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Estamira

por Paulo da Mata-Machado Júnior *
publicado em 13/09/2006.

O plano abre com a mulher de cara fechada, girando a tramela do portão de casa, do lado de fora do "jardim". Corta para uma movimentada e estreita rua, onde enormes caminhões basculantes, bicicletas, motos, transeuntes e coletivos dividem a exigüidade com poucos automóveis velhos. A mulher de pernas arqueadas bamboleia até o ponto do ônibus. Galga penosamente os altos degraus, o motorista confere se já se equilibrou no interior do veículo e arranca com estridor.

Muda novamente a cena, estamos em um espaço infinito. O céu e o chão se encontram em indefinidos fiapos brancos, a música me faz lembrar outros filmes, talvez um Bertolucci, possivelmente "The Sheltering Sky", alguma coisa pungente, uma voz aguda realça o momento. O plano fecha no solo, os fiapos esvoaçantes são pedaços de plástico branco, papéis rasgados, um enorme bando de gaivotas que disputa com humanos e urubus os restos orgânicos misturados a entulho de toda espécie. Imensas carretas despejam sem cessar mais e mais lixo, enormes tratores de esteira vão para lá e para cá, espalhando e compactando os detritos. Colados às lagartas estão os catadores, atentos ao revolver e ao surgimento de algo mais valioso: um pote de conserva estragada, um pedaço de piza milagrosamente dentro da embalagem do fabricante. Às vezes um deles se distrai ou prende o pé no monturo. O trator não para. O que sobra são duas canelas finas saindo debaixo de um pedaço de lona que cobre o resto.

"Estamira" é um filme piegas? Embora em alguns momentos pareça que vai resvalar rumo ao vazio dos apelos, o rigoroso realizador, Marcos Prado, não deixa. E continua conduzindo a trama com seriedade. E nos mostra a história da vida de uma "louca", contada delirantemente pela própria, pelos filhos, pelos catadores que a ela se afeiçoam.

As diversas situações do dia-a-dia, vividas por ela, na realidade vão expondo o processo no qual a trajetória humana vem tornando cada vez mais frágil a distinção entre sanidade e loucura. Os superlotados postos de saúde dos bairros humildes, os médicos e atendentes submetidos a todo tipo de dificuldades estressantes, os remédios "loucamente" prescritos (que a "desequilibrada" Estamira resiste a usar), a banalização da violência cotidiana...

Bandos de outros "loucos", no entanto minuciosa e perfeitamente coordenados, assumem o controle de alguns aviões de passageiros e os lançam contra alvos pré determinados, escolhidos com precisão e cuidado. Toda a ação propriamente dita não dura mais que poucas horas. O que resulta é o caos, que perdura após cinco anos. O que se conquistou ao longo dos últimos trezentos anos, de civilidade, respeito a opiniões e costumes diferentes, o uso parcimonioso e consciente dos recursos naturais, tudo foi para o lixo num passe de triste mágica. Trágica.

E la nave va... E a câmara se demora no detalhe do chorume borbulhante do lixão, as tempestades de verão são estoicamente suportadas pelos humanos e demais bichos, as depressões do terreno se alagam, aquilo tudo resvala lentamente em direção ao mar...

Custei a reconhecer o local. Anteriormente fazia parte de um imenso manguezal que revestia praticamente toda a orla da Baía de Guanabara. Lá no fundo ainda se consegue ver, meio escondidos na fumaça alguns exemplares da especialíssima flora. Maternidade do Mar. Recicladora dos detritos e resíduos sólidos trazidos pelos rios, centenas deles, que drenam a Serra do Mar ali perto: Iguaçu, Sarapuí, Estrela, Saracuruna, Inhomirim...

"Normalíssimos" cidadãos cheios de espírito cívico planejaram cuidadosamente o destino do lixo da cidade do Rio de Janeiro. Mandam encher um grande número de gigantescas carretas, que diariamente são lançadas contra os alvos: o meio ambiente e toda a fauna do planeta. A loucura de Estamira se amalgama, se confunde e finalmente se perde na autofágica demência do ser humano.

Sobre o Autor

Paulo da Mata-Machado Júnior: Sou mineiro do Rio de Janeiro, das vizinhanças da Praça da Bandeira, rua Mariz e Barros, ao lado do Instituto de Educação, cheio de meninas vestidas de azul e branco / trazendo um sorriso franco / no rostinho encantador: Hospital Gaffrée-Guinle, dezembro de 1942. Antes dos cinco anos virei ilhota, naquele paraíso tropical que era a Ilha do Governador dos anos quarenta: pescava, nadava, andava de bicicleta e nas horas vagas freqüentava com muita má vontade as aulas da escola 5-13 Rotary. E as matinês do Cine Miramar, religiosidade dominical.

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