depois (de uma boa noite de sono), isto é, sabe-se lá quando é que esse meu precário relógio biológico vai se ajustar depois da maratona eleitoral e familiar havaiana, quando ocorrer, eu juro, vai dar pra todo mundo perceber: serei plenamente capaz de registrar um pensamento complexo em forma organizada de frase, com sujeito, verbo e objeto, proposições, preposições, predicados, temas bem elaborados e demais raridades da língua escrita reabilitados, depois de um tempão enferrujados pela falta de uso. Reparem não.

*elogios sinceros? enviem por favor: para a redação.

Foto: celfoto Noga Sklar: 1º pôr-do-sol da Era Obama em Waikiki, 05/nov/08

Sobre o Autor

Noga Lubicz Sklar: Noga Lubicz Sklar é escritora. Graduou-se como arquiteta e foi designer de jóias, móveis e objetos; desde 2004 se dedica exclusivamente à literatura. Hierosgamos - Diário de uma Sedução, lançado na FLIP 2007 pela Giz Editorial, é seu segundo livro publicado e seu primeiro romance. Tem vários artigos publicados nas áreas de culinária e comportamento. Atualmente Noga se dedica à crônica do cotidiano escrevendo diariamente em seu blog.

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