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ABISMOS DE UMA REALIDADE SEM SAÍDAS

por José Aloise Bahia *
publicado em 18/05/2007.

Na página 92 de Formas breves, Ricardo Piglia observa uma de suas teses sobre o conto: "Kafka conta com clareza e simplicidade a história secreta, e narra sigilosamente a história visível, até convertê-la em algo enigmático e obscuro. Essa inversão funda o kafkiano". Os contos da antologia Dicionário de pequenas solidões, de Ronaldo Cagiano, bebem de maneira fértil nessa fonte citada por Piglia e outras mais - João Antonio, Samuel Rawet na narração e Augusto dos Anjos, Drummond e Torquato Neto na poesia, pois o autor também é poeta. Vai além: reproduz e revela de maneira implacável e lúcida o resto, a sobra de um Brasil trágico e dramático, cenas que povoam uma sombra ingrata e incômoda aos olhos do Planalto Central.

Dicionário de pequenas solidões é um labirinto descontente. Ficções profanas, extremas e brutais, castigadas pelas patologias de uma certa urbanidade, na qual transitam, lado a lado com a história oficial, personagens corroídos pelo silêncio, partidas, idas, vindas e o vazio de suas vidas ordinárias. Consumidos e cuspidos pela voraz realidade de um país que desconhece o seu povo. Desesperança pura.

São 15 histórias de dois livros: o premiado Dezembro indigesto (2001) e Concerto para arranha-céus (2004), o mais pungente e maduro de Cagiano. Para a antologia foram escolhidas as histórias mais consistentes do autor. No geral, uma série de narrativas em primeiro plano e com toda a naturalidade, entretanto movediças e dolorosas, fincadas numa realidade espinhosa e intercambiadas pela visível denúncia social e (con)fusão de gentes num mar de cólera e espanto em suas vias-crúcis.

O reino dissonante e paroxismo de um crepúsculo banhado por óbitos, tédios, descrenças, condenações, êxodos, dcadências e hemorragias cerebrais crônicas. Derramadas numa lógica veloz, tumultuada e vulcânica. Inundadas por epígrafes, referências, interlocuções e pontuadas por uma imaginação criativa. Um painel digno do pintor flamengo Hieronymus Bosch.

Há contos exemplares: O abuso, Golpe de misericórdia, Solidão, Todas as estações, No último Natal do milênio", Fígaro, Horizonte de espantos. O melhor deles, cuja temática é a morte, chama-se A marca. Uma trajetória impotente, desencantada e desesperançosa do filho que volta à cidade natal para enterrar o pai. No seu delirante retorno, o protagonista é embalado por uma sublime perturbação, um recôndito desejo, fazer o que queria quando mais novo: visitar o túmulo de Baudelaire em Paris. Mas teve que se contentar com o sepulcro de Augusto dos Anjos - sepultado em Leopoldina, cidade vizinha à terra deCagiano: Cataguases, Minas Gerais.

A marca é um mix de encontro real e fictício para um anônimo enigmático, acinzentado, obscuro e carcomido pelos sofrimentos da procura da essência em suas crises existenciais. O remorso atinge o clímax a partir da lembrança das manchas de sangue no cimento, a nódoa que não diluiu, sinal de uma culpa irremediável: a morte do irmão menor, na infância, esmagado por um caminhão de areia.

Fundamentalmente poeta, entretanto regido pela máxima de Baudelaire, "Seja poeta, mesmo em prosa", o escritor desde 1979, quando chegou em Brasília (onde trabalha como bancário), não parou de escrever - ofício que faz desde a adolescência. Na ficção, por mais que as temáticas dos inúmeros livros publicados, sejam as frustrações e as incoerências deste tempo coroado for falsas imagens de leituras fáceis, Cagiano sempre acreditou que a "literatura é sobrevivência; pulmão e evangelho; exorcismo e apaziguamento; catarse e reflexão".

Impaciente, aprendeu a reinventar as coisas. A dizer não. Navega por uma trilha esclarecedora - com fluxos da memória, diálogos e consciência dos acontecimentos - que realmente faz sentido neste mar de mundo que são as contradições humanas.

Sobre o Autor

José Aloise Bahia: José Aloise Bahia nasceu em nove de junho de 1961, na cidade de Bambuí, região do Alto São Francisco, Estado de Minas Gerais. Reside em Belo Horizonte. Tem ensaios, críticas, artigos, crônicas, resenhas e poesias publicadas em diversos jornais, revistas e sites de literatura, arte e imprensa na internet. Pesquisador no campo da comunicação social e interfaces com a literatura, política, estética, imagem e cultura de massa. Estudioso em História das Artes e colecionador de artes plásticas. Sócio fundador e diretor de jornalismo cultural da ALIPOL (Associação Internacional de Literatura de Língua Portuguesa e Outras Linguagens) Estudou economia (UFMG). Graduado em comunicação social e pós-graduado em jornalismo contemporâneo (UNI-BH). Autor de "Pavios Curtos" (poesia, anomelivros, 2004). Participa da antologia poética "O Achamento de Portugal" (anomelivros, 2005), que reúne 40 poetas mineiros e portugueses contemporâneos.


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