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COMÉDIA E DEPRESSÃO: A Vida de PETER SELLERS em filme obrigatório para os fãs
por Chico Lopes
*
publicado em 19/11/2005.
No filme, Peter Sellers é encarnado pelo australiano Geoffrey Rush, que é um bom ator, se bem que “over”. Cômico de recursos, ele faz filmes desiguais, e nem sempre é bem aproveitado. Dessa vez, porém, está no tom apropriado, porque Sellers era bem aquilo – exagerado, caricato, esquizóide (o que parece ser a nota distintiva dos grandes cômicos). Rush ganhou, pela interpretação de Sellers, o Globo de Ouro de 2005 para melhor ator em filme feito para a televisão e o filme também ganhou o prêmio nesta categoria. É muito bem feito, dentro das limitações do formato, e é até mesmo arriscado esteticamente, incorporando recursos metalingüísticos (filme dentro do filme, auto-citação, auto-paródia e crítica), explorando artifícios, inserções de arte pop e psicodélica dos anos 60 etc.
O problema é com o público de hoje em dia, que não vê mais filmes de Peter Sellers e não parece achar que o cômico seja tão engraçado assim. Mas, dá para compreender, porque as comédias dos últimos anos são muito apelativas e cruas, em geral protagonizadas por adolescentes que você achará engraçados apenas se for muito complacente, e, no ramo, existe Jim Carrey e seus discípulos. Na verdade, a comédia de sucesso comercial é um gênero financeiramente compensador, mas artisticamente ingrato – bom exemplo é o próprio Carrey, que vive querendo ser ator sério e até fez bons filmes, convencendo a crítica, mas não ganhando o Oscar, o que parece ser sua obsessão.
Os cômicos do cinema, mesmo amados pelo público pelos papéis que os consagraram popularmente, vivem sentindo-se atores menores e procurando fazer papéis mais dramáticos e diversificados. Jim Carrey não suportava mais ser chamado de “careteiro” e por isso fez filmes como “O show de Truman” e “Cine Majestic”, que trazem uma boa carga de pretensão rombuda e acadêmica. Carrey se deu melhor, definitivamente, foi ao filmar a vida de outro comediante, Andy Kaufman, um americano da televisão de lá desconhecido no Brasil, em “O mundo de Andy”. Assinalo a produção (realizada em 1999 por Milos Forman) porque, em espírito, essa nova, sobre Peter Sellers, se parece com ela.
Para os nostálgicos de décadas fundamentais
Há uma confusão danada na mídia, hoje em dia, que é dominada por gente nascida nos 80 ou pouco antes, ao tentar situar modas e comportamentos dos anos 60 e 70. Mas, os que, como eu, nasceram em 1952 e eram jovenzinhos na época, lembram-se que havia uma considerável diferença nas modas e comportamentos daquelas décadas, e Peter Sellers começou sua carreira em rádio, nos anos 50, ascendendo a comediante bem-sucedido no cinema bem no início dos 60 (alguns de seus filmes desse início, “O quinteto da morte” e “O rato que ruge”, não são muito lembrados hoje em dia).
Ele é, portanto, facilmente associável à atmosfera cultural daqueles anos, de “Swinging London”, minissaias de Mary Quant, os Beatles, farras de gente cabeluda que começava a descobrir o LSD, arte psicodélica, Flower Power, contracultura etc. Portanto, quando “A vida & morte de Peter Sellers” começa, entramos bem nesse caldeirão nostálgico, vendo em desenho animado bem engraçado aquela cara eterna de Inspetor Closeau por toda parte, até em bailarinas de strip-tease, ao som de “What´s new, pussycat?” (do filme “Que é que há, gatinha?”), cantada por Tom Jones. Outras canções de Tom Jones, ícone pop-brega daqueles anos em que o brega ainda não tinha este nome, serão ouvidas ao longo do filme, banhadas em saudosismo. Vão desfilar também “I´ve heard through the grapewine” e até “Garota de Ipanema”, com João e Astrud Gilberto.
O filme começa quando Sellers, cansado de ser conhecido só como cômico de rádio, lamenta com a mãe que sua carreira não vai em frente, que não consegue chegar ao cinema. A mãe, que o domina emocional e profissionalmente ( gorda e caricata, ela parece um ogre, evocando a Anne Ramsey de “Jogue a mamãe do trem”, de Danny DeVito), diz que ele tem que reagir, tem que ter garra, fazer de tudo para provar que é um sucesso, para não ser um fracassado como o pai (fica bem óbvio que, com uma esposa daquelas, marido algum teria chance). Ele começa com um artifício, se fazendo de mais velho para pegar um papel em “Ladykillers” (“O quinteto da morte”), o que consegue. E daí, deslancha.
Mas, a produção tem mesmo é a pretensão de destrinchar sua vida particular, explorar e mostrar “the dark side of genius”. Então, travamos contato com sua mulher e seus filhos (o menino é aquele garoto muito expressivo, James Bentley, de “Os outros”) e vamos descobrir que é um péssimo marido. Não, não é apenas péssimo – é, na verdade, quase louco, o que se prova quando o filho, tentando consertar o esmalte de um carro, faz um estrago bem-intencionado, e ele, reagindo a isso, vai para dentro da casa e pisoteia todos os seus brinquedos, numa vingança que parece um surto psicótico.
A cara do garoto é de arrancar lágrimas até de pedras. E é natural que a mulher, a primeira de uma lista de quatro, Annie Sellers (vivida com competência por Emily Watson), tivesse toda a razão em achá-lo um terror. Vamos ver os conflitos desse casal ainda melhor desenvolvidos quando Sellers, tendo que contracenar com Sophia Loren num novo filme, se acha apaixonado pela estrela e, sem “desconfiômetro” (ela era muito fiel a Carlo Ponti), acredita ser correspondido.
Cansada de agüentar o meninão mimado, egomaníaco (toda vez que ela tenta criticá-lo, ele reage bancando o cretino engraçado típico de seus filmes, e ela acaba não resistindo), a esposa arranja um romance com um decorador, o que achamos muito sensato. Seu ego não tem mesmo tamanho, e, vendo seu fiasco com Sophia, contenta-se em dormir com a substituta dela no filme, mas segue megalomaníaco.
Engraçado ou sinistro?
Um desses lugares-comuns mais ou menos estabelecidos do “show biz” garante que os humoristas não são pessoas muito alegres, em sua vida privada. Esse filme é uma total confirmação disso, e pode fazer que muita gente, não simpatizando muito com o tipo de Peter Sellers, veja-se coberta de razão por rejeitá-lo. Compreende-se perfeitamente que a sua mulher perca a paciência e arrume outro – Sellers é o típico “filho de mamãe” que espera encontrar nas mulheres o afeto incondicional, de Jocasta tarada, da mãe, e, claro, como tal não é possível, vai trocando uma mulher pela outra. Além disso, como é uma criança ele mesmo, se dá mal com os filhos, cujas necessidades emocionais não compreende (tem preocupações egocêntricas demais para notar a existência deles). Para compensar suas sucessivas mancadas, os defeitos que bem suspeita existirem em sua vida de pai e marido, tenta sempre ganhar pela doideira, pela palhaçada, pela criação incessante de outros tipos, que é tudo que aprendeu a fazer na vida, mas alguém vai vencer a realidade e as responsabilidades assim, no chute, na fantasia cômica, ainda que com muito talento? Suas tentativas de chantagem emocional são abusivas, descaradas, inaceitáveis. Ele sabe que é um neurótico ou algo mais que isso, mas ao invés de procurar um psicoterapeuta sério, com quem pudesse descer a seus abismos pessoais, prefere acalentar seu narcisismo fazendo o que muito se fazia (e ainda se faz) hoje em dia – usando um gurú “esotérico” que é um charlatão esperto e que lhe dá dicas para a carreira, que ele interpreta sempre de modo favorável, naturalmente.
Não sabemos bem se esse homem é engraçado ou sinistro, e é mais certo que o vejamos como uma mistura das duas coisas, e compreendamos – essa é a virtude do filme – quanto de maluco, esquizóide ou paranóico, ele carregou para aqueles personagens famosos, como os de “Doutor Fantástico”. Ele se parece sim com o Andy Kaufman encarnado por Jim Carrey, intolerável em sua vida privada, e caso para manicômio, se não tivesse se dado bem como astro de comédia. A arte cômica, tanto em Kaufman quanto em Sellers, parece significar sobretudo a vazão permitida (e comercialmente oportuna) de impulsos anti-sociais violentos, de um egocentrismo e de um comportamento abusivo que vai pra lá dos limites da histeria.
Os bons momentos da produção ficam por conta da coerência psicológica da cinebiografia e pelas atuações. Charlize Theron está muito bem como Britt Ekland, a bela loura sueca que foi a segunda mulher de Sellers. Quem se lembra dos anos 60, deve lembrar-se dela em alguns filmes que ficaram perfeitamente esquecidos, linda e péssima atriz. Não se pode negar que Sellers tinha gosto para escolher suas mulheres, mas, não fosse um astro, elas não o suportariam e, mesmo ele sendo, suportaram-no por pouco tempo.
Outro ator interessante, Stanley Tucci, interpreta Stanley Kubrick, que dirigiu Sellers em “Doutor Fantástico” e “Lolita”, dois filmes menores do cineasta, ainda que amados por muita gente. Kubrick, com um ego tão forte quanto o de Sellers, perfeccionista e manipulador, vive em confronto com o ator, mas daí resultam cenas interessantes, que quem é cinéfilo e acompanhou a dupla gostará de conhecer.
Mas cabe a John Lithgow fazer o verdadeiro “pai espiritual” de Peter Sellers: Blake Edwards, diretor hoje esquecido, responsável por clássicos como “Bonequinha de luxo”, “A corrida do século” e “Vitor ou Vitória”. Edwards sabia muito bem que terrível egomaníaco ele era, mas dependia dele (“a gente ficava hipnotizado vendo-o atuar”) pelo sucesso da série “A pantera cor-de-rosa”, que criou o personagem mais lembrado de Sellers, o inspetor Closeau. Numa cena cruel, Sellers o ataca no palco com sarcasmos impiedosos, chamando-o de cineasta medíocre e comercial, constrangendo o público de uma pré-estréia. Tem-se vontade de estrangulá-lo.
Edwards sofria, e quem vê o filme o compreende muito bem: como agüentar um sujeito sem disciplina, sem regras, sem horários, que improvisava e seguia os roteiros à sua maneira? Genial, sem dúvida, mas impossível. No entanto, uma comédia maravilhosa que fizeram juntos, “Um convidado bem trapalhão” (“The party”), de 1968, não é sequer mencionada na produção, o que é uma falha. E Lithgow, que é bom ator, está um pouco “empetecado” em sua caracterização.
O que ficará desse comediante?
Há no mercado caixas de DVD com a série “A pantera-cor-de-rosa”. Os filmes variam entre divertidos, mortos e chatos. Em “Doutor Fantástico”, filme superestimado, admiramos muito a sua técnica, mas há também muita chatice. Em “Lolita”, o contraste entre seu personagem e o vivido por James Mason dá pontos para Mason, ator mais discreto e mais nuançado. O humor de Sellers não é apreciado por todo mundo, mas ele cai e se redime alternadamente, e a gente por vezes ri de rolar. O inspetor Closeau é a sua criação definitiva, mas a cinebiografia mostra o quanto detestava esse personagem francês comercial e queria se redimir artisticamente, fazendo alguma coisa mais séria. Daí, apaixonou-se pelo livro “Being there”, que virou o filme “Muito além do jardim”, de Hal Ashby, em 1979.
Alguns consideram esse papel de Sellers o maior de sua carreira. É um jardineiro idiotizado por uma vida passada diante da televisão que, ao perder o patrão, cai na realidade do mundo, que tenta suprimir usando a tecla de apagar imagens do controle remoto. O ataque à idiotização via tevê é contundente e pareceu muito pertinente e ousado na época. Mas, revisto, o filme também tem um aspecto “datado”, meio constrangido, de esforço desajeitado pela seriedade artística, e, embora não seja ruim, não é nenhuma obra-prima.
Eu, sem ser fã de Sellers, prefiro o seu papel de hindu perturbado, que detona uma série de confusões delirantes em “Um convidado bem trapalhão”. Porque, passando o tempo, é fácil ver que o que os comediantes de gênio acham bom, artístico e o mais, desprezando o que fizeram de popular e comercial em suas carreiras, não está longe de ser uma chatice. Um pouco disso pode ser encontrado em Woody Allen, que foi engraçado em seus primeiros filmes despretensiosos, e depois muitas vezes virou um sub-Ingmar Bergman com todos os traços de um cinema intelectualóide claramente indigesto. Entendo perfeitamente quem foge dos diálogos de metralhadora de Allen, e outro dia me assustei com a chatice implacável de “Noivo neurótico, noiva nervosa”, notando que Allen às vezes, mesmo para quem gosta dele, pode ser um pé-no-saco monumental.
Não sei o que ficará da arte de Sellers, em resumo. Sei que, a julgar por “A vida & morte de Peter Sellers”, foi um sujeito que eu não teria gostado de conhecer pessoalmente. Acho abominável que comediantes que muito nos fizeram rir com seus personagens – desde “O gordo e o magro”, Jerry Lewis e outros tantos – tenham essa mania besta de se acharem inferiores por praticarem um gênero popular e ganharem muito dinheiro com isso. Falta a eles a modéstia e o discernimento necessários para entender que o que fazem, com esses tipos universais que nos dão muito prazer, é muito bom, e podem ser a parte mais importante de seu legado como artistas.
Com suas crises quanto à qualidade de seus papéis, o mito Marilyn Monroe vivia querendo ser reconhecida como “atriz séria”. Mas, pegue-se dois filmes seus, e, francamente, com qual você ficaria: com o terrível, deprimente e enfadonho “Os desajustados” ou com o delicioso e paródico “O pecado mora ao lado”? A comédia é um gênero grande em si mesmo, e MM era uma “loura burra” engraçada como nunca mais houve outra – aí estava a sua arte, superior sim, e ela morreu convencida de que não era nada, e ainda, coitada, precisou casar-se com o terrível Arthur Miller para obter respeitabilidade junto aos críticos.
O pior que se pode dizer, na verdade, de “Vida & morte de Peter Sellers”, é que não é um filme engraçado. Mas, pode ser obrigatório para os fãs, ao menos como curiosidade.
Sobre o Autor
Chico Lopes: Chico Lopes é autor de dois livros de contos, "Nó de sombras" (2000) e "Dobras da noite" (2004) publicados pelo IMS/SP. Participou de antologias como "Cenas da favela" (Geração Editorial/Ediouro, 2007) e teve contos publicados em revistas como a "Cult" e "Pesquisa". Também é tradutor de sucessos como "Maligna" (Gregory Maguire) e "Morto até o anoitecer" (Charlaine Harris) e possui vários livros inéditos de contos, novelas, poesia e ensaios.Mais Chico Lopes, clique aqui
Francisco Carlos Lopes
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