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Nelson e as múltiplas escadas para lugar nenhum

por Chico Lopes *
publicado em 18/07/2006.

O novo livro de contos de Nelson de Oliveira, Algum lugar em parte alguma(Record, 286 páginas) está chegando ao leitor brasileiro, e nele se completa a estréia de Nelson como escritor. A explicação, ele a fornece no posfácio Todos por um, no qual diz que o novo livro fazia parte de seu primeiro, uma coletânea que reunia quarenta e cinco contos, chamada Fábulas. Impossibilitado de publicá-la por inteiro, naquela época, ele foi publicando-a aos pedaços, em três livros, Naquela época tínhamos um gato, Os saltitantes seres da lua e Treze. Claro: os três mosqueteiros eram quatro. E faltava esse quarto para que a estréia se consumasse.

Recebi o livro na semana passada e me dediquei à leitura. Sempre achei a prosa de Nelson de uma facilidade e uma fluência que nos pegam rapidamente, e ela me agrada pelos abismos de ironia e nonsense que abriga. De modo que toda essa simplicidade de leitura é muito enganosa, é apenas a camada superficial com que Nelson mascara os “sustos e epifanias” de que sua mulher, Tereza Yamashita, fala na contracapa.

Aliás, comecemos pela capa de “Algum lugar...”, bonita e criativa, de autoria da própria Tereza. Escadas, moles, flexíveis, negras, sobre um fundo vermelho, apontando para lugar nenhum. Pensa-se na metáfora inevitável: ao leitor caberá subir, e que escolha uma delas, a jogada é a mais arbitrária possível, que cada um encontre o lugar ao qual, a seu ver, elas ascenderão apropriadamente. E vamos para os contos.

Fiquei encantado, de cara, com “Senhora aos domingos”, onde o lado de pintor de Nelson dá as suas caras. Numa sucessão de cromatismos, uma senhora sai de casa e vai a uma praça num passeio rotineiro. A prosa é admirável, porque se empenha em repetir a repetição e o fluxo que Nelson descarrega, brincalhão, mas acertando as contas com o desespero, dá conta disso com extrema eficiência. Cores ajudam a contar coisas. Assim, somos atirados num remoinho colorido de mesmices e anacronismos que não deixam nunca o presente dessa senhora. E parecemos ver uma velha gravura de uma senhora da Belle Epóque ou nos imaginamos nalgum daqueles domingos franceses retratados em telas impressionistas – vamos dizer, de um Seurat – em que múltiplos acontecimentos explodem sob um sol mundano, de piquenique num parque. A prosa de Nelson, ao contrário das superfícies calmas de Seurat, esconde peçonhas, terrores psíquicos, e não há um pingo de confiabilidade no que acontece - a loucura, o horror, o nonsense estão ali, sorrateiros.Os personagens de rotina desfilam sob os olhos de Madalena e sob os nossos, mas eles possuem entre si uma relação a que de modo algum devemos ficar desatentos. E Madalena foi me comovendo como o esquizofrênico de “Mrs. Dalloway”, de Virginia Woolf, aquele Septimus que delira pelas ruas de Londres e é, na verdade, um tanto da própria Virgínia, que sucumbiu a delírios. Seria forçado achar que essa Madalena é, agora envelhecida e acuada pela realidade terrível que jaz sob seus passeios por um bairro paulistano endomingado, uma mesma prima amada pelo personagem de “Os antepassados, os porcos”, o belo penúltimo conto do livro?

E, depois, temos o “Pobre Patinho Frank, cheio de si e de vento” (a criatividade de Nelson para títulos é algo que sempre me chamou a atenção).em que ele vai pintar um quadro doméstico e familiar com a perversidade que se fará presente também em “Os antepassados, os porcos”: o autor arma personagens de família e trama relações entre estes apenas para nos dizer como esses personagens são fragmentados e iludidos e como essas relações são mais que dúbias. Em Nelson, tudo é simples e tudo diz outra coisa, e pensamos numa frase famosa de Kafka: “O que faz o monstruoso é a naturalidade com que é apresentado”. Tudo é perfeitamente natural, quer dizer, perfeitamente atroz.

O patinho Frank é talvez um daqueles personagens de livros ou filmes de terror americano que, menino, suspeita muito da realidade que o cerca: dentro do núcleo sagrado, da célula mater, é que os monstros podem estar ocultos ou estar sendo engendrados – assim, com a identidade secreta de um certo tio. Nelson constrói uma cena de sexo como uma cena de agressão brutal, vista pelos olhos de uma criança. Nada, no entanto, repetirá o clichê que algum leitor de livros e gibis de terror, menos conhecedor de Nelson, possa trazer na cabeça. Os verdadeiros lobisomens são assim, rotineiros, próximos de nós, e talvez bem mais letais.

Em “Marli”, temos a mulher deusa e musa de um certo Carnaval de mendigos e vagabundos. Adorada por eles, é por eles devorada. Nelson não está nos narrando um episódio comum, está é nos fazendo compactuar com uma orgia mitológica, uma doideira de bacantes, sem querer explicar mais coisas. E nem precisa. Por vezes, um conto seu, tal como algum conto de Cortázar, é simplesmente um acontecimento no qual somos jogados inapelavelmente, à mercê de um narrador que nos conhece bem, dentro de cujo mundo vamos nos mover entre fascínio e aversão, procurando uma familiaridade amplamente enganosa. O pouco que pode ser entendido se mistura a milhares de coisas que, misteriosamente, seguem acontecendo, forçando-nos a voltar atrás, repensar, reler, já que nada é tão simples. É um pouco como estar nos filmes de um David Lynch.

E é por aí que vamos para o mundo de “Algum lugar em parte alguma”, onde um casal, Bella e Otto, tem um cão, o Cão, que se perderá nos meandros de uma favela e de construções metropolitanas. Um cão tão importante para esse casal que pensamos naquele cão comovente e vital para o personagem do velhinho de “Umberto D”, de Vittorio de Sica. E esse casal é totalmente incomunicável (incomunicabilidade não é coisa só de casal de classe média ou burguês), além de não ser absolutamente compreendido pelo mundo que o cerca (ver a ida de Otto a um certo subsecretário). Nelson é um Kafka com pesadelos maiores que o do autor tcheco, visto que a realidade brasileira é uma descida constante a infernos imprevisíveis, sem a menor possibilidade de lógica ou justiça. O onirismo já bastante diluído literariamente de Kafka sofre em Nelson uma transposição bem mais sinistra e reconhecível para nós, brasileiros. E graças aos céus, ele não aponta soluções demagógicas para os problemas sociais que nos levam a minuciosos dilemas, a intermináveis e irremediáveis sonhos ruins. Ele só nos dá Literatura, ele mostra o que está aí, não propõe retóricas esquerdistas que bem sabemos no que resultam, na prática. É só o real insuportável, com o qual temos que nos virar.

Esse onirismo inquietante volta em “Os antepassados, os porcos”, quando pensamos estar diante de um certo tipo de filme como o clássico “Os pássaros”, de Hitchcock, ou o mais recente “Sinais”, de Shaymalan, em que famílias prototípicas são ameaçadas pelo misterioso mundo exterior – com um ataque de animais comuns ou de alienígenas. Nesse mundo transfigurado, um certo personagem nos fala de outros personagens familiares, de afetos e desafetos cujas origens são dúbias – tudo, afinal, parece tão gratuito quanto a ameaça que o ronda, tudo é concreto, mas tudo é esquivo e paranóico: são convenções de uma certa espécie de narrativa, literária ou cinematográfica; ninguém pode se fiar nesse discurso contaminado pela suspeita, a angústia, os delírios mais aleatórios. Mas, quanto se pode tirar daí, e especialmente da figura de um certo xerife, símbolo da autoridade tatibitate e providencial, que, nas mãos de Nelson, vira alguma coisa bem mais ameaçadora! Nelson brinca com certas convenções da literatura de terror, da indústria cultural, mas o que há por baixo disso não é exatamente brincadeira. O que anda por dentro desse homem que nos conta essa história, de sua amada Madalena, de sua mulher agressiva, de sua esquiva Menininha?

O livro se encerra com “O irmão brasileiro”, brincadeira angustiante e paródica sobre um certo personagem com uma identidade rigorosamente partida ao meio, um tanto no Brasil, outro tanto em Londres. O duplo aqui comparece de modo dilacerante, como sempre, mas com esse tipo de dilaceração em que Nelson se especializou, banhada pelo humor negro e pelas referências pop. E é melhor que o leitor mesmo a confira, porque desconfio que já revelei demais sobre esse livro saboroso.

Os leitores de Nelson, já conhecedores de seu mundo, saberão onde estão pisando. Os novos, estes farão descobertas. E as escadas para lugar nenhum poderão levar a muitos lugares. Inesperados, sem dúvida alguma.

Sobre o Autor

Chico Lopes: Chico Lopes é autor de dois livros de contos, "Nó de sombras" (2000) e "Dobras da noite" (2004) publicados pelo IMS/SP. Participou de antologias como "Cenas da favela" (Geração Editorial/Ediouro, 2007) e teve contos publicados em revistas como a "Cult" e "Pesquisa". Também é tradutor de sucessos como "Maligna" (Gregory Maguire) e "Morto até o anoitecer" (Charlaine Harris) e possui vários livros inéditos de contos, novelas, poesia e ensaios.

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Francisco Carlos Lopes
Rua Guido Borim Filho, 450
CEP 37706 062 - Poços de Caldas - MG

Email: franlopes54@terra.com.br

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