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RESENHAS
Contar e mostrar
Wilson Martins*
As conhecidas distinções de técnica narrativa entre os que contam e os que mostram ficam esclarecidas de forma quase didática por Luiz Vilela (“A cabeça”. S. Paulo: Cosac & Naify, 2002) e Ronaldo Cagiano (“Dezembro indigesto”. Brasília: Secretaria de Estado da Cultura, 2002).
O primeiro narra por meio de diálogos, praticamente sem notações descritivas: “A cabeça — pois era realmente uma cabeça de gente, uma cabeça de mulher — estava ali no chão em plena rua, sob o sol, naquela radiosa manhã de domingo. De quem era? Quem a pusera ali? Por quê? Ninguém sabia...”. Nem jamais saberemos, porque o tema do conto não é a história da cabeça abandonada, mas o múltiplo diálogo que desperta entre os curiosos que começam a rodeá-la em momento aliás favorável, porque todos se dirigiam para a missa. Como sempre, houve quem desejasse resolver o enigma a todo custo, por conta própria, com suposições gratuitas, imaginando o que “poderia ter acontecido”: “‘Pra mim’, disse o gordo coçando a barriga, que aparecia quase toda pela camisa desabotoada, ‘pra mim isso foi chifre...’”.
Outro conto (“A porta está aberta”), no qual ressurgem, diga-se de passagem, algumas harmônicas da “Terceira margem do rio”, é ainda mais típico, porque começa e termina por páginas narrativas que, afinal, conferem sentido ao diálogo intermediário. Trata-se do homem que quer comprar uma canoa, enquanto o proprietário não só não quer vendê-la, mas, ainda, procura dissuadir o comprador obstinado. Queria ele comprar uma canoa velha e quase imprestável? Não: queria suicidar-se de maneira tão estranha quanto o personagem de Guimarães Rosa na sua barca de Caronte. O de Luiz Vilela embarca na dele com destino à enorme cachoeira cujo trovejar se ouvia de longe: “Ele manobrou o remo, apontou a canoa para o leito do rio, dando as costas para a margem — e começou, firme e ritmadamente, a remar. (...) ... o sujeito sabia remar e ia remando com segurança (...). Mas então (...) com a canoa já chegando ao meio do rio, o sujeito de repente jogou o remo longe. Por quê? E já ia a canoa sendo rapidamente levada pela correnteza”.
A ironia é outro elemento estrutural na arte narrativa de Luiz Vilela. Ele escreve na pauta do que, à falta de melhor nome, podemos chamar de humorismo pessimista, qualquer coisa como o desencanto com a realidade, com a face visível dos fatos. Para demonstração em sala de aula, tome-se o conto “Mosca morta”, todo em diálogos, no qual o protagonista, exasperado pela irritante insistência do amigo importuno, acaba por continuar bebendo com ele no pequeno bar em que foi encontrado: “Você é um cara ingrato, Bento... (...) Eu venho de longe, viajo essa distância toda só para te encontrar, e você nem conversa comigo... (...) Bento, antes de viajar, eu tomei uma decisão: essa é a última vez que eu venho aqui. (...) Toledo pegou o copo e bebeu todo até o fim. Depois virou-se para trás:
— ‘Mais uma!’ (...).
Toledo encheu o copo até quase a borda. Depois, com a garrafa ainda na mão, olhou para ele:
— ‘Você quer? Ou você vai embora?’.
Ele ficou um instante olhando na direção do copo — e então, sem dizer nada, empurrou-o para frente.
— ‘Ótimo’ — disse Toledo, pondo a cerveja. — ‘Assim é que eu gosto’”.
De seu lado, Ronaldo Cagiano pertence à família dos que contam, seja nas páginas de pura fantasia (“Encontros”), seja nas que toma como pretexto para purgar velhas frustrações de guerrilheiro derrotado (“Contraponto”), ou, ainda, nos contos de técnica realista, que são os melhores da coletânea. Em “Contraponto”, ele sacrifica a objetividade e a neutralidade obrigatória de autor, mandamentos essenciais da narrativa, transformando em panfleto vindicativo o que bem poderia ter sido um conto paradigmático dos dias revolucionários.
À lição de sabedoria de Flaubert, segundo a qual o ficcionista deve dar a impressão de jamais haver existido, Cagiano contrapõe o narrador que toma partido ideológico no que está contando. Escreve, com isso, o “conto tirado de uma notícia de jornal” (para lembrar o título de Manuel Bandeira), escrito em estilo jornalês: “Pois foi depois do quebra-quebra na rodoviária do Plano Piloto — ainda estão vivas na memória as imagens daquele motim: ônibus incendiados, a ira do povo a se insurgir contra medidas duras e aumento de preços (...) sim, foi nesse dia que eu reencontrei Letícia”.
A notícia de jornal logo se transforma em memória panfletária: “Quando Jânio Quadros subiu ao poder no bojo de uma campanha folclórica e inebriante, ninguém imaginava que catapultaria o país para o abismo. Sete meses, um ensaio de independência do controle externo, uma provocação com a condecoração de Che Guevara, uns uísques a mais e muitos bilhetinhos depois, provaram a insanidade do chefe de Estado. Com sua renúncia etílica, subiu João Goulart, trazendo a esperança dos progressistas e a desconfiança da caserna”. O vocabulário é de um psitacismo aflitivo: “caserna”, “forças progressistas”, “controle externo”: “Pelo menos, nós, os estudantes secundaristas e universitários, defendíamos com ele as reformas de base e algumas das bandeiras indigestas para os ianques”.
Essas “análises políticas” de bar, além de escritas em idioma antificcional, têm o inconveniente de reduzir ao nível dos fatos diversos o que deveria e deverá ser visto nas perspectivas das grandes tragédias nacionais. De fato, é com esse material que as tragédias se escrevem, enquanto às peripécias do dia-a-dia situam-se nos domínios do factual e do efêmero. Como contista, Ronaldo Cagiano vale mais do que isso, assim como muitos dos seus contos valem mais do que as memórias retorsivas, aliás extemporâneas, e a inocência política.
O puritanismo criminoso das pequenas cidades, a solidão dos solitários, a pedofilia doméstica, os crimes e as injustiças, enfim, o quadro comum do quotidiano, inspiraram alguns dos seus melhores contos, aqueles pelos quais já começa a situar-se em nossas letras.
Sobre o Autor
Wilson Martins: O GLOBO - Prosa e Verso - 15/10/2002
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