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Sweets to a sweet

por T.M. Castro *
publicado em 19/08/2007.

Costuma-se observar as rosas quando se passa frente a um jardim. Aquele particular jardim atraía a atenção dos transeuntes, não por causa de seu belo roseiral. Quem passava por ele, ao fim das tardes, mais notava uma senhora de finos traços, cabelos totalmente brancos, a lançar um perdido e enternecido olhar sobre o roseiral; seria aquele roseiral ou outro que freqüentava sua memória?

O transeunte mais sensível tinha vontade de parar e acariciar aquela face sonhadora, aqueles cabelos enevoados. Os mais afoitos diminuíam o passo para reter na retina da memória aquela cena tão... meiga ?.. enigmática...? sonhadora...? sofrida.. . feliz? Ninguém saberia dizer ao certo o que aquela angelical e octogenária fisionomia passava ao observador. Convencionou-se que os anjos são sempre jovens, logo um convencional anjo ela não seria. Os anjos, contudo, nem sempre têm fisionomias tão suaves e bondosas, logo, neste particular, mais que anjo ela seria.

Não seria uma santa; as santas são sempre virgens donzelas; de fato, poucas são as que foram casadas e quando assim, foram rainhas também em vida, sempre mãe de santos ou esposas de algozes.

No caso, tal não acontecera. Dizia-se que aquela enigmática efígie fora uma bela mulher, que casara com um rico e galanteador cavalheiro. Mais se falava de seu falecido marido que da figura em questão, a mulher. Fora ele um bem sucedido comerciante, marido extremamente cuidadoso, pai exemplar e, sobretudo, um galanteador de truz, um colecionador de belas mulheres.

Dizia-se que a esposa era as meninas dos olhos do terrível e perigoso salteador de corações alheios. Seria ela a domadora daquele leão, não, os leões são fiéis no acasalamento, ao que consta; daquele cão, será? não, os cães sempre obedecem a um apelo natural das fêmeas e nem sempre as fêmeas estão em tempos de apelo: dir-se-ia, então, daquela ave de rapina ? não, ao que consta, as aves de rapina extravasam seus estos na rapinagem e são ótimos maridos. Bem, ele era excelente marido, mas guardava-se o direito de ser descomedido na rapinagem de corações, na carniça de corpos, nos ninhos infiéis: era, então, apenas, um homem.

Mãe de oito filhos, sabia a mulher a importância do marido no núcleo familiar. Ah, por conta disso, há um importante detalhe: em que pese a generosa criadagem, o marido jamais se servira à mesa e não comeria se a mulher não lhe fizesse o prato e nada beberia se ela não servisse o aperitivo, o suco, ou o vinho.

Consta mesmo que, quando dos partos, na impossibilidade de ela o atender, ele simplesmente jejuava, comia um frugal pão com queijo, e, à interpelação de filhos ou da criadagem, reagia: “Só como quando Amelinha também puder estar à mesa. Comer é bobagem, comer é festa, por ora estou preocupado com minha mulher”

Por sua vez, a tal santa Amélia (o nome era este mesmo) ,aos primeiros pirões de parturiente, exigia a presença do marido na alcova: “ Você já comeu ? Prove esta galinhazinha” E dava bocadilhos de sua comida ao marido, ao recém-mais uma vez pai. Depois a criada supria-lhe o prato e ela, então, comia com a ajuda dele. Era uma tal troca de fiel cumplicidade no mútuo suprir que poder-se-ia dizer ali presentes a Madona e o castíssimo esposo.

Comemorava o marido o nascimento de mais um pimpolho com um bando de amigos, geralmente num sábado, e com eles saía e só voltava no domingo, aí pelo meio-dia. Dona Amélia (não se trata aqui de nenhuma sugestão do cancioneiro popular), então, diplomaticamente, indagava: “Como foi o jogo ? Faz mal carteado a noite inteira. Vá dormir, deve estar muito cansado com tanta festa, também, não é para menos: a menina é linda.”

O marido agradecia a preocupação e por sua vez exigia das criadas explicações sobre a melhora da parturiente; havia um período de resguardo que durava 30 dias, quarto às escuras, canjinhas de galinha, bolinhos de nata e a tudo ele comparecia, como se de resguardo também estivesse. Na realidade, sem ela, ele não tinha os apetites cristãos apenas de comer, beber, etc. Surgia-lhe, parece, um período de desresguardo por iguais trinta dias.

Certa vez uma comadre, em visita de feminina solidariedade, chegou a comentar com Amélia a ausência do marido, considerando já ser, naquele momento, tarde da noite, pelas 19 horas. Dona Amélia justificou: “Ora, comadre, quem está de resguardo sou eu; ele tem muito que fazer para manter o negócio de pé; você não imagina o esforço que faz.”

Doutra feita, umas senhorinhas mui jovens e alegres não se contiveram diante do, bem, másculo “charm” de seu marido e, ao invés de entabular conversação com dona Amélia para induzi-la a adquirir cartelas de rifa para as “ Obras das Vocações Sacerdotais”, praticamente a ignoraram e, literalmente, deram em cima, como se diz hoje, do galanteador marido, que, sabendo de seu poder de fogo, se mantinha calado e apenas observava o cheiro daquelas glândulas em absoluta ebulição diante dum macho pronto ao ataque, em que pese sua silenciosa postura. Dona Amélia, com um compreensivo sorriso, interveio: “Meninas, a fervorosa católica aqui sou eu; meu marido só ajuda à maçonaria; dêem-me cinco cartelas”.As assanhadas e fervorosas devotas deram conta do vexame e, rapidamente, destacaram as cartelas, receberam o dinheiro e agradeceram, sempre com olhos no contrafeito galã. Ao se despedirem, dona Amélia advertiu: “No próximo mês, vocês tocarão a sineta e eu as atenderei , no portão; é que do portão pra dentro eu sou a única obreira ”.

Consta que a coisa não parou por aí. Seu Manoel, ao depois, procurou as obreiras e muito contribuiu para as cristãs missões e a tal ponto foi de dedicação que não se contentou em ofertar apenas dinheiro: propiciou o nascimento de mais um apóstolo, cujo nome, por valentia ou esperteza da mãe, era também Manoel.

O fato se espalhou em boataria na pequena capital, o que não era de o contrário se esperar, considerando os idos de 1950; diz-se que as filhas – sempre as filhas - ao saberem da boataria, quiseram tomar providências e encetar movimentos de moralização, mormente nos empreendimentos cristãos. Dona Amélia, dada a agregar a família e feliz com seu parceiro, reagiu: “Quem procura, acha. Eu me contento em não achar nada de errado no território do portão pra dentro; o resto é dos homens e dos cachorros; parem com isso”

Diz-se ter sido dona Amélia uma mulher de refinada educação, considerando os tempos de então. Não declamava os “Lusíadas” por inteiro, mas, à perfeição, o episódio de Inês de Castro. “Romeu e Julieta” era proibido nas escolas mantidas por freiras e nas casas de família, mas todos sabiam alguma coisa sobre “Hamlet” ou “MacBeth”. Dessas célebres páginas, as moças aprendiam o valor da fidelidade feminina e o da temperança. Havia as mulheres de sustar os maus ímpetos dos maridos, isso em “MacBeth”. De “Hamlet”, seu canto preferido era uma cena do ato 5, em que a ralinha mãe de Hamlet oferece flores à falecida Ofélia, clamando “ Sweets to a sweet.”

Tal verso, em tradução linear para o português, assume proporções de indizível ridículo, qual “doces para uma doçura”. Na realidade, ofereciam-se flores para uma precoce morta, e, por isso, a despeito de o verso ser emergente da boca de uma mulher para uma defunta, os amantes o roubaram e sempre o declamam para suas vivas amadas, com o sentido de “Rosas para uma rosa”.

Seu Manoel, de tanto ouvir o verso, já o dizia em inglês, “ Sweets to a sweet”, não descurando de traduzi-lo alto e bom som para que todos entendessem, isso às sextas à noitinha. E os filhos e a criadagem exultavam diante de tanta bonomia, felicidade e amor naquele palacete da rua Barão do Rio Branco, em Fortaleza.

Em seus rompantes de romantismo, já muito doente e próximo da morte, dizia ele em sorrisos, e com o mesmo humor ela recebia o sombrio galanteio, qual o de “Amélia, só me constrange morrer antes de ti porque, assim não fora, ao teu enterro eu traria um lindo ramalhete com os dizeres” Sweets to a sweet”. Ela sorria, alisava-lhe as cãs e dizia: “Manoel, de dentro de meu caixão, escolherei rosas por outros enviadas e as terei como se fossem tuas “Sweets to a sweet.” E se apertavam as mãos e se enxugavam os suores, pois lágrimas já não as tinham mais, dado que, juntos, esqueceram o que era padecer e chorar.

É voz corrente que no enterro de dona Amélia, apenas alguns meses após o falecimento de Manoel, adentrou ao salão de vigília um rapagão forte e acaboclado, uns vinte e cinco anos. Portava um ramalhete de flores com um fita onde se lia “Sweets to a sweet. Saudades, Manoel”. O nome do rapaz era Manoel e sua aparência com o extinto chefe daquela família era perturbadora. Uma das filhas da defunta – sempre as filhas - ao perceber a entrada do varonil mancebo no solene recinto, avançou um passo como se fosse barrar ao recém-chegado o respeitoso acolhimento. Entreolharam-se os dois únicos filhos ao perceberem as irmãs quase a grunhirem, com os dentes à mostra.

Calmamente, Clarinha, a mais nova das filhas, aquela que não casara e que acompanhara os últimos dias da velha mãe, adiantou-se às irmãs e saudou o recém-chegado: “Como vai Manoel? Mamãe me advertiu que estas flores viriam”. “É”, falou o jovem: “Seu Manoel sempre me pedia pra eu dar um jeito destas flores chegarem ao velório de Dona Amélia... Ele até as pagou... eu trabalho numa floricultura da Obra das Vocações Sacerdotais”. Ninguém ousou dar um pio.

Bem analisando, dá para definir para o que dona Amélia olhava quando se punha ao jardim; não era para o passado, não era a para o futuro, não era para os transeuntes, era mesmo para seu constante presente de “Sweets to a sweet”. Claro que hoje em dia tais dedicações não mais acontecem; é que quase não mais se vêem jardins; sumiram.

Sobre o Autor

T.M. Castro: Temístocles Mendonça de Castro – é formado em Direito, lecionou em Faculdades, foi Promotor do Júri, Procurador de Justiça, Procurador do Cidadão, e hoje está aposentado. Vive entre Alexânia, GO, e Brasília, DF. Um texto seu já foi publicado no site messageinabotou, de Brasília.

Contato com o autor por email: temisbsb@terra.com.br

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