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RESENHAS

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A poeta e sua dialética travessia

Moema de Castro e Silva Olival*

Mariza de Castro — nome poético de Mariza de Castro e Silva Guanabara — nos brinda, hoje, com seu primeiro livro de poemas: A noite amanheceu em mim.

Se é principiante em edição, nem por isso deixa de ser poeta amadurecida na arte de a(r)mar o poema, tarefa que cultiva desde a juventude, ainda que num ritmo amador e inconstante.

Agora, disciplinada, nos oferece esta instigante coletânea cujo título, a nosso ver, representa escolha extremamente feliz, como célula-mater do discurso poético, alegórico e contrapontístico, que ele sugere. Aponta para um processo dialético em que os núcleos semânticos antitéticos: agente lírico “eu” versus agente lírico “mim” (o “ eu” objetivado pela carga existencial); e, ainda, o índice metafórico anoitecer versus amanhecer acabam refletindo atitudes existenciais do referido sujeito.

Senão vejamos alguns dos referidos núcleos: sombra/luz; descrença/ fé; caos interior/ ressurgimento; ação/reação, a refletirem processos de escavações interiores.

Na designação dos dois blocos em que se divide o livro: 1-“Lira atônita”; 2- “Lira domada”, já se prenuncia, no espaço do confronto, o ponto fulcral de passagem. E, por decorrência, a práxis sisifiana do eterno recomeçar.

Assim, no primeiro bloco - “Lira atônita” - articulado a partir do poema “Traduzir-se”, do poeta Ferreira Gullar, poema retirado de seu livro Na vertigem do Dia, (1980), e transcrito, como epígrafe, na folha de rosto, a iluminar os textos que se seguem, já se delineia a proposta de Mariza. Diz-nos o poeta maranhense:“(...)Uma parte de mim/ pesa, pondera;/ outra parte/ delira/; traduzir uma parte/ na outra parte/ que é questão de vida ou morte/ será arte?”

Se as coisas não têm poesia em si, se o sentimento do belo, desde Aristóteles, depende do espectador, se é expresso, na literatura, pelo universo verbal, então é no potencial dessa linguagem poética, no circuito poeta-forma do poema- (entendida como a fusão dinâmica de expressão e conteúdo)-e leitor, que estará instalado o reino do poético. E, como máscara semântica, como abstração, a metáfora transfiguradora transporta a linguagem, permitindo sua leitura em rito de passagem, do nível individual, ao nível universal. Como sabemos, a grande arte do poeta está na magia do tecido verbal e nas imagens que ele cria.

Na medida em que emoções, frustrações, medos e esperanças apontam para o circuito existencial dos seres humanos, sentimos, na poesia de Mariza de Castro que a síntese dialética , acima referida, parece abrir caminho e se acentua, em seus múltiplos perfis, na seqüência dos poemas de A noite amanheceu em mim.

E foi nessa trilha, sabendo, com Johannes Pfeiffer, que “a poesia não é distração, mas concentração; que não é um substituto da vida, mas iluminação do ser; que não tem a claridade do entendimento, mas a verdade do sentimento e que na poesia não interessa a forma bela, mas a forma significativa”, que Mariza passou a burilar a sua arte.

Nos poemas do primeiro bloco, sobretudo em “A Pedra”, “Dimensão”, “Nuance”, “Autofagia”, “Pai Nosso”, explode a lírica na sua carga “ atônita”, ou seja, perturbada, arriada pela carga da vida, admirada, suscitando buscas. Assim, no belo poema “ A Pedra” : “ Amarro-me então às suas arestas/ e sugo/ a sua força bruta/(...) Ferem-me as mãos com que as acaricio/ e com o sangue que goteja ofereço/ a imemorial transfusão”/.

O sujeito lírico tenta a simbiose: força exterior versus força interior . Procura situar-se no referido espaço; expõe sua expectativa em consegui-lo.

Também em “ Dimensão”, nota-se o mesmo recurso, no poema que nos parece ter sido presidido pela imagem lírica construída por Joaquim Machado de Araújo Filho , precocemente falecido, em seu livro A Construção da semente. No texto que leva o mesmo título acima referido, assim se delineia a imagem construída por Joaquim: “ a tristeza madrugou em mim”. Sua poesia, no plano das afinidades espirituais tão pródigas entre os grandes criadores, parece, aqui, ter atuado sobre Mariza, participante da “ jornada das estrelas”, percorrida pelos poetas.

Evoca, a poetisa, a José Paulo Paes quando ele indaga: “Eu não tenho um cão/ será que ainda estou vivo?/ e a voz do sujeito lírico responde “ é mesmo, eu também não tenho um cão.../ Por isso as manhãs amanheceram em mim/ cheias de rastros de sangue/”. Repare-se no detalhe: ainda são as manhãs, ainda não houve a passagem manhã/noite, ainda prevalece o ato de constatar : “ O meu fantasma está bem guardado/ nas minhas zonas de silêncio/ que jorram dentro de mim” . Mas há o vislumbre de uma possível reação: “ Um dia talvez/ todas as lágrimas serão livres/”.

Em “ Nuance” outro expressivo poema, o sujeito lírico expõe sua realidade, numa visão especulativa do ser, uma vez que a dualidade antitética do viver, das diferentes faces a enfrentar é que a atrai: “ Não quero a certeza das coisas definidas/ lado unilado do que é viver/(...) Quero a vida em nuances,/ quero a vida de vez/ nem pronta nem rascunhada/”.

Assim, a poesia de Mariza de Castro oscila, atônita, entre as frestras da existência.

Mas, até quando a surpresa não esconde a máscara de efeito, já que, como veremos em “O Passado”, a senha para a reação já está embutida nos seus versos, como vimos acima e, também, aqui:

“O passado me espreita/ com olhos atentos/ num canto da sala escura/ ( ...)/
Viver sem essa fera/ já não posso mais/ nem quero./ Quero é amansá-la docemente/ (...).” /

Por vezes, seu canto surpreende. É pura esperança e vontade de reagir. Clama, explicitamente por ajuda. E, para isto, recorre aos olhos dos que podem somar forças e sensações como no poema “ Se puder”:

“ Se puder, leia os meus versos/ e entenda que o que eu quero/ você pode me dar/: uma luz para meus olhos/ uma chama que me aqueça/ uma lágrima consentida/ e um longo recomeço/ de vida”.

Isto,depois de clamar:“Se puder,refaça o universo/com o poder de seu olhar/e a conivência de Deus”.

Esse Deus, a quem se permite questionar, no belo poema parodístico “ Pai Nosso”, com versos que considero prismáticos, irradiadores da alma da poetisa, com o vigor da intertextualização ferina, como : “Perdoai, Senhor, as nossas dúvidas/ assim como nós perdoamos as vossas dívidas.” Palpita, aí, pois, o grito interior de revolta, em que pese a determinação de reagir, como já vimos.

Essa revolta que se camufla, sob a forma de alegoria dramática, é expressa em “Autofagia”, poema em que constrói, poeticamente, metaforicamente, o seu processo pessoal de perda perante a vida, fato que parece “iluminar” ou, mais precisamente, “anoitecer” seu canto poético, expondo um coração irremediavelmente ferido:

“Olhei uma flor imensa/ rubra/ carnuda/ carnívora/ e então ela me foi sugando/ bem devagar para dentro dela./(...)/ Ah! Mas o coração não queria passar/ (...).”

Sintomático que, após “ Autofagia”, como num impulso programado a superar seu momento de fraqueza, quando, ao confessar a sua dor, a expõe, ainda que mascarada numa instigante alegoria,( a surpresa, agora, é do leitor), venha o poema “Epifania”,como uma reação tão necessária e só possível em poema tecido de infância e saudades!:

“Quero no entanto um poema em cores/ tecido de infância e saudades/ (...)”.

Depois, em “ As palavras” a ambigüidade de assumi-las como máscaras , cobrindo a referência metalingüística do fazer poético, ao mesmo tempo revela seu propósito em poder domá-las, a despeito da consciência do esforço e da falsidade do seu gesto: “ hipocrisia de minha fé”.

E, em “ Ansiedade”, apoiada em epígrafe de Brasigóis Felício: “ Agora sei a palavra essencial: escrevo para que me amem”, o sujeito lírico, numa atitude de ratificação da proposta, dialoga abertamente com ela, e confirma “ Escrevo sim para que me amem./ Por que seria de outra maneira?(...) nenhum gesto iria devolver-me/ a perdida palavra inicial.”

E termina o primeiro bloco “A lira atônita” com o poema “ O sonho”, em que desvela parte de sua meta criadora, e seu horizonte parece delineado e iluminado por sua busca: a inspiração, ainda que seja trazida só pelo sonho: “ Fugir eu não podia, não podia/ então foi que uma voz puríssima/ descerrou os meus lábios/ e um colar de palavras mágicas/ envolveu todas as feras.(...).” Interessante, que, aí, voltam as imagens primaciais, como a consolidar sua presença no ato de criação poética de Mariza: “(...) E pássaros bicavam romãs maduras/ dentro dos ninhos gotejavam manhãs (...)”.

O segundo bloco tem como epígrafe as experientes palavras de Clarice Lispector: “Não, não é fácil escrever...É duro como quebrar rochas; voam faíscas e lascas como aço espelhados”.Prepara-se, a poetisa, para oficializar a sua máscara criadora , metalinguística.. Investe-se na fórmula existencial de Nietzche: “ Torna-te quem tu és”.E seu canto híbrido, de inspiração amorosa e crítica,e negação, se rotulará, programaticamente, de “A Lírica Domada”. E, não, indomada, como seria de se supor.

Revisitando seu potencial interior, assume seu novo projeto de vida. Começa aquilatando as possibilidades: “ Não, isto é impossível/ Há uma hiena encarcerada/ atrás da grade de meu sorriso/ Toda uma fila de palavras não ditas/ espera comigo/ a sua vez de amanhecer”/

Depois, em poema nitidamente metalinguístico, “O silêncio é muito perigoso”, insiste no perigo deste silêncio, da paz, da conformidade.A voz poética deve sondar o mistério interior, deve expô-lo e ao seu processo de criação. A poetisa mostra seu receio nesta operação, porque sabe-se questionadora, sabe-se, sobretudo, presa de grande e natural reserva. Deve aparentar esforço para domar-se, para domar sua lira. Mas, na verdade, sente sua dificuldade em desvelar seus projetos interiores. Precisa fazer a passagem, mas ela é dialética.

Ao contrário de Cecília Meireles, que, na crônica “O livro do silêncio”, quando, discorrendo sobre o espaço existencial, sobre o papel das palavras, da angústia do homem, enfoca a riqueza de um sentimento mantido sob reserva, a necessidade premente do domínio de suas fronteiras, suas perturbadoras dimensões e o modo de tê-las a seguro “ do outro”, e, então, tacha o silêncio como privilégio dos deuses, aqui, Mariza o considera, bem como à paz, como sorrateiro instante. Sorrateiro e perigoso terreno. Isto, porque o encara, no confronto da consciência consigo mesma. Representaria perigo, portanto, este momento de disponibilidade do espírito, visto como instante de “armação”. O homem, para ela, precisa iludir-se com o barulho que o nocauteia e o afasta dos momentos, estes, sim, terríveis, de um ajuste de contas consigo mesmo. E o seu canto “ domado” expõe a questão:

“O silêncio é muito perigoso/ por isso os homens querem a guerra:/ para esquecer a paz/”.

Pensamos que este poema carrega o peso do título do segundo bloco : “ A lira domada”. E, ainda, recobre, metalinguisticamente, o percurso milenar da voz da mulher, a mostrar a máscara da submissão- a aparente submissão- a prevalecer sobre seus anseios interiores: “ águas paradas de um turbilhão interior”. Discurso feminino presente, sobretudo, no poema a seguir, sem título, mas temperado pela epígrafe da consagrada poetisa Darcy França Denófrio, assumindo a carga semântica de amordaçamento de um de seus versos. Vejamos. Diz Darcy “ Dentro de mim/ dorme um símio acorrentado/ com os seus pesadelos”.— Canta, em voz uníssona, o nosso sujeito lírico: “Guardo dentro de mim/ lavas feridas de vulcões extintos/ (...)/ estalando surdos baques sísmicos/ “ símios acorrentados dentro de mim”./

Em “Retorno”, tenta buscar o perfil de sua essência, num mergulho nas águas existenciais: “ Onde estava eu antes do nada?”

Incluindo o poema “Cora Coralina”, mostra-se, Mariza, atualizada com seu tempo histórico, uma vez que dialoga com a musa goiana sobre suas impressões , ainda que do além, após a terrível enchente do Rio Vermelho, que destruiu parte de sua casa, hoje fundação cultural, e parte do centro histórico de nossa querida cidade de Goiás, logo agora que a ex-capital acaba de receber o título de Patrimônio Histórico da humanidade.

Em “Sísifo”, o “eu lírico” inspira-se no seu laborioso processo de viver, alimentado pelo questionamento do eterno recomeçar, sempre ponto fulcral de suas indagações.

“ tentando rolar a pedra/ soergue-la e atirá-la”.

No poema “ A meu pai”, a figura de nosso pai, intelectual, historiador, professor, ser amoroso, é colhida ao vivo— em cena tão familiar para sua família— quando, em sua fazenda, recolhia-se, atendendo às exigências de “ seu peito solitário”,ao silêncio da noite a sugar-lhe força e luz para suas dúvidas e inquietações:

“Que pensamentos estariam naquela fronte/naquele olhar triste que negava/suas fundas palavras? ” Em “ Labirinto”, após atravessar as águas do inferno, na tempestade da vida,que ela denuncia na sua postura aparentemente “ domada”, agora torna explícita sua intenção de reagir, abraçando, decidida, a práxis sisifiana e lançando seu repto: “ Inflarei na minha nau/ as velas brancas/ E anunciarei aos que me vislumbram da outra margem/ a minha volta à vida.”

Finalmente, em “ Travessia”, o circuito dialético da passagem se define. O “ eu lírico ” não se deixa abater pelo “ eu-objeto, pelo mim existencial”, pelo “eu destruído”, por aquele “eu” destroçado que Clarice Lispector tão bem definiu num belo recurso da linguagem, quando em A paixão segundo G. H. a heroína, destroçada em seus anseios, trabalhada pelo sofrimento, diz. “ Eu não sou tu, mas mim és tu”. Para a poetisa, a travessia se completa, testemunhando o enriquecimento do eu lírico, sem dúvida, trabalhado pela dor, mas enrigecido por novas potencialidades que ela se dispõe a considerar.

Iluminada pela epígrafe de Manoel de Barros: “O meu amanhecer vai ser de noite”, . Mariza completa seu circuito; é domada na medida em que potencializa sua dor: de ser sensível, humano, a dor da mulher, mas a transforma em energia e esperança.

Então canta: “ A noite amanheceu em mim/ e me seduziu com um piscar de estrelas/ sei agora que elas são a outra ponta/ da tenra aurora. (...) O meu amanhecer já chegou”.

Em outros poemas, como “Desiderato”, “ Perdão”, “ A traição de Pedro” ,” Angústia”, “ Mãe”, “ Labirinto”, “ Cogito”, Mariza vai trabalhando a palavra, “tecendo o seu silêncio”, isto é, vai armando, no bulício de seu laboratório interior, o canto que lhe aliviará a alma contida.

Em seus poemas, pois, prevalecem as matrizes semânticas de um questionamento existencial , só superficialmente controlado. Portanto, mascarados , domados?!...

Assim, com este significativo livro de estréia, A Noite Amanheceu em mim, Mariza de Castro mostra seu talento de militante lírica, e reafirma, para todos nós, suas grandes potencialidades no gênero. Continue, Mariza, sentimo-nos todos cativos do seu poetar.

(ensaio literário encaminhado por Yeda Schmaltz e autorizado pela autora)

Sobre o Autor

Moema de Castro e Silva Olival: Doutora em Letras Clássicas e Vernáculas—1972—pela Universidade de São Paulo. Professora de Língua Portuguesa e de Estilística nos cursos de graduação em Letras, da UFG—aposentada em 1991. Professora de Crítica Literária—Crítica Estilística—nos cursos de Mestrado em Letras e Linguística, curso de que foi fundadora e que coordenou por oito anos. Fundadora e primeira Coordenadora do Centro de Estudos Portugueses da UFG. Editora da Revista do Mestrado—Signótica—por duas gestões: 1988-1990; 1990-1992.

Livros Publicados: 1)O Processo Sintagmático na Obra Literária. Goiânia: Editora Oriente, 1976; 2) O Espaço da Crítica- Panorama Atual. Goiânia: Editora da UFG, 1998 ( 381pp); 3) GEN- Um Sopro de Renovação em Goiás: Vozes representativas.(1 Prêmio do Concurso de Ensaios Nelly Alves de Almeida),Goiânia: Editora Kelps, 2000); e 4) O Espaço da Crítica II— A crônica-Dimensão Literária e implicações dialéticas. Goiânia: Ed. Kelps, 2002.

 

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